Agosto/2020
Ana Teresa A. Venancio, Cristiana Facchinetti e Flavio C. Edler*
Parte 1 | Apresentação: Assistimos atualmente a uma grande produção e circulação de ideias, ensaios e textos acadêmicos a respeito da Covid-19. Cada um destes trabalhos debate um dos inúmeros aspectos envolvidos na atual crise sanitária vivenciada por todas as sociedades contemporâneas, mas de modos particulares, tendo em vista os elementos estruturantes e conjunturais vividos pelos diferentes grupos sociais em espaços geográficos e culturais específicos. São textos produzidos por especialistas de diferentes áreas: biólogos, pneumologistas, infectologistas, representantes das inúmeras áreas da saúde, educadores, sociólogos, historiadores, antropólogos, economistas, psicanalistas, filósofos etc.
Percebidas como catalisadoras de processos e tendências históricas, culturais e econômicas, as pandemias têm sido um objeto historiográfico abordado a partir de várias perspectivas. A mídia tem destacado o grande interesse por parte do público leigo em conhecer eventos sanitários que, em outros períodos da história, afetaram o mundo em proporções semelhantes. Podemos destacar que desde o advento da teoria microbiana das doenças, associada aos nomes de Pasteur, Koch e Yersen – e entre nós, Oswaldo Cruz, Artur Neiva e Carlos Chagas – afirmou-se no meio médico-científico a ideia de que a medicina, enfim, tornara-se parte da ciência universal e objetiva. Essa retórica, que surgiu entre o final do século 21 e início do 20, manteve-se presente até 1960/ até o final da década de 1960, apesar da epidemia da gripe espanhola de 1918-1919 que atingiu o mundo todo. Através de um notório otimismo sanitário, esteve articulada às esperanças de maior controle e domínio do mundo natural e social que marcam a crença moderna na racionalidade humana.
Com maior intensidade do que já ocorrera com a gripe de 1918, a Covid-19 abalou fortemente aquela confiança na promessa da ciência e da tecnologia em assegurar um mundo melhor e mais seguro. A extraordinária magnitude e dramaticidade da crise sanitária atual e as incertezas do manejo de uma nova patologia, de enorme impacto nas economias nacionais, veio somar-se a outros medos e ansiedades que habitam nosso mundo globalizado.
Nesta linha, muitas são as reflexões acerca dos efeitos já visíveis sobre o bem-estar psíquico ou psicológico dos indivíduos, decorrentes e produtores de sofrimentos e emoções variadas. É notável neste sentido, por exemplo, artigos os mais variados abordando os efeitos psicológicos do distanciamento físico[1], a emergência de novos estados de mal estar como a “Síndrome de la Cabaña”[2], a produção de uma “nova normalidade”[3], sem que se esqueça que as estratégias de prevenção e os efeitos psicológicos frente à pandemia de Covid-19 incidem de modo diferenciado sobre os variados grupos etários e sociais[4].
De nosso ponto de vista, as reações individuais a essa experiência radical de pandemia são estruturadas e estruturantes pelo próprio evento coletivo. Isto é, por meio da observação da vivência cotidiana e atitudes individuais na experiência da pandemia, nos interessa olhar para o modo como, nas sociedades urbanas contemporâneas, a radicalidade desse evento tem não apenas produzido respostas emocionais coletivas, como têm afetado o próprio imaginário social sobre o que é, e o que não é, sofrimento mental dos indivíduos.
Certamente são inúmeras as variáveis sócio culturais que incidem sobre as experiências individuais de mal estar psíquico ou psicológico advindas da atual pandemia, as quais refletem diferentes respostas emocionais e comportamentos frente às incertezas de vários tipos que invadem atualmente o mundo. Tais comportamentos estão relacionados a atitudes subjetivas, estruturas mentais, por vezes radicais, que servem como gatilho para a experiência do sofrimento psíquico. Podemos mencionar, como exemplo, a atitude de exposição social assumida por muitos frente à ignorância inicial sobre a Covid 19, configurando-se no limite uma atitude irresponsável ou mesmo cega quanto aos riscos e perigos da pandemia, e que poderíamos articular de modo mais genérico à experiência contemporânea dos negacionismos (cientifico, histórico, ambiental, etc.). Também é possível observar a presença de uma atitude diametralmente oposta, mais medrosa/inibida/prudente que, junto com diversos elementos, torna-se fonte para a angústia, e para todo o mal estar decorrente desta emoção, que tem sido vastamente discutida e significada no contexto das sociedades contemporâneas.
