Outubro/2020
Após a Segunda Guerra Mundial, questionamentos sobre o conceito de saúde, o papel do Estado e do médico e a demanda por cobertura de serviços assistenciais impulsionaram o desenho de novos modelos de atenção e organização da saúde no mundo. No Brasil, formulou-se o Sistema Nacional de Saúde (SNS), instituído em 1975 e precursor do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pela tese O processo de construção do Sistema Nacional de Saúde: tradição e inovação na Política de Saúde Brasileira (1940-1980), Christiane de Roode Torres recebeu, em setembro, uma menção honrosa do Prêmio Oswaldo Cruz de Teses na categoria Ciências Humanas e Sociais.
Sob orientação de Carlos Henrique Assunção Paiva, ela recorreu à corrente teórica do neoinstitucionalismo para analisar como a definição de políticas públicas para uma sociedade reflete conflitos de interesses e arranjos de poder que perpassam instituições. Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, Christiane apresenta a sua pesquisa de doutorado realizada na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Na apresentação da tese, você conta que o seu interesse pelo objeto e a temática é fruto de sua experiência profissional como médica nas diferentes esferas de atenção à saúde, pública e privada, “tendo vivenciado na prática as congruências e incongruências do atual Sistema de Saúde brasileiro”. Poderia falar um pouco dos aspectos que mais lhe chamaram atenção?
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido um tema recorrente para os pesquisadores da área da saúde. O SUS foi uma proposta grandiosa que precisou de uma gradual mudança de paradigma na forma como se entendia o conceito de saúde e seu acesso. De implantação recente, do ponto de vista histórico, vem lidando com dificuldades em diferentes esferas e ainda não alcançou, na prática, o que se propôs em teoria. Na minha rotina como médica no SUS, sempre foi notória a dificuldade de acesso da população aos serviços e a precariedade de grande parte destes. Por outro lado, não só dispomos gratuitamente de assistência médica para grande parte dos brasileiros, assim como de serviços de excelência. Ademais, tivemos importantes conquistas, como a política de medicamentos genéricos e o Programa Nacional de Imunizações, sendo estes inclusive mencionados e elogiados fora do Brasil. Em paralelo, houve um enorme crescimento da iniciativa privada no setor, atendendo à demanda daqueles que se encontram em melhores condições financeiras, mas que se valem do SUS nas (oportunas) lacunas de assistência das operadoras de saúde. Esses paradoxos sempre me chamaram a atenção, e poder me debruçar no estudo e compreensão deles foi extremamente interessante e esclarecedor.
Você estudou a formulação da primeira proposta de organização de um sistema de saúde do país – o Sistema Nacional de Saúde (SNS), instituído em 1975 – e analisou iniciativas de organização da assistência desde 1940 até 1980. Por que escolheu este recorte temporal e a corrente teórica do neoinstitucionalismo para o estudo?
Em relação ao recorte temporal, os anos 40 foram escolhidos como marco inicial da pesquisa pela intensidade e qualidade das discussões em saúde que ocorreram marcadamente a partir da Segunda Guerra Mundial em todo o mundo. Os questionamentos em torno do conceito de saúde, do papel do Estado para o bem-estar social e do médico como agente de transformação na saúde, assim como a demanda pela expansão da cobertura dos serviços assistenciais, serviram como pilares para propostas de novos modelos de atenção e de organização do setor. Uma vez instituído o Sistema Nacional de Saúde brasileiro, em 1975, foi selecionado o período seguinte de cinco anos, ou seja, até 1980, com o objetivo de examinar a receptividade pública e setorial a esta nova configuração organizacional da saúde, o que também poderia lançar luzes sobre o seu processo anterior, de formulação.
