Tirinhas para competir com as telinhas

15 de outubro de 2025

Um dos maiores desafios dos professores hoje em dia é tirar o olho dos alunos do celular e tudo que dispersa a atenção deles ali. Mas disputar espaço com telas não é exatamente novidade para professores. Muitos dos que hoje sofrem com a desatenção dos alunos eram, eles próprios, vidrados em televisão na infância, e também tiveram que contar com a criatividade dos seus professores para conseguirem se concentrar na escola. E quais recursos foram experimentados por professores com crianças e jovens que viam desenhos animados de manhã, programas de auditório de tarde e seriados e novelas à noite, não necessariamente nesta ordem?

Um deles era estimular a produção, pelos alunos, de histórias em quadrinhos. Uma experiência chamada Oficina de Educação através de Histórias em Quadrinhos e Tirinhas (Eduhq), realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) no início dos anos 2000, está descrita e ilustrada no artigo Quadrinhos para a cidadania, de Francisco Caruso e Cristina Silveira, publicado na seção Imagens da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 16, n. 1, 2009).

“Em uma sociedade eminentemente visual, com o predomínio da televisão como mídia de massa, os quadrinhos não devem ser desprezados como uma mídia em favor da educação. Além de a linguagem das HQs ser de fácil compreensão, se comparada à dos livros, seu apelo visual é grande, e o seu timing (principalmente o das tiras), compatível com o timing da visão fragmentada dos videoclips, com os quais os jovens estão habituados. Ou seja, as HQs e, em particular, as tirinhas permitem uma leitura muito rápida e dinâmica da mensagem que se pretende transmitir; portanto, são estimulantes, num certo sentido”, defendem os autores.

Tirinha sobre equilíbrio ambiental feita por aluno que participou do projeto reproduzida do artigo em HCS-Manguinhos

Tirinha sobre desequilíbrio ambiental feita por aluno de escola pública que participou da Oficina Eduhq no início dos anos 2000. Reprodução de artigo publicado na revista HCS-Manguinhos.

O artigo apresenta um método, então novo, de se trabalhar conceitos de ciências, saúde, história, sociologia e linguagem, entre outros, com jovens de escolas públicas de ensino médio do Rio de Janeiro, por meio de histórias em quadrinhos. Baseado em pedagogia inspirada em Gaston Bachelard, segundo a qual conhecimento científico e produção artística são integrados a partir do estímulo da criatividade, o método contribui para o resgate da auto-estima do aluno e aumento de sua motivação nos estudos.

“Por intermédio do processo criativo e da valorização do espírito crítico, os jovens constroem sua cidadania, a partir de releituras e traduções de um novo mundo construído de ciências, de sonhos e de imagens, que se concretizam em tirinhas”, afirmam os autores. Segundo eles, sobretudo nas redes públicas de ensino, onde há maior liberdade de inovar, as HQs não são vistas como vilãs por parte dos professores e pedagogos, como no passado.

Neste método, porém, há que se dar tempo ao ensino de ciências. A regra número um do projeto, explica o artigo, é que o aluno só deve criar suas tirinhas depois de aprender e refletir sobre um determinado conceito. 

Montagem feita por aluno participante da Oficina EduHQ

Montagem sobre educação X consumismo feita por aluno participante da Oficina Eduhq

“A capacidade que têm as HQs de atrair o leitor jovem está fazendo com que educadores aproveitem cada vez mais esse instrumento, cuja utilização coaduna-se com o preconizado na Lei de Diretrizes e Bases: a valorização de situações do cotidiano e da vivência das crianças e dos jovens. Não é à toa que cresce o número de questões objetivas de vestibulares que usam charges ou tirinhas”, acrescentam.

Sediada no Instituto de Física da Uerj, a Oficina Eduhq contou com a participação de pesquisadores de diversas instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro e de alunos de várias escolas do estado. As tirinhas que ilustram o texto surpreendem os leitores em vários aspectos. Confira no arquivo PDF.

Escrito em um pedacinho de papel, o depoimento de um dos primeiros alunos da Oficina Eduhq – Gleidson de Castro Araújo, do Ciep 169 de São João de Meriti – emocionou os pesquisadores, incentivando-os a continuar no caminho: “É gostoso escrever e imaginar. Os desenhos nos fazem sonhar. As palavras nos fazem pensar. As histórias nos fazem viajar por um mundo desconhecido”.

Quem sabe pergunta com a qual os autores encerram o artigo escrito há mais de 15 anos poderá ajudar professores de hoje a lidar com a competição do mundo oculto dos celulares de cada um: “Por que não incluir a ciência nesse mundo ‘desconhecido’ a ser descoberto com prazer?”

Leia na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Quadrinhos para a cidadania, artigo de Francisco Caruso e Cristina Silveira (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 16, n. 1, 2009)

Leia também:

Os cientistas em quadrinhos: humanizando as ciências, artigo de Carlos Henrique Fioravanti, Rodrigo de Oliveira Andrade e Ivan da Costa Marques (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.23, n.4, dez/2016)
Publicados diariamente de 1994 a 2002 no jornal Correio Popular, de Campinas, os quadrinhos Os cientistas, produzidos por jornalistas e pesquisadores brasileiros, apresentaram a prática científica de modo crítico e irreverente, expondo a insegurança e as frustrações dos cientistas, além dos conflitos entre eles e da dificuldade de comunicação com outros grupos, como os jornalistas.