Surto de febre amarela coloca em pauta investimento em infraestrutura sanitária e combate à pobreza, diz historiador

Janeiro/2017

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Marcos Cueto. Foto: Roberto Jesus Oscar/COC

A atual crise sanitária ligada à febre amarela é resultado de uma série de fatores já bem conhecidos por historiadores das ciências e da saúde e de áreas envolvidas no controle da doença. O crescimento desordenado das cidades, a falta de saneamento básico – um problema também observado no início do século 20 –, e a persistência de outros determinantes sociais são alguns dos entraves ao combate da febre apontados pelo historiador Marcos Cueto, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “Soluções como pedir [à população] para eliminar os reservatórios de larvas dos mosquitos são necessárias, mas paliativas. É preciso pensar em investimentos na infraestrutura sanitária da população urbana”, afirma Cueto, que é autor, juntamente com Steven Palmer, do livro Medicina e Saúde Pública na América Latina: uma história, publicado recentemente em português pela editora Fiocruz. O historiador ressalta o papel desempenhado pela Fundação Rockefeller no combate à febre amarela ao longo do século 20 no país. Cueto lembrou que a instituição norte-americana recebia apoio de muitos políticos em sua empreitada de eliminar a doença das cidades e portos mais importantes do Brasil uma vez que “o motor da economia era a exportação de matérias-primas”. Editor científico da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, publicada pela COC/Fiocruz, Cueto ressalta que o enfrentamento à febre amarela não pode ser pensado a partir de soluções simples e de curta duração. “Precisamos de uma combinação da melhor ciência e do conhecimento sanitário, da participação das comunidades afetadas e a decisão política para enfrentar os problemas da pobreza que contribuem para os surtos epidêmicos de febre amarela”, avalia. Acompanhe a entrevista com o pesquisador. Como os estudos históricos sobre a febre amarela podem contribuir na elaboração de políticas públicas de combate à doença? Problemas complexos – que têm uma longa história – não podem ter soluções simples de curta duração. Precisamos de uma combinação da melhor ciência e conhecimento sanitário, da participação das comunidades afetadas e de uma decisão política para enfrentar os problemas de pobreza urbana que fazem com que existam surtos epidêmicos da febre. Os historiadores não vão dar lições aos sanitaristas, mas podem mostrar que, em situações de crise sanitária no passado, existiram – como agora – uma tentação a soluções autoritárias, confiantes somente na tecnologia, e que não resolviam os determinantes sociais e políticos da febre amarela. Se, diferentemente do início do século 20, hoje temos uma vacina contra a febre amarela e dispomos de uma área urbana mais desenvolvida do que na época de Oswaldo Cruz, por que ainda convivemos com a ameaça da doença? O saneamento urbano é de novo um problema. No começo do século 20, a maioria da população nacional não morava nas cidades. Agora, sim. O crescimento urbano foi desordenado e mais rápido que o incremento da infraestrutura sanitária. Os sanitaristas sempre foram conscientes que a vacina não era suficiente. Além disso, faziam controle vetorial e procuravam promover sistemas de água e esgoto nas favelas. Então, melhores políticas de saneamento podem contribuir hoje no controle de doenças como febre amarela, dengue e chikungunya? Sem dúvida. Na maioria das favelas e zonas rurais, os sistemas para obter água são precários e geralmente pouco sanitários – e por isso há reservatórios de larvas. Soluções como pedir [à população] para eliminar os reservatórios de larvas dos mosquitos são necessárias, mas paliativas. É preciso pensar em investimentos na infraestrutura sanitária da população urbana. Essa foi uma das recomendações de Michael Marmot na Comissão de Determinantes Sociais de Saúde formada pela Organização Mundial de Saúde. Qual foi a importância da Fundação Rockefeller no combate à febre amarela no Brasil e em outros países da América do Sul? As campanhas da Fundação Rockefeller na América Latina aconteceram entre 1918 e 1928 e, sem dúvida, ajudaram a fazer desaparecer a febre