Em relação à corrente teórica, o neoinstitucionalismo se propõe a analisar como o processo de definição de políticas públicas para uma sociedade reflete os conflitos de interesses e os arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as instituições do Estado e da sociedade como um todo. Nesse sentido, a vertente denominada neoinstitucionalismo histórico objetiva construir uma teoria de médio alcance, que estabeleça uma ponte entre as análises centradas no Estado e na sociedade. Existem estudos de base institucionalista que demonstram como a incorporação de atores e a definição dos procedimentos que ordenam as representações de interesses na arena política formatam as opções políticas das nações para seus sistemas de saúde, visto que incluem e excluem diferentes grupos de atores, explicando por que alguns ganham enquanto outros perdem. O arcabouço institucional, segundo suas normas e mecanismos, seria o responsável pela incorporação de atores com interesses específicos que, ao longo de processos de negociação, tendem a optar por formatos de políticas que contemplem seus interesses ou, minimamente, criem ou mantenham abertas janelas de oportunidade para ganhos futuros. Adicionalmente, políticas já estabelecidas podem formar novos grupos de interesses, cuja organização e constituição de atividades podem ainda inibir a formação ou a expansão de outros grupos, ou seja, ações governamentais específicas podem criar incentivos à organização de determinados grupos favorecidos pelas políticas. Estes, em defesa de seus interesses, podem oferecer obstáculos a alterações institucionais e/ou de políticas posteriormente, aumentando os custos associados à adoção de alternativas diversas, o que dificulta o abandono de certa trajetória. Sendo assim, a abordagem dessa linha oferece os elementos teórico-metodológicos necessários para a análise da política de saúde, por meio da valorização dos aspectos institucionais, históricos, políticos, econômicos e sociais, que condicionam seus processos de formulação e de implantação, temas principais desta pesquisa.
Você buscou reconstituir a dinâmica das forças políticas e grupos de interesses e suas propostas e negociações, que culminaram na formalização institucional do SNS. Quais eram os atores e ideias envolvidos nesse contexto?
No percurso da pesquisa foram descritos os principais atores envolvidos, a citar: os segmentos da sociedade civil, os profissionais do setor de saúde, o governo militar, as organizações internacionais e o mercado internacional de equipamentos e medicamentos. Foram analisadas, também, as principais ideias circulantes, como: saúde enquanto direito, integralidade do cuidado, saúde e desenvolvimento, aumento de cobertura, planejamento, racionalidade e organização da saúde. É claro que esses atores e ideias veiculavam diferentes interesses, como os de corporações, burocracias públicas e empresas, que estavam inseridos em um arcabouço institucional construído ao longo das décadas anteriores, formado pelo Ministério da Saúde, pela Previdência Social e pelo setor privado da saúde. Vale ressaltar que o momento em questão era marcado por um novo cenário político de um regime ditatorial em abertura política, com valorização do social e que, aliado a uma nova filosofia pública de desenvolvimento econômico e social, resultou na criação de novas instituições (Ministério da Previdência e Assistência Social) e dispositivos legais (Conselho de Desenvolvimento Social e o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social). A esse cenário se alinharam as ideias programáticas governamentais que, através do campo administrativo, materializaram a política de saúde na qual se constituiu o Sistema Nacional de Saúde, em 17 de julho de 1975.
Quais as principais características positivas e negativas do SNS, uma vez instituído?
Na perspectiva das principais críticas de autores do período, o SNS acabou por institucionalizar a dicotomia na assistência, apresentando mais elementos de continuidade institucional do que de inovação na organização da saúde brasileira. De fato, as dificuldades de entrosamento e coordenação entre as atividades assistenciais do Ministério da Previdência e Assistência Social e do Ministério da Saúde, descritas no trabalho, constituíram entraves relevantes à adequada implantação e funcionamento do SNS. A descentralização executiva, que demandava a reorganização das esferas do governo, também encontrou resistências políticas e administrativas, assim como limitações financeiras. Por sua vez, o modelo de atenção à saúde permaneceu centrado no hospital e focado em ações curativistas, em detrimento das preventivas, mantendo-se o padrão de compra de serviços ao setor privado, cuja autonomia e poder político-financeiro se ampliaram significativamente.