Para aprofundar o debate sobre os comportamentos, as respostas emocionais e mal estar psíquico produzidos na experiência sociocultural em que nos encontramos, entrevistamos dois especialistas do campo das ciências sociais e humanas, ambos pesquisadores do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado Rio de Janeiro. Nesta primeira parte aqui publicada, a antropóloga Jane Russo nos convida a refletir sobre a angústia – uma experiência social cotidiana específica de produção de mal estar psíquico frente à Covid-19.
A segunda parte deste nosso debate – a ser publicada em breve – será com o psicanalista Benilton Bezerra Junior, que observa como determinados comportamentos e respostas emocionais à atual pandemia, no contexto do século 21, colocam em questão de forma muito contundente vários elementos societários fundamentais, os quais afetam as maneiras como nos vemos, como nos pensamos e como nos relacionamos uns com os outros.
* Ana Teresa A. Venancio, Cristiana Facchinetti e Flavio C. Edler, pesquisadores do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz
Angústia na pandemia do coronavírus: informação e contágio
Jane Russo[5]
1) Recentemente você participou de uma mesa de debate virtual intitulada Sofrimentos e emoções na pandemia, promovido pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS-UERJ) e pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PCIS –UERJ)[6]. Na ocasião você analisou a existência de uma forma de mal-estar, de sofrimento psíquico, que está associada ao excesso de informação, a qual você designou como “angústia da informação”. Para começarmos, poderia nos explicar a que tipo de “informação” você está se referindo e quais as bases mais gerais deste sentimento denominado angústia?
Jane Russo: Não vou falar aqui exatamente de desinformação sobre a epidemia, o vírus ou a doença. Minha preocupação são as informações vindas de fontes teoricamente confiáveis – de profissionais ou instituições de saúde, ou publicadas na imprensa a partir de tais fontes. Ou seja, informações / instruções vistas como “corretas” porque geradas por especialistas ou, mais genericamente, pela ciência. Uma verdadeira avalanche de informações, notícias, instruções que vem nos submergindo desde pelo menos março deste ano, e que as pessoas, mal ou bem, tentam acompanhar, repassar, entender, cada uma a seu modo.
As informações são às vezes contraditórias, e, evidentemente vão mudando com o tempo, na medida em que – como os especialistas não se cansam de afirmar – trata-se de um novo vírus, de uma nova doença, sobre a qual o conhecimento ainda está sendo construído e está se firmando. É muito comum ouvir em debates ou entrevistas a afirmação: “sabemos muito pouco sobre esse coronavirus / ou sobre a COVID 19”. Entretanto, a falta de consenso não impediu que desde cedo muito se dissesse sobre o vírus e a doença.
Evidentemente não estou negando que é uma doença nova sobre a qual ainda pouco se sabe, e também concordo que o conhecimento que vai sendo gerado no calor da epidemia é cumulativo, por isso se transforma.
Mas não é só isso, quem estuda a produção de conhecimento científico sabe que este não ocorre sem desacordos, disputas as mais variadas, o campo da produção científica é um campo de luta pela definição do que deve / pode ser pesquisado, como e por quem. Que envolve diversos atores, não apenas os cientistas. O consenso é um trabalho lento, de resolução ou apagamento de conflitos. Teorias e hipóteses são abandonadas, ou substituídas por outras às vezes antagônicas. Agora estamos, nós os leigos, sendo expostos aos bastidores da produção científica, algo que normalmente não vemos ou mal sabemos que existe. A falta de consenso está exposta em toda sua crueza.
Estamos então vivendo uma duplicidade em que temos que combinar a fé na ciência (ou a confiança na ciência – e não nos políticos, nos populistas, nos negacionistas, nos charlatães) com a confusão frente a uma falta de consenso a qual não estávamos habituados (ou à qual não havíamos prestado atenção) e com a qual temos que nos valer. Sem colocar em xeque o valor da ciência e do que ela produz. Vivemos essa duplicidade como um pandemônio informacional – e com ele temos que nos haver.