das cidades e portos mais importantes. Foram apoiadas por muitos políticos, porque o motor da economia era a exportação de matérias-primas. Além disso, a Rockefeller formou uma geração de sanitaristas nos métodos norte-americanos em um momento em que a maioria de médicos achava que Paris era a meca da medicina, e o francês, o latim da ciência. Depois das campanhas da Rockefeller, foi mais clara a influência do modelo de educação médica norte-americana no Brasil e na América Latina. Quais eram as diferenças do combate ao mosquito Aedes aegypti feito pelos especialistas da Fundação Rockefeller e os agentes sanitários brasileiros nas três primeiras décadas do século 20? O que era a teoria do “foco-chave”? Segundo a Rockefeller, o ataque tinha que se concentrar nas larvas e nos grandes centros urbanos – centros-chave. Eles acreditavam que se colocassem peixes de rio em recipientes domésticos de água, reduziriam a níveis insignificantes as larvas do Aedes. Também achavam que cidades pequenas não podiam sustentar a infecção e que o melhor era concentrar esforços e controlar os surtos nas cidades grandes. Os brasileiros davam importância à fumigação, que era dirigida a eliminar os mosquitos adultos. Em parte por uma negociação com os sanitaristas brasileiros e a Rockefeller, o resultado foi uma combinação de luta contra as larvas e luta contra os mosquitos adultos. A ideia dos centros-chave estava errada. Em fins da década de 1920, cientistas da Rockefeller, brasileiros e de outros países de América Latina descobrem que a febre pode sim sustentar-se endemicamente nas pequenas cidades e áreas rurais, que existe um hospedeiro elusivo na Amazônia – os macacos – e que, além do Aedes aegypti, existem outras espécies de Aedes que podem transmitir a doença. Por isso, nos anos 1940, a erradicação da febre nunca foi um alvo, como o foi a erradicação da malária. As estratégias de Oswaldo Cruz ainda devem servir como exemplo a ser seguido nos dias de hoje? [Devem servir] sobretudo [como] uma inspiração e uma demonstração de que boas respostas políticas precisam de boa ciência, tecnologia e saúde pública. A isso temos que acrescentar a participação nas respostas das comunidades afetadas e os agentes comunitários de saúde. Fonte: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos: Teorias sobre a propagação da febre amarela: um debate científico na imprensa paulista, 1895-1903, artigo de Soraya Lódola e Edivaldo Góis Junior, vol. 22, n.3, jul.-set. 2015. Cidade-laboratório: Campinas e a febre amarela na aurora republicana, artigo de Valter Martins, vol.22, n.2, jan./abr. 2015 Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Artigo de Kaori Kodama, vol.16, no.2, Jun 2009 A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50). Artigo de Cláudia Rodrigues, vol.6, no.1, Jun 1999 Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo. Artigo deMarta de Almeida, vol.6, no.3, Fev 2000 Produzindo um imunizante: imagens da produção da vacina contra a febre amarela. Artigo de Aline Lopes Lacerda e Maria Teresa Villela Bandeira de Mello, vol.10, supl.2, 2003 Da ‘abominável profissão de vampiros’: Emílio Goeldi e Os mosquitos no Pará (1905). Artigo de Nelson Sanjad, vol.10, no.1, Abr 2003 Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil. Artigo de Ilana Löwy, vol.5, no.3, Fev 1999 Dengue no Brasil. Marzochi, Keyla et al., vol.5, no.1, Jun 1998 Leia no Blog de HCS-Manguinhos: Artigo discute o debate científico sobre a propagação da febre amarela na imprensa paulista de 1895 a 1903 Soraya Lódola e Edivaldo Góis Junior, da Unicamp, demonstram as disputas por poder na medicina Campinas: laboratório da febre amarela Em artigo publicado em HCS-Manguinhos, Valter Martins discute o trabalho da Comissão Sanitária do Estado de São Paulo para conter a doença no fim do século XIX O papel de Havana na busca pelo germe causador da febre amarela no século 19 Steven Palmer, da Universidade de Windsor, Canadá, abordou o tema em workshop sobre doenças tropicais na Fiocruz. Ideias de raça influenciaram diagnóstico da febre amarela no Caribe no início do séc. 20 Tara Innis, da Universidade de West Indies, em Trinidad e Tobago, participou de mesa no workshop sobre doenças tropicais realizado na Fiocruz de 1º a 3 de julho