Por outro lado, o SNS trouxe a noção de “sistema” de forma pragmática para a organização do setor de saúde e com ele se sedimentaram certas tradições e ideias há muito discutidas, como a inserção do planejamento na estrutura administrativa das esferas estatais, o papel do Estado como ente regulador, a universalização da cobertura, a descentralização, a hierarquização e a integração de todos serviços de saúde, e até mesmo a unificação institucional dos serviços de saúde, ainda que no caso do SNS, esta tenha se efetivado pelo Conselho de Desenvolvimento Social e não no nível ministerial. Não menos importante, o SNS também pode ser analisado como um reconhecimento oficial de algumas questões e problemas do setor de saúde, sendo a primeira tentativa concreta de expandir e racionalizar o complexo sistema de saúde, buscando utilizar toda a capacidade instalada e instituindo, ainda que de forma inicial, a noção de saúde como direito dos cidadãos, dentro do contexto político vigente. Adicionalmente, embora tenha se mantido a separação institucional entre as ações de saúde de cunho coletivo e as individuais, respectivamente a cargo do Ministério da Saúde e do Ministério da Previdência e Assistência Social, definiu-se uma “unidade de gestão do sistema” a partir do Conselho de Desenvolvimento Social. O CDS tinha como função assessorar o Presidente da República na formulação da política social e na coordenação das atividades dos Ministérios envolvidos, segundo a orientação geral definida no Plano Nacional de Desenvolvimento, sendo também responsável por avaliar a política nacional de saúde, formulada pelo Ministério da Saúde, e os planos setoriais dos Ministérios da Previdência e Assistência Social e da Educação e Cultura, referentes à assistência médica e formação profissional médica e paramédica, fixando as diretrizes para sua execução. Desta forma, houve de fato uma iniciativa inédita no sentido de planejar, organizar, coordenar e integrar as ações em saúde, buscando alinhá-las ao desenvolvimento social e econômico, ou seja, houve uma mudança da perspectiva normativa para a perspectiva política da organização da saúde pública.
De alguma forma foi possível aprender com os erros para o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS), que há 30 anos sucedeu o SNS? Comparativamente, o que evoluiu e o que ainda precisa avançar?
O SNS emergiu quase que concomitantemente ao Movimento Sanitário e acredito ser possível que, a partir de seus desafios e contradições, mas também de seus acertos, boa parte de suas ideias e experiências tenham servido de base técnico-política e epistemológica para a formulação e criação do SUS.
No que diz respeito aos avanços alcançados com o SUS, em comparação ao SNS, cabe destacar: a unificação ministerial dos serviços de saúde, a descentralização executiva e a municipalização, o direito constitucional à saúde, a universalidade do acesso e a participação da população nas decisões do setor.
Já sobre os aspectos onde o SUS precisa melhorar, a resposta é complexa, mas vou buscar colocar a minha opinião de forma objetiva e sucinta, sem necessariamente querer simplificar a questão. Acredito que precisamos avançar na discussão sobre uma melhor captação e gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros, e no aprimoramento dos mecanismos de regulação das redes de atenção em saúde e suas relações com o setor privado.
Como citar:
Torres, Christiane de Roode. Tese sobre a construção do Sistema Nacional de Saúde ganha menção honrosa da Fiocruz. Entrevista ao Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado em 17 de outubro de 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/tese-sobre-a-construcao-do-sistema-nacional-de-saude-ganha-mencao-honrosa-da-fiocruz
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Doutores pela Casa de Oswaldo Cruz vencem Prêmio Oswaldo Cruz de Teses em Ciências Sociais e Humanas
Rachel de Almeida Viana recebeu o primeiro lugar na área de Ciências Humanas e Sociais, e Christiane de Roode Torres e Denis Guedes Jogas Junior menções honrosas