Outubro/2019
Blog de HCS-Manguinhos
As diversas interpretações incorporadas ao termo “sertão” pelas elites paulistas na virada do século XIX para o XX e o movimento da saúde coletiva em São Paulo dos anos 1920 a 1980 são temas que têm sido explorados pelo historiador André Mota nos últimos anos. Doutor em História pela USP, Mota é coordenador do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP e professor do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, onde é responsável pelas disciplinas “Medicina e Humanidades”, na graduação, e “História das práticas médicas no Brasil”, na pós-graduação. Ele conversou com o Blog de HCS-Manguinhos sobre suas pesquisas, publicações e sobre o poder das exposições itinerantes.
Poderia falar sobre a sua pesquisa sobre a história da saúde coletiva no Estado de São Paulo no período de 1920 a 1980?
Este estudo, que se realizou entre os anos de 2015 e 2017, procurou compreender contextos explicativos para o surgimento de um novo espaço de saberes e práticas em saúde, conhecido por Saúde Coletiva, em sua realidade estadual paulista, buscando linhagens explicativas para seu surgimento desde os anos de 1920 até os anos de 1980. Foram duas frentes de trabalho – levantamento documental e entrevistas com diversos profissionais da área. Sob minha coordenação, a pesquisa contou com a participação dos professores Lilia Blima Schraiber e José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, e teve financiamento da Fapesp.
A Saúde Coletiva é um movimento que tentará se diferenciar da Saúde Pública, de viés biologicista, implementada na primeira metade do século XX. Nascida nos anos 1970, a Saúde Coletiva é uma área de produção de conhecimentos que tem como objeto as práticas e saberes em saúde, referidos ao coletivo enquanto campo de relações sociais, onde a doença adquire significação. Também envolverá um conjunto de práticas técnicas, ideológicas, políticas e econômicas desenvolvidas no âmbito acadêmico, das organizações de saúde e instituições de pesquisa vinculadas a diferentes correntes de pensamento resultantes de projetos de reforma em saúde.
Como o movimento paulista se diferencia de outros brasileiros de saúde coletiva?
Mesmo que tenhamos pontos de confluência e diálogo entre grupos e instituições em âmbito nacional, a pesquisa aponta, no caso paulista, para dois núcleos centrais. Um primeiro momento para as mudanças acadêmicas devidas ao preventivismo nas escolas médicas, principalmente aquelas criadas no período conhecido por desenvolvimentismo paulista, nos anos 1950-70, assumindo o ideário preventivista. Dessa mudança, buscamos integrar ao debate a chamada programação em saúde, modelo apresentado pela nova gestão estadual de saúde de São Paulo, liderada pelo médico Walter Leser, entre 1968 e 1975, como resposta ao desaparelhamento da máquina pública de saúde vivida em décadas anteriores, a partir da chamada Reforma Paula Souza em 1925, conduzida pelo médico Geraldo de Paula Souza, que assumira a direção do Serviço Sanitário em 1922, a fim de implantar o modelo de saúde proposto pela Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos.
Em seu projeto à frente do Serviço Sanitário, Paula Souza alterou o modelo tecno-assistencial vigente adotando o de “rede local permanente”, que valorizava a formação de uma rede ambulatorial geral e única de serviços – o Centro de Saúde –, administrativamente descentralizada e regionalizada.
Já a Programação em Saúde foi um novo modelo tecnológico em saúde que primou pela construção de uma nova assistência à população usuária desses centros e unidades de saúde, pautada na integração médico-sanitária, que procurava articular a assistência médica e as ações em saúde pública. O modelo colaborou com o projeto preventivista e de medicina comunitária, aproximando serviços médicos e de saúde pública de determinadas comunidades.
Nesse contexto específico, aliado à chegada do período de exceção política de 1964, configurou-se paulatinamente um grupo, em grande parte ligado ao Partido Comunista, que produziu um pensamento social em saúde. Este pensamento aos poucos passou a ter uma interpretação crítica dos limites do preventivismo, abrindo o debate para uma certa atualização das questões implicadas no processo saúde-doença, isto é, das relações que se estabelecem entre o corpo individual que adoece em sua relação com o social. A este pensamento social, aliaram-se novas práticas de gestão que tentavam acolher os sujeitos envolvidos a partir daquilo que lhe é particular e coletivo, concebendo a produção do que chamamos de Cuidado em Saúde.
