Março/2014
Graça Portela | Icict/Fiocruz
Com a chamada “Brasil aprova a constituição da Internet”, o jornal espanhol El País, considerado um dos mais importantes do mundo, destacou a aprovação do Marco Civil da Internet pela Câmara dos Deputados, no Brasil. Com isso, o país passa a ser o pioneiro na defesa dos direitos dos que navegam na internet, pois a proposta estabelece princípios, garantias, direitos e deveres na grande rede.
O projeto de lei que já tramitava desde 2011, no Congresso Federal, ganhou maior peso e pedido de urgência em sua votação em função das denúncias divulgadas por Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês), que revelou que o governo americano havia monitorado vários chefes de estado e países, entre eles a presidenta Dilma Rousseff e a chanceler alemã Angela Merkel, com programas especiais, que incluíam, dentre outras coisas, o rastreamentos de seus e-mails e acessos à internet. Em outubro de 2013, os governos do Brasil e da Alemanha pediram à ONU (Organização das Nações Unidas) que promovesse o direito à privacidade de internet em todos os países.
A aprovação do projeto envolveu uma ampla negociação entre o Governo Federal e os partidos do Congresso. O Governo aceitou alterar alguns pontos considerados polêmicos pelos deputados da oposição e também da base aliada, como o processo de regulamentação do princípio da neutralidade de rede, que assegura a não discriminação do tráfego de conteúdos, que será regulamentada depois de consulta à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGR.br). Outro destaque foi a queda da obrigatoriedade das empresas provedoras de conexão e aplicações de internet manterem em território nacional a estrutura de armazenamento de dados, os “data centers”. As empresas podem até manter fora do país os dados, mas estarão sujeitas, obrigatoriamente à legislação brasileira.
O projeto estabelece, dentre outros pontos, a garantia do direito à privacidade dos usuários, especialmente em relação à inviolabilidade e ao sigilo de suas comunicações pela internet, não permitindo que as empresas vendam os dados de seus clientes para setores de marketing ou vendas, apenas caso haja consentimento do usuário; os registros constantes de sites de buscas, os e-mails, dentre outros dados, apenas poderão ser armazenados por seis meses. O projeto estabelece os casos em que a Justiça pode requisitar registros de acesso à rede e a comunicação de usuários. De acordo com o texto aprovado, as empresas não poderão limitar o acesso a certos conteúdos ou cobrar preços diferenciados para cada tipo de serviço prestado. Para o consumidor, o projeto também estabeleceu a manutenção da qualidade contratada de conexão e que as empresas devem ter informações claras e completas nos contratos.
Além disso, outro ponto de destaque é que na luta contra o cyberbullying, o projeto prevê que as empresas de conteúdo devem retirar, a pedido das vítimas, imagens e vídeos contendo cenas de nudez ou sexo que não têm autorização da pessoa atingida para ser veiculada.
O texto ainda depende de aprovação no Senado Federal, que tem até 45 dias para votá-lo, sob risco dele trancar a pauta de votação. Caso seja aprovado, segue para sanção presidencial e deverá ser apresentado no IV Forum da Internet no Brasil, nos dias 25 e 26/04, em São Paulo, quando será realizada a Reunião Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet – a Net Mundial. Na reunião, que trará representantes de várias partes do mundo, serão debatidos os “Princípios de governança da Internet” e um “Roteiro para a evolução futura do ecossistema da governança da Internet”.
Até o filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy, que esteve no país no início de março para lançar o seu livro “A esfera semântica”, se manifestou favorável ao Marco, afirmando, em uma entrevista coletiva: “Entre os melhores aspectos do Marco Civil estão o fato de ele ter sido criado de forma colaborativa; sua defesa da neutralidade de rede; e sua proteção da liberdade de expressão. Trata-se de algo positivo em todos os níveis. O Brasil está na vanguarda desse movimento, e vocês devem continuar lutando”.
A aprovação de uma lei democrática
No depoimento abaixo, o vice-diretor de Informação e Comunicação do Icict Rodrigo Murtinho fala da importância do Marco Civil e o que ele representa para a sociedade.
A aprovação do Marco Civil da Internet na Câmara dos Deputados foi uma conquista com múltiplos significados, com ampla repercussão social, inclusive na saúde.
Um primeiro significado a destacar diz respeito ao processo de construção como projeto de lei. A proposta de Marco Civil passou por um longo processo de consulta pública e mobilização, iniciada em 2009, que recebeu mais de duas mil contribuições de setores variados como governos, movimentos sociais, organizações não-governamentais, universidades e empresas. Passou também por uma ampla negociação no Congresso Nacional, incorporando contribuições de diversos partidos. E na reta final, sua aprovação foi alvo de grande mobilização social, no Congresso e na internet. Representa, portanto, uma vitória do processo democrático, da participação social na formulação e na definição da legislação do país. Processo que se assemelha à construção do Sistema Único de Saúde (SUS), formulado inicialmente na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) e consolidado com o reconhecimento do direito à saúde na Constituição de 1988.
Outro aspecto significativo é o próprio conteúdo do projeto aprovado. Trata-se de uma das legislações mais avançadas do mundo, reconhecida inclusive por autoridades no tema, como o físico britânico Tim Berners-Lee, criador da WEB. No texto final foi preservada a ideia original de constituir uma “carta de direitos na rede”, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres. Apesar das tentativas de alterar o projeto, para beneficiar as grandes operadoras de telecomunicações, foram mantidos os princípios estruturantes do Marco Civil, a neutralidade de rede, a liberdade de expressão e privacidade. Embora o Marco Civil dependa ainda da aprovação do Senado e de regulamentação posterior, pelo executivo, o texto sofreu menos alterações do que o esperado. A afirmação do Marco Civil como uma “carta de direitos” é um passo importante para o reconhecimento, por parte do Estado, do direito à comunicação como um direito humano fundamental.
Por fim, cabe destacar um aspecto simbólico, que tem consequências no mundo concreto. O resultado da votação do Marco Civil na Câmara representa a aprovação de uma lei democrática no campo da comunicação, contrariando a longa tradição de legislações autoritárias que sempre beneficiaram empresários de radiodifusão e de telecomunicações no Brasil. Caso o texto aprovado na Câmara seja confirmado pelo Senado e sancionado pelo executivo, teremos dado um passo importante para que a internet mantenha suas características atuais e se consolide como um espaço democrático, onde a ação em nome de interesses comerciais não possa limitar a criação, a liberdade de expressão, a mobilização social e a prestação de serviços públicos. Conquista que precisa ser aprofundada, com implantação de políticas públicas que garantam a universalização do acesso à banda larga no país.
Sobre a importância do Marco Civil da Internet para o campo da saúde, além dos aspectos já citados, vale ressaltar o trecho do manifesto assinado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 2013, que afirma que a internet “se constituiu em espaço essencial ao debate público, ao controle social exercido pelas entidades que compõem os conselhos de saúde, à formação continuada de profissionais da área, além de fundamental para acessar informações e serviços de saúde”.
Fonte: Icict/Fiocruz