Setembro/2013
Luiz Antonio de Castro Santos *
É bom estar na casa dos outros como na nossa.
É melhor que os outros estejam em nossa casa como na sua.
Mas isso nem se pede, nem se sugere.
Esperemos que nos encontremos em qualquer coisa
como a antiga casa miticamente comum
por ser de todos e de ninguém.
Eduardo Lourenço
O novo espaço lusófono ou os imaginários lusófonos
Lisboa, 1999.
Há certas semelhanças entre o sistema de cotas e a profissionalização de uma atividade intelectual, o primeiro visando criar espaços reservados, ou garantidos, para a segunda. Tanto num como noutro caso, vejo algumas (des)vantagens indiscutíveis, se tivermos em conta os limites ou contextos em que tais medidas, programas ou corpos legais sejam conduzidos ou regulamentados. No caso das cotas, bastaria a leitura dos trabalhos sobre o “preconceito racial de marca” entre nós, da lavra de Oracy Nogueira – sociólogo paulista já falecido, excelente pesquisador e intérprete das relações raciais, a quem Maria Laura Cavalcanti devotou recente estudo – para termos a exata noção de que cotas somente balizadas em termos raciais, no Brasil, não fazem sentido, se não forem complementadas pela consideração da origem de classe. Quanto às reservas de mercado que são garantidas às profissões, vou focalizar brevemente a proposta de profissionalização do historiador, como uma das instâncias das chamadas “profissões universitárias” — novamente fazendo uso de um termo empregado, há tempos, pelo mesmo Oracy. Em princípio, julgo que a necessidade de profissionalização se impõe quando o território de poder, ou por outra, o espaço simbólico e social de uma atividade intelectual e ocupacional, se encontra sob o risco de uma investida imperial ou hegemônica, inconteste e agressiva. É o caso, ainda em nossos dias, do poder exercido pela profissão médica, estabelecida e regulamentada com torniquetes – a exemplo das propostas em defesa do chamado “Ato Médico” – contra o conjunto de atividades às quais Freidson chamava, equivocadamente, de “quase-profissões” – a Enfermagem, entre elas. Nesses casos, a profissionalização de ocupações como a Enfermagem e a Fisioterapia é uma imposição legítima, pois a garantia de espaço não subalterno, no conjunto das profissões do cuidar e do curar, equivale ao que se poderia chamar de “estratégias de defesa”. Devem ser estimuladas pelo poder público e pela sociedade organizada. Devem ser cultivadas como plantas frágeis, por meio de amparo legal e suporte institucional.
Mas – e a História? De quem se quer ou se deve defender o historiador, de modo a ter seu espaço social e simbólico livre de ameaças institucionais ou profissionais? Se há ameaças, são fabricadas – não me parecem reais. De tal modo que, a meu ver, “regulamentações” da profissão do historiador traem interesses corporativos indesejáveis. Há inimigos fortes à espreita? Onde estão? Ou, pelo contrário, o que se busca, na proposta do Congresso, seria dar continuidade à velha tradição corporativa e estamental que o aparelho administrativo de Vargas configurou e solidificou, estabelecendo um contínuo sistema de prebendas profissionais, que vigora até nossos dias?
Ocorre que, mesmo nos casos de “legítima defesa” da honra estamental ou profissional, que caracterizaram as lutas históricas da Enfermagem no Brasil, há resultados não antecipados e mesmo surpreendentes. Não é raro, hoje, que no interior dos hospitais brote uma estranha dialética. Em vez da Enfermagem se posicionar e se fortalecer diante do poder médico, as lutas profissionais por distinção e garantia de território se voltam contra outras “quase-profissões” (novamente, lembremos o equívoco de Eliot Freidson). É que podemos assistir, com certa frequência, a disputas das equipes interprofissionais, por espaço e autonomia, entre profissionais da Enfermagem e fisioterapeutas. Há outros indicadores de regulamentações mal-sucedidas. Há pouco tempo lembro-me de ter lido uma coluna num jornal que lembrava os “impedimentos profissionais” impostos pelo Educador Físico (com base no estatuto legal) ao Fisioterapeuta: este profissional dedica-se, em sua formação curricular e na prática, ao campo da chamada “motricidade humana”, à prevenção de lesões etc.; contudo, não está autorizado em uma academia de ginástica a dar aulas de alongamento muscular ou de ginástica localizada, terreno reservado e garantido ao profissional da Educação Física. Por que razão? Com que razões?