Meu argumento é que o excesso de informações qualificadas, que podem ser conflitantes ou estão o tempo todo se modificando – já que os cientistas não estão tendo o tempo de descartar as hipóteses menos robustas, de resolver suas contendas antes de estabilizar um certo conhecimento, por isso há um conjunto muito grande de informações sendo disponibilizadas – é produtor de ansiedade, e que, quanto mais consciente e informada a pessoa, maior sua angústia. É isto que estou chamando de produção da angústia através da informação.
2) Que tipos de informações científicas são essas divulgadas ao público leigo e quais os efeitos esperados?
Jane Russo: São informações, recomendações, orientações baseadas na ciência que repercutem no nosso dia a dia, nas pequenas ações que somos levados a realizar em nosso cotidiano. A epidemia traz duas necessidades que nos atingem diretamente: criação de barreiras e reconhecimento de fronteiras. No primeiro caso trata-se de construir barreiras entre as pessoas e também entre pessoas e coisas. Ao mesmo tempo devemos reconhecer as fronteiras entre o que está ou não contaminado (roupas, objetos, o que chega da rua), entre partes da casa, do corpo, etc.
Tendo em vista as barreiras e fronteiras, há a produção também de passagens: porta da casa, por onde entram pessoas e coisas e saem (por exemplo, o lixo) – fronteira entre o dentro e o fora – são potencialmente fonte de contaminação e, portanto, de perigo. A fronteira entre o que está ou não contaminado deve ser objeto de constante vigilância e preocupação: necessidade de lavar, higienizar, descontaminar o que entra na casa ou a própria pessoa. O tempo todo dúvidas são suscitadas se a descontaminação foi corretamente realizada. Usei o produto certo? Na medida certa? Fiz corretamente? O que fazer, por exemplo, com dinheiro? E com ovos que vêm dentro de uma embalagem? Tirar e lavar um por um? Temos aí uma bela fonte de angústia.
3) Como você disse é preciso também estabelecer minimamente passagens, comunicação entre pessoas e pessoas e pessoas e coisas. No primeiro caso, no mundo todo, está sendo produzindo uma comunicação cotidiana virtual; mas de qualquer modo a população não prescinde das coisas em seu dia a dia. Qual a sua percepção sobre o modo como estas passagens ou comunicações estão sendo reconfiguradas?
Jane Russo: Como vimos, a fronteira e a passagem da contaminação para a descontaminação podem ser objeto de grande ansiedade. Tanto a passagem de fora para dentro da casa (do prédio, do elevador) quanto a passagem das coisas pelo processo de descontaminação (ou higienização).
Cito aqui a conversa de um grupo de whatsapp no condomínio de um prédio: os condôminos se dividiam entre, de um lado, reduzir o número de funcionários para reduzir a circulação de pessoas na cidade (recomendação da OMS) e proteger os funcionários da contaminação em transportes públicos, e, de outro, manter o mesmo número de funcionários para limpeza do prédio visando a assepsia de suas partes comuns (argumentando-se que essa era a recomendação da OMS). As partes comuns de prédios são pontos de passagem e, portanto, de perigo, a serem desinfectadas. Percebe-se que a segunda posição no debate nos leva à desimportância dada ao risco corrido pelo empregado encarregado da descontaminação. Esse risco, que também atinge as empregadas domésticas, é descartado como irrelevante.
Uma personagem chave dessa passagem são as mãos. As mãos pegam os objetos contaminados, elas os descontaminam, devem ser constantemente descontaminadas. São, portanto perigosíssimas. Podem contaminar o que não necessariamente saiu de casa: as maçanetas das portas, as torneiras, os interruptores, o teclado do computador, o celular, os óculos. A lista é infinita. E são agentes de passagem entre o fora e o dentro do corpo – daí o seu perigo extremo: levar as mãos ao rosto onde se encontram os orifícios (boca, narinas, olhos) que levam o vírus para dentro do corpo. As mãos fazem a passagem de um objeto (ou pessoa) para o outro (ou outra) e daí para dentro do corpo.
Se as mãos são os perigosos agentes de passagem, a máscara, além do distanciamento físico, é a barreira por excelência. É ao mesmo tempo uma barreira contra a contaminação, porque protege os orifícios do rosto, mas também agente de provável contaminação. Já li em um post no whatsapp que o vírus pode viver 7 dias nas máscaras!
Por isso não se deve tocá-la quando a estivermos usando, ela deve ser trocada após duas (ou três ou quatro) horas de uso. Após o uso ela deve ser descartada (se for descartável) ou lavada e guardada de forma apropriada.