Como os resultados de sua pesquisa serão divulgados?
A pesquisa vem sendo divulgada em artigos acadêmicos e na produção de um livro, fruto de minha tese de livre-docência defendida em 2018 no Departamento de Medicina Preventiva-FMUSP, que deve ser publicado no próximo ano pela Editora Hucitec/Fapesp.
Outra importante pesquisa sua aborda os “sertões paulistas”. O que significa este termo? Que publicações surgiram a partir dessa pesquisa?
As interpretações sobre o sertão, tema empreendido em estudo originalmente formulado por Nísia Trindade Lima, influenciaram uma plêiade de pesquisadores para que olhasse o território a partir de uma lente capaz de dar conta dos territórios considerados desconhecidos e de uma população tida como ameaçadora. Em São Paulo, trabalhos voltados ao campo médico, de saúde pública e das chamadas artes de curar vêm sendo produzidos nessa direção, necessitando por isso de uma visão de conjunto dessa produção. Nesse sentido, uma obra coletiva que está sendo organizada, intitulada Os Sertões Paulistas: Medicina, Saúde Pública e Artes de Curar, sécs XIX-XX, explorará como diversas interpretações foram incorporadas ao termo “sertão”, partindo do que vinha sendo tratado pelas elites paulistas, na virada do século XIX para o XX, ao se referir ao chamado vazio territorial que deveria ser devassado. Tal referência aos espaços ainda não tomados pelo estado e seus representantes foi, em larga medida, atentada pelos médicos e agentes de saúde pública ao olhar o território, na tentativa de espraiar e interiorizar suas instituições, identificando males e práticas que se ajustariam ou não ao projeto médico-sanitário, ou seja, de uma concepção de modernidade aliada à de excepcionalidade do Estado de São Paulo.
Poderia falar sobre a sua experiência como diretor do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo?
Dirijo o Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz-FMUSP desde 2007, com uma equipe que foi chegando logo nos próximos anos. De lá para cá, o Museu se transformou num Centro de Pesquisa e de Documentação bastante potente, com toda uma gama documental, fundos pessoais, institucionais e tecnológicos, envolvendo a medicina e a saúde pública entre os séculos XIX e XX. Também ampliamos a nossa atuação no campo da conservação patrimonial, abrangendo diversas áreas da própria Faculdade de Medicina e Hospital das Clínicas, envolvendo projetos de restauro, de identificação documental e de conservação. Já na área expositiva, o Museu Histórico vem empreendendo diversas exposições em suas dependências e de forma itinerante, o que tem contribuído para que o diálogo entre a história das práticas médicas, a museologia e a comunicação com seu público, cada vez mais diverso, possa se efetivar de maneira sólida.
Comente a sua experiência com exposições itinerantes? Elas têm maior alcance ou geram maior interesse?
Entre os últimos projetos de itinerância, realizamos junto ao Arquivo do Estado de São Paulo uma exposição chamada “Arquivos Vivos e Memórias das Práticas Médicas em São Paulo”, para apresentar a relação estabelecida entre o discurso museológico, a narrativa médica e os vestígios documentais correspondentes.
A itinerância é geradora de uma relação muito relevante no universo museal, já que buscará sair do hermetismo que constitui o seu local de origem para dialogar com o público, que muitas vezes não chegará ao museu por diversos motivos. Nesse sentido, fizemos várias experiências, como de circular nossas exposições por linhas de trem nas periferias ou linhas de metrô por toda a cidade de São Paulo. O resultado foi impressionante, no sentido de verificar que a população, ao ter a oportunidade de ter uma exposição próxima a si, interage, se emociona e valoriza. Nesse sentido, o museu quando vai para outros espaços, de forma itinerante, cumpre com seu papel formador de cidadania.
Leia em HCS-Manguinhos:
Mudanças corporativas e tecnológicas da medicina paulista em 1930, artigo de André Mota e Lilia Blima Schraiber (vol.16, no.2, jun 2009)
A gripe espanhola em Sorocaba e o caso da fábrica Santa Rosália, 1918: contribuições da história local ao estudo das epidemias no Brasil. João Paulo Dall’Ava e André Mota (vol.24, no.2, abr 2017)
Leia em livro:
BERTUCCI, Liane Maria ; MOTA, André; SCHRAIBER, Lilia Blima (Orgs.) Saúde e Educação: um encontro plural. 1. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2017.