Luiz Antonio de Castro-Santos *
“Você pode responder a algumas questões para minha pesquisa?”. Hoje em dia, existe uma espécie de protocolo da “boa pesquisa”, ou da “pesquisa ética”, que visa proteger-nos, nas ruas e nos espaços da web, de pessoas e pesquisas mal intencionadas ou mal concebidas. A defesa dos procedimentos éticos, dos princípios morais aplicados às pesquisas, é feita por entidades governamentais. No Brasil, o Ministério da Saúde criou um Conselho e uma Comissão, a Conep, que têm o poder de definir o que é moralmente defensável e o que não é, nas pesquisas científicas. Certo? Isto é bom? Bem, nem sempre.
Este Blog abre um espaço de discussão, críticas e comentários sobre as normas que regulam as pesquisas no Brasil hoje em dia. Boa parte delas foi longe demais, ou são, apesar de todo o esforço governamental, inoperantes ou ineficazes.
Lembremos o caso recente da sondagem, feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ligado à Presidência da República, e que gerou enorme polêmica. O jornalista Marco Prates, em sua página de Exame.com, relata o que se deu: “Instituto reconhece erro na pesquisa em que 65% dos brasileiros concordavam que mulheres com corpo à mostra mereciam ser atacadas. Na verdade, são 26%”. Quantos críticos não diriam que faltou a esse Instituto um Comitê de Ética… Certo? Errado. Os economistas que dirigem o Instituto, tanto quanto os membros da Conep (em sua maioria, educadores físicos, médicos, nutricionistas, dentistas, enfermeiros, farmacêuticos e biólogos) não conhecem os meandros, manhas e artimanhas da Pesquisa Social – nem têm obrigação profissional de conhecê-los. Mas o modo como estatísticas sociais são geradas e difundidas pela mídia exige cautela, além da consulta a especialistas na área de pesquisas sociais.
Bastam alguns minutos diante de programas na TV sobre “boa saúde” ou “bem viver”, para sermos submetidos a avalanches estatísticas cujo grau de “certeza científica” é quase sempre menor do que supomos. Pesquisas e “sondagens” cujos resultados são discutíveis são aprovadas por comitês de ética, e sempre o serão, porque os mecanismos de filtragem e crítica são, em última instância, e mesmo quando detalhadíssimos (ou por isso mesmo), apenas protocolares.
Há pouco tempo, um centro de vigilância sanitária em São Paulo divulgou uma matéria, que a imprensa difundiu sem qualquer reparo, sobre a aprovação da lei antifumo por 83% dos fumantes entrevistados. Ora, pesquisas com pessoas discriminadas (os fumantes, neste caso) tendem a colher depoimentos que “justificam” a discriminação. Este é um mecanismo de defesa e “autoculpabilização” a que chamamos a “internalização do estigma”. Esta lição trivial está em qualquer manual de métodos de pesquisa em Ciências Sociais.
Se fossem realizadas, na década de 30 ou 40, pesquisas com leprosos nas colônias, não teria sido outro o resultado: aprovação maciça pelos próprios doentes dos métodos de insulamento e exclusão, impostos pela autoridade sanitária naqueles tempos. “Somos perigosos, podemos contaminar.” Por isso, um grupo de pesquisadores franceses difunde, há alguns anos, o conceito de “representações mudas”. Trata-se da área sombria que encobre as opiniões colhidas por pesquisadores em temas controversos ou sensíveis.
As opiniões “reais” permanecem inatingíveis, não são capturadas por pessoas despreparadas para a pesquisa social e logo divulgadas sem os necessários filtros pela mídia. Esses filtros, na verdade, devem ser construídos ou projetados pela população e é por isso que instrumentos como blogs, de debate amplo e irrestrito sobre opiniões e “verdades” cozinhadas em fogo baixo (mas que queimam) deveriam ser nossos únicos e legítimos “comitês de ética na pesquisa”.
* Luiz Antonio de Castro-Santos é professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Contribuições para o debate:
Uma crítica aos atuais comitês de ética na pesquisa no Brasil
Carta de Luiz Antonio de Castro-Santos aos editores de HCS-Manguinhos
Luiz Fernando Dias Duarte: cientistas sociais estão presos em camisa de força burocrática
Para antropólogo, submissão das pesquisas em ciências sociais e humanas à lógica biomédica é descabida e autoritária.
Maurício Reinert: ‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’
Para professor de Administração da Universidade Estadual de Maringá, submissão de pesquisas em ciências sociais ao Conep fere autonomia universitária
Flavio Edler: comitês de ética inibem liberdade de pesquisa
Historiador compara sanha reguladora à Real Mesa Censória dos tempos coloniais.
Luciano Mendes de Faria Filho: anonimato para quê?
Para o professor de Educação da UFMG, o anonimato nas pesquisas em ciências humanas mais garante o apagamento da autoria, do pensamento e da expressão dos setores populares do que a fidedignidade dos dados.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Vamos discutir os comitês de ética na pesquisa?. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 10 April 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/vamos-discutir-os-comites-de-etica-na-pesquisa