As instruções sobre as formas de lavar a máscara variam de país para país. Finalmente chegou uma orientação da OMS da boca do próprio presidente da organização Tedros Adhanom Ghebreyesus, em 5 de junho. A entidade divulgou então novas orientações sobre o material de que devem ser feitas as máscaras de pano: as máscaras devem ter, idealmente, no mínimo três camadas de tecido; a camada exterior deve ser feita de um material resistente à água, como o polipropileno, poliéster ou uma mistura deles; A camada do meio deve agir como um filtro e pode ser feita de um material sintético, como o polipropileno, ou de uma camada extra de algodão; A camada interior deve ser feita de um material que absorva a água, como o algodão. A OMS também divulgou um vídeo (em inglês) com orientações sobre a forma adequada de usar máscaras:
Antes de usar a máscara, lave as mãos com águas e sabão ou use álcool em gel; Examine a máscara antes de colocá-la: se estiver danificada ou suja, não use; Coloque a máscara de forma que ela cubra a boca, o nariz e o queixo. Se assegure de que não há espaços entre o seu rosto e a máscara; Não toque na máscara enquanto estiver usando, para evitar contaminação; Se tocar na máscara acidentalmente, limpe as mãos; Antes de retirar a máscara, limpe as mãos com álcool ou lave com água e sabão; Ao retirar a máscara, incline-se ligeiramente para a frente e pegue na máscara pelos elásticos, na parte que está atrás da orelha, sem tocar a frente; Depois de retirá-la, lave as mãos novamente;
Chamo atenção para a frase “se tocar na mascara acidentalmente, limpe as mãos”. Como limpar as mãos se você estiver na rua? Num ônibus? Onde comprar máscara médica? Quem define o que é mascara médica? Por que lavar as mãos antes e depois de retirar a máscara? A máscara protege da contaminação ou é um veículo de contaminação?
As máscaras e mãos, portanto, ao mesmo tempo que protegem são fonte de perigo, e eu diria que são os dois grandes personagens dessa epidemia: ao mesmo tempo barreira, e fonte de contaminação. Devemos estar sempre em alerta total.
4) Inevitável lembrar do estudo clássico da antropóloga norte-americana Mary Douglas, Pureza e Perigo (1966) e sua análise dos rituais de pureza e impureza em culturas primitivas. Partindo da assertiva de que todas as culturas constroem ideias, atitudes e sentimentos para lidar com o estatuto do que é considerado socialmente puro ou impuro em determinado espaço e tempo, a autora demonstra como a sujeira é sempre vista como fonte constante de perigo para a coletividade ao mesmo tempo que sua definição é um subproduto de uma ordenação e classificação sistemática das coisas. Neste sentido, particularmente em relação a vivência da atual pandemia, parece que não apenas nossos próprios padrões de comportamento, atitude e sentimentos estão tendo que ser reelaborados, mas há inclusive uma incerteza muito grande quanto ao que é puro e ao que é impuro, nos colocando no que você está chamando de estado de alerta total. Poderia falar mais sobre este estado? Ele pode ser considerado ao mesmo tempo uma decorrência dessa angústia da informação e um gatilho para uma angústia do contágio, como experiência social possível neste momento que vivemos?
Jane Russo: A epidemia está subvertendo os modos normais de classificação entre o sujo (impuro) e o limpo (puro). Já não sabemos mais como nos movimentar em meio a objetos que podem ter sido contaminados, que contaminam nossa casa, nossas mãos, que devem ser permanentemente descontaminados. As fronteiras se desfazem e se refazem com rapidez, e temos que estar diuturnamente alertas.
Vejam a entrevista de Margareth Dalcomo, pesquisadora da Fiocruz, publicada no jornal O Globo em 25 de maio do corrente ano. A Dra. Dalcomo teve Covid e foi entrevistada sobre sua experiência. Perguntada como havia contraído a doença respondeu: Contraí em casa. Trato de dezenas de pacientes no meu consultório e no laboratório da Fiocruz. Mas tenho certeza de que não fui contaminada por eles, usei os EPIs necessários. Tive o que precisava para me proteger, o que muitos profissionais de saúde, tragicamente, não têm. Mas, em casa, por mais cuidado que se tome, é mais difícil porque é impossível passar 24 horas por dia em alerta total.
Queria enfatizar a expressão: “24 horas por dia em alerta total”. É o que, no imaginário das pessoas e também da Dra. Dalcomo, a epidemia exige de cada um.