Toda regulamentação que não resulte de legítimas defesas de território diante de incursões “imperiais” parece conduzir a distorções na própria prática profissional. Não sou “historiador”, não tenho graduação ou pós-graduação em história. Contudo, meus estudos sobre a formação do campo da saúde e do pensamento sanitarista na Primeira República, ou sobre a formação da enfermagem no Brasil, não me situam como um “historiador da saúde”, ou como um “historiador da enfermagem”? No futuro, como sociólogo, eu teria de ter a “co-autoria” de um historiador “profissional” para publicar meus trabalhos de cunho histórico? Se algumas pesquisas adotam um enfoque histórico-sociológico, o hífen entre os dois campos exigiria a co-autoria, a assinatura de diferentes “profissionais”? Creio que o importante a reter, no momento em que propostas de regulamentação são discutidas para o historiador, é que a formação intelectual e o estatuto legal nem sempre se combinam de modo feliz.
Esse debate tem sua pedra de toque num momento anterior, que nos leva ao estatuto epistemológico do discurso histórico. O historiador Lucien Febvre, com uma clareza que há muito se perdeu entre grandes nomes da Sociologia, discutiu, há apenas 60 anos, a teoria e a prática da História, ao discutir o livrinho clássico e imperdível de Lucien Goldmann, sobre as ciências humanas e a filosofia. O que disse Goldmann, ou melhor, o que disse Febvre, invocando-o? “Tout fait social, nous dit-il, est un fait historique, et inversement ». A formação intelectual, nos meus tempos de estudante muito mais aberta às influências de todo o leque das ciências humanas e da filosofia – meus colegas de geração recordam-se do pequeno clássico do Lucien Goldmann – a formação intelectual sólida, dizia eu, prescinde de estatutos legais profissionalizantes que “legitimem” o trabalho ativo.
Se o leitor me pedisse para indicar dez livros para a formação de um bom sociólogo brasileiro, eu diria de pronto que incluem forçosamente clássicos da nossa historiografia, e não apenas “textos básicos em ciências sociais”. Minha geração de cientistas sociais, diplomada no final dos anos 60 e inícios dos anos 70, teve uma formação extraordinariamente diversificada, que não privilegiava a demarcação de territórios do saber. Líamos e debatíamos livros de História – como os textos de Emilia Viotti da Costa; de Economia – como as obras de Celso Furtado; de Filosofia, como Marx e Althusser; dos clássicos em ciências sociais, como Weber, Durkheim e Talcott Parsons; de antropologia, como o mesmo Durkheim e Malinowski. E líamos e lemos Antonio Candido, cujo saber se estende da crítica literária à história, da sociologia à antropologia, da ciência social à política militante. Minha escolha da epigrafe – pelo crítico literário e ensaísta português Eduardo Lourenço – postula justamente a inutilidade das fronteiras do saber, quando defendidas a ferro e fogo. Se não se deve aceitar, hoje, certa tendência a leituras ou recortes de tipo classificatório (como se houvesse um Durkheim “antropólogo” e um Durkheim “sociólogo”, por exemplo), tampouco deveríamos aceitar propostas tribais, que conduzam à “profissionalização” de campos que prescindem, para continuar vigorosos, de defesas corporativas ou de estatutos legais. Cabe, a meu ver, a defesa e manutenção da formação e da prática profissionais sem peias, genuinamente diversificadas e plurais, sob inúmeros ângulos metodológicos e teóricos.
A tônica na produção, no mercado segmentado e demarcado profissionalmente, poderá vir a acompanhar, na mesma progressão, uma queda na formação intelectual de enorme vitalidade que caracterizou a universidade brasileira em tempos mais críticos.
* Luiz Antonio de Castro Santos é PhD em Sociologia pela Harvard University e professor associado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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