As viagens italianas iniciam-se no Renascimento, lembrando que a invenção da perspectiva linear introduziu o sentimento do infinito, a possibilidade de navegar. Assim é que o genovês Colombo chega ao Novo Mundo e depois dele outros viajantes da península, deslocando o eixo mediterrânico para o Atlântico. Os grandes momentos da história italiana estariam em Roma e nos Renascimentos, comportados entre os séculos XII e XIV e entre meados do XV ao XVII, como proporiam alguns historiadores. Depois, a partir do século XIX, uma parte de sua população derrama-se pelo mundo e chega aos portos da América. A Itália nos alcança de modo perene em obras seminais da cultura latina, da vertente humanista, do pensamento político, da tradição cartográfica, no comércio de produtos, imagens e notícias das novas terras. Sua tardia unificação não impediu que a história de suas casas reais, cidades e repúblicas fosse também a das alianças, conflitos militares e da violenta disputa pela hegemonia religiosa e étnica que formou a Europa moderna e chegou às colônias. Cenário da revolução promovida por Galileu, da escrita shakespeariana dos amantes de Verona e mercadores de Veneza, as cenas da vida italiana formam uma memória alimentada ainda pelos milhares de italianos que se dirigem enfim ao Brasil.
Em As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, Marco Polo descreve a Kublai Khan as cidades de seu império em um diálogo infinito e fantástico. E após um sonho, Khan o interroga sobre uma cidade em que “o cais é alto e a água escura bate contra os muros, que apresentam escadas de pedra escorregadias por causa das algas. Barcos untados de piche aguardam no atracadouro os parentes que retardam a partida despedindo-se dos familiares. As despedidas se dão em silêncio, mas com lágrimas. Faz frio; todos usam xales na cabeça. O viajante aninha-se na proa, afasta-se observando os que permaneceram”. O segredo dessa cidade, responde o explorador veneziano, é que ela só conhece partidas e não retornos.
A grande imigração iniciada no século XIX promoveu um reencontro da Itália com o Novo Mundo, os italianos trazendo nas bagagens promessas e sonhos de um recomeço nas Américas. No Brasil, vindos a princípio para repor a mão de obra escrava que lutava por sua libertação, os italianos, que esperavam terras e riquezas, encontraram a dura realidade de muito trabalho e privações nas fazendas de café e nas colônias agrícolas. Apesar das dificuldades, foram ficando, criando raízes, e com o passar do tempo muitos acabaram por tornarem-se brasileiros, e por aqui construíram suas famílias e seus destinos.
Os acervos do Arquivo Nacional nos permitem reconstituir uma parte da história de algumas das inúmeras famílias que aqui chegaram, a maioria pelo porto do Rio de Janeiro, e partiram para o interior do Sul e Sudeste brasileiros. As relações de vapores, listagens nominais produzidas nos navios que traziam os emigrantes, os livros de entrada nas hospedarias do governo, como a da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, nos permitem reconstruir os números e os trajetos dos italianos que vinham para o Brasil. Os documentos gerados pela Inspetoria de Terras e Colonização registram sua circulação pelo território e alguns aspectos da vida nas colônias, também presentes nos mapas. Já os processos de naturalização e de permanência trazem documentos pessoais preciosos, como certidões de nascimento e casamento, e descrevem parte das atividades que exerceram no Brasil até que se decidissem por aqui permanecer definitivamente ou naturalizarem-se brasileiros. Somam-se a essa documentação mais oficial, os anúncios do Almanaque Laemmert e os rótulos de produtos, que registram os ítalo-brasileiros no comércio e o consumo de produtos italianos, os passaportes, fotografias de imigrantes e os pedidos de patente de inventos de italianos e seus descendentes.
Se em parte as viagens são dos emigrantes que deixam a Itália e rumam para o Brasil, tempos depois são os brasileiros, em circunstâncias mais graves, que fazem o caminho contrário. Nos anos 1944 e 1945, pracinhas e pilotos da Força Aérea Brasileira (FAB) embarcam em navios com destino à Europa para lutar na Segunda Guerra, em lado oposto ao dos italianos. Os acervos do Correio da Manhã e da Agência Nacional, acrescidos de imagens do Arquivo de Estado de Roma, oferecem uma variedade impressionante, e por vezes comovente, de cenas da guerra: do front ao cotidiano dos pracinhas que sofreram com o inverno rigoroso, das cidades bombardeadas à volta para casa, depois da rendição. Os italianos daqui também sofreram, por sua vez, pois temiam pelos parentes que na Europa ficaram, e enfrentavam a desconfiança dos que os acolheram décadas antes. Quando o Brasil declara guerra ao Eixo, esses imigrantes passam a ser vistos como inimigos. São tempos difíceis, de suspeitas e perseguições, quando mais italianos desistem de sua nacionalidade e adotam o Brasil como pátria.
No pós-guerra, enquanto os anos 1950 são de otimismo para os brasileiros, a reconstrução da Europa pesa sobre os italianos, que encontram no cinema das ruas, do neorrealismo a estética desses tempos. Do acervo do jornal Correio da Manhã vêm as cenas de filmes e fotos de artistas e diretores que nos vinte anos seguintes criaram uma das maiores cinematografias contemporâneas: Fellini, Antonioni, Visconti, Bertolucci formaram gerações de cinéfilos em todo o mundo. E, entre tantas manifestações do gênio artístico italiano de nosso tempo, homenageamos ainda a ópera, gênero nascido na Itália moderna, a música teatral que gerou divas e maestros como o foi o brasileiro de origem italiana Henrique Oswald.
Desta forma, fizemos também uma moderna viagem pelas relações construídas durante séculos de contatos entre italianos e brasileiros, que demonstram raízes criadas ao longo da história e que deixaram influências na cultura de ambos os povos. Convidamos a todos para empreenderem também suas viagens italianas. Andiamo in Merica!
Cláudia Beatriz Heynemann
Renata William Santos do Vale
Curadoras
Fonte: Arquivo Nacional
Leia em HCSM
– Coleção alemã relata viagens por quatro continentes no século XVIII
Nota do Blog
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