Recentemente, no final de maio, uma noticia no Washington Post, sobre uma revisão publicada no site do Center for Disease Control norte-americano, causou alguma celeuma. A manchete do jornal dizia “Virus ‘não propaga facilmente’ a partir de superfícies contaminadas ou animais, afirma website revisado da CDC”[7]. Isso é relevante para a vida cotidiana das pessoas. Li o artigo e o website do CDC. Ambiguidade sempre, certeza nunca: é difícil contrair a doença na mercearia, mas não é impossível. Ou seja: Alerta total! Sempre, 24 horas por dia.
Mais recentemente ainda em carta aberta, enviada à OMS e publicada no periódico científico Clinical Infectious Diseases, 239 especialistas de 32 países apontaram indícios que mostram que partículas flutuantes do vírus podem infectar indivíduos que as inalam. Como essas partículas menores, que são exaladas, podem permanecer no ar, os cientistas pediram à agência que atualize as suas diretrizes. A noticia foi publicada no New York Times em 4 de julho.
Li uma matéria d’O Globo sobre isso intitulada “Cientistas reforçam possibilidade de transmissão da covid-19 pelo ar”. Essa matéria, publicada em 5 de julho, baseia-se na notícia do New York Times e traz várias opiniões e posições sobre o assunto, não ficando muito claro qual a intenção dos 239 especialistas. Termina com uma afirmação da Dra Trish Greenhalg – médica de cuidados primários da Universidade de Oxford: – Não há provas irrefutáveis de que o SARS-CoV-2 viaja ou é transmitido significativamente por aerossóis, mas não há absolutamente nenhuma evidência de que não seja. Como devemos ler essa notícia? Como devemos interpretar a afirmação da Dra Trish?
Sempre achamos que certeza e ambiguidade não andam juntas. Mas estávamos enganados. Estamos convivendo o tempo todo com a ambiguidade da certeza científica. Com a ciência e em alerta total.
Sabemos que o alerta total, como a assepsia total, é uma impossibilidade.
Que nos digam as pessoas acometidas de TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo (a antiga Neurose Obsessiva de Freud) – que lavam as mãos 50 vezes ao dia porque os germes estão em todo o lugar. Podem estar inclusive no sabonete usado para lavar as mãos. E que evitam contato com outras pessoas pelas mesmas razões.
5) Douglas se refere às ideias de contágio advindo da matéria em culturas especificas, (o sangue menstrual por exemplo), mas ela também se refere a um contágio moral, em que que comportamentos e valores são vistos com passíveis de serem poluídos por outros comportamentos e ideias.
Jane Russo: De fato. Será que aqui também poderíamos falar em “contágio moral”?
Sabemos que as tentativas de purificação e de afastamento do obsessivo estão fadadas ao fracasso. Estarão as nossas também? Não falo de fracasso no sentido de livrar-nos da contaminação de fato pelo coronavírus. Mas de fracasso no sentido de aplacar a angústia causada pela pandemia de informações. Serão nossas tentativas de descontaminação e afastamento também, como no caso do obsessivo, tentativas de purificação moral?
Já li vários textos, uns mais sérios outros menos, que sonham com um mundo pós-pandemia melhor. Desigualdade repensada, meio-ambiente preservado, capitalismo financeiro sendo abandonado. Estarão essas fantasias ligadas à ideia de uma purificação moral? Estamos, como o obsessivo, expiando alguma culpa enterrada nos recônditos de nossa alma, que agora a pandemia traz à luz do dia, pessoas morrendo sem atendimento adequado, populações indígenas entregues à própria sorte, sistemas de saúde subfinanciados e sucateados, irresponsabilidade criminosa de governantes desprovidos de um mínimo de solidariedade humana?
6) Na sociedade contemporânea globalizada a medicina é um conjunto de conhecimentos e práticas que, num lento e contraditório processo histórico, se tornou instrumento fundamental para lidarmos com o medo e angústia humana em relação à morte. Entre a vida e morte, e como parte da primeira, a medicina também tem decifrado e recodificado diversos estados patológicos geradores de mal-estar, não apenas físico-orgânicos, mas também mentais ou psíquicos. No campo especifico da psiquiatria, as inúmeras edições revisadas e significativamente ampliadas do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder (DSM) ao longo do século 20 e 21 são prova cabal desta afirmação. Você considera que, em alguma media, estamos assistindo a emergência de gatilhos decorrentes dessa experiência sociocultural de pandemia que levem a produção de novas nomenclaturas diagnósticas no campo das psicopatologias?
Jane Russo: Sinceramente não sei. Estamos em um momento em que a obsessividade e a compulsividade estão sendo fortemente incentivadas. Mas me parece que estamos apenas mimetizando o TOC, e não sairemos da pandemia mais individualmente obsessivos do que entramos. Mas há algo que os especialistas em saúde mental deveriam já estar pesquisando agora: como um grande número de pessoas, com os mais diversos backgrounds sociais e culturais, conseguiu fazer o chamado “distanciamento social” – isolados em casa, saindo somente em casos de emergência – sem sofrerem com isso nenhum tipo de colapso mental. Às vezes há mesmo uma reação contrária a essa: ouvi de muita gente a descoberta de um certo prazer de ficar em casa. É claro que estou falando de uma parcela da população específica, já que um contingente grande de pessoas simplesmente não tem como realizar qualquer distanciamento social. Mas, dentro dessa parcela privilegiada, para quem o isolamento foi possível, este não parece ter causado o grau de sofrimento mental que, segundo eu imaginava, seria alto. Esclareço, porém, que minha observação é puramente especulativa, e que de fato os profissionais de saúde mental deverão trazer contribuições relevantes para uma discussão como essa.
[1]. FITZGERALD, Dominic A. ; NUNN, Kenneth; ISAACS, David Consequences of physical distancing emanating from the COVID-19 pandemic: An Australian perspective. Paediatric Respiratory Reviews Available online 11 June 2020. Article in Press. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1526054220300907?casa_token=ZShX-5L4YNQAAAAA:jI2OnkpMagIE7T4RJj_LYY4ZG1bFOOcB2dOMvZzsTAXsbbq-ntXmV0T-otnglXgC6yzLAy1FjQ; LIMA, Rossano Cabral. Distanciamento e isolamento sociais pela Covid-19 no Brasil: impactos na saúde mental. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 2020, 30: e300214. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/physis/2020.v30n2/e300214/
[2].Ver:https://www.consalud.es/pacientes/especial-coronavirus/sindrome-cabana-miedo-salir-casa-confinamiento_79643_102.html; e https://www.pagina12.com.ar/265023-coronavirus-que-es-el-sindrome-de-la-cabana
[3]. MORALES, Galind;, CITLALI, Jessica . Ayudar a los adolescentes a afrontar la nueva realidade. In: Dominico, Yordanka Masó, et al. Reconexión: Herramientas mentales y emocionales para la nueva normalidad. Texere Editores, 2020, cap. 5. Disponível parcialmente em: https://books.google.com.br/; ZIZEK, Slavoj. PANDEMIC!: Covid-19 Shakes the World. John Wiley & Sons, 2020.
[4]. BARRIO, Ángel Baldomero Espina. “Pandemias y culturas: diversas formas socio-culturales de afrontar las desgracias Revista Interdisciplinaria de Estudios Latinoamericanos , v. 4 (2): 11-18, 2020; ESMILI, H. (12 de abril 2020). “El confnamiento es un concepto burgués”: cómo el aislamiento afecta a las distintas clases sociales. El País. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-52216492; LOLE, Ana; STAMPA, Inez; GOMES, Rodrigo Lima Ribeiro. Para além da quarentena: Reflexões sobre crise e pandemia. Mórula Editorial, 2020. Disponível parcialmente em: https://books.google.com.br/
[5] Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ. Professora Titular do Instituto de Medicina social da UERJ . Pesquisadora do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos CLAM/IMS/UERJ.
[6]. Evento ocorrido em 16 de julho de 2020 com a participação de Jane Russo (IMS/UERJ) Maria Claudia Coelho e Claudia Barcellos Resende, ambas do PCIS-UERJ, e coordenação de Fernando Lattman Weltman.(ICS-UERJ).
[7] Matéria de Bem Guarino e Joel Achenbach, publicada em 21 de maio de 2020.
*Ana Teresa A. Venancio, Cristiana Facchinetti e Flavio C. Edler são pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; Jane Russo é do Instituto de Medicina Social da Uerj.
Fonte: Especial Covid-19 – Casa de Oswaldo Cruz | Mal-estar psíquico na pandemia: aspectos sócio culturais
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