Agosto/2022
Por Karine Rodrigues | Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Reconhecida mundialmente por reunir, nas primeiras décadas do século 20, instituições de pesquisa e acadêmicas de excelência e desempenhar um importante papel na rede científica internacional, a Alemanha ficou sem acesso aos achados divulgados nas páginas da prestigiada revista Nature, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo. O periódico britânico foi proibido nas universidades alemãs em novembro de 1937, quando o país estava sob domínio de Adolf Hitler (1889-1945). O veto foi do próprio governo alemão, que não usou meias palavras para justificar a medida, comunicada de forma discreta, diretamente para as universidades, sem publicação no jornal oficial:
“Na revista científica semanal Nature, publicada em Londres, surgem frequentemente ensaios que contêm ataques baixos e ultrajantes à ciência alemã e ao Estado nacional-socialista. Essa revista tem por isso de ser excluída da zona de usuais das bibliotecas científicas”. A Nature negou as acusações e reafirmou o propósito de seguir na luta pela “liberdade científica”.
Discutido em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde, Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), o episódio marcou uma mudança na cultura científica do mundo ocidental. À época, observa o autor do estudo, Fernando Clara, professor da Universidade Nova de Lisboa, o radicalismo tomou conta de algum discurso científico, e os bloqueios nacionalistas que então se ergueram foram por vezes “violentos, outras vezes excessivos e quase sempre muito ruidosos”.
“Esse ruído constitui um sinal ineludível de uma importante transformação do papel da ciência na sociedade e do próprio espaço que ela ali ocupava. As discussões da época evidenciam que o discurso científico se desloca de um espaço relativamente reservado, e que se sentira até aí em grande medida alheio às tensões políticas internacionais, para um espaço público e político de primeiro plano”, acrescenta Fernando Clara.
Danos causados pela desinformação foram significativos
Clara discorre sobre essa mudança, destacando as discussões públicas motivadas pela teoria que via nos alemães uma “raça superior”. Na época, cientistas europeus e anglo-americanos de renome, como Franz Boas, Ruth Benedict e Julian Huxley, assinaram panfletos e livros contestando cientificamente e repudiando publicamente a visão de raça da Alemanha, buscando informar a opinião pública sobre o tema. Ainda assim, os danos causados pela desinformação sobre o conceito de raça foram tão significativos que, no pós-guerra, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) realizou uma campanha de esclarecimento que durou anos e contou com a participação de intelectuais reputados, entre eles, Claude Lévi-Strauss.
“É certo que o racismo não foi erradicado, mas ainda assim parece-me que este trabalho de esclarecimento da opinião pública [pelos cientistas] é, em alguns momentos, tão importante quanto o trabalho de laboratório, principalmente quando o ruído da desinformação parece ser dominante”, diz Clara, doutor em Cultura Alemã, e responsável pelo projeto de pesquisa O poder da ciência: ciência alemã em Portugal (1933-45), já finalizado.
No estudo publicado em História, Ciência, Saúde – Manguinhos, Clara analisa o modo como a Nature tratou a ciência alemã, desde a criação da revista, em 1869. Cerca de metade dos artigos relacionados com a Alemanha foram publicados entre 1933 e 1945, período no qual Hitler estava no poder. Ele observou uma transformação no discurso. Com o início da Primeira Guerra, o tom mais informativo deu lugar a denúncias dos “objetivos e ambições da Alemanha”. Terminado o conflito, ele voltou a predominar nas páginas da revista britânica, mas não por muito tempo. Após 1918, com os nazistas no poder, houve nova mudança quantitativa, qualitativa e temática dos textos.
“A exclusão da Nature das bibliotecas alemãs em finais de 1937 decorre desse indisfarçável crescendo conflitual e do acumular de tensões entre o regime nazista e a comunidade (científica) britânica”, escreve o pesquisador, acrescentando que a questão judaica está presente em “boa parte” das notícias publicadas sobre a Alemanha nazista no período em análise.
O autor do estudo detalha uma das polêmicas do período, iniciada com um texto do fisiólogo britânico Archibald Vivian Hill, Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1922, publicado na Nature em dezembro 1933. Ao discorrer sobre a situação internacional e as obrigações da ciência, Hill cita a tradicional imunidade dos cientistas num cenário de guerra, reafirma a necessidade da liberdade de “pensamento”, “crença”, “ação” e “palavra” para o avanço da ciência, menciona os milhares de “advogados, médicos e professores” impedidos de exercer a sua profissão pelo regime nazista, além dos “100 mil que se encontram em campos de concentração” e a exclusão de “mais de mil intelectuais e cientistas”.
No mês seguinte, a revista abre espaço para o também britânico J.B.S. Haldane, então diretor de investigação genética no centro Hortícula John Innes. Embora agradeça a Hill por ter abordado o tema em questão, deixa claro que se opõe à “imunidade” que o Nobel reclama para a ciência. Para ele, como a ciência e os cientistas estão integrados numa sociedade, não podem e nem devem “abdicar da sua capacidade de intervenção social nem de seus direitos políticos”.
A discussão segue com a reação da Alemanha Nazista, por meio do Nobel da Física em 1919, Johannes Stark. Em texto publicado na Nature, ele contesta as afirmações de Hill sobre a forma como o governo nacional-socialista tratava os cientistas alemães, contraria números dos excluídos e dos internados em “campos de concentração” e frisa que as medidas relacionadas aos cientistas judeus tinham como objetivo dar um ponto final na “enorme e injustificada influência” que estes tinham em algumas instituições científicas alemãs.
O embate segue com outros apartes, de Hill e de Stark, e finaliza com Haldane, que usa as palavras do então reitor da universidade de Frankfurt para descrever a crua “realidade dos fatos” na Alemanha nazista: “Hoje em dia, a missão das universidades não é cultivar a ciência objetiva, mas sim uma ciência militante e soldadesca, e a sua principal tarefa é formar o carácter e a vontade dos seus estudantes”.
“Evolução da ciência decorre de permanente questionamento”
Ao refletir sobre o episódio nas primeiras décadas do século 20 e o momento atual, no qual a epidemia de Covid-19 abriu espaço para debates também marcados por ruídos, relacionados, por exemplo, à eficácia da vacina contra o novo coronavírus, Clara chama atenção para os limites entre técnica e militância: “A partir do momento em que as discussões científicas se deixam dominar pelas discussões políticas torna-se difícil distinguir o que é técnico do que é militante. Respostas técnicas a um problema podem ser interpretadas como ideologicamente empenhadas e vice-versa”.
Segundo ele, embora a ciência seja naturalmente permeável aos valores da sociedade e, por vezes, também às ideologias dominantes, ela se diferencia de outros tipos de conhecimento por questionar constantemente a si própria. “Esse é de resto um aspecto fundamental, uma vez que a própria evolução da ciência decorre deste permanente questionamento dos seus fundamentos e dos seus métodos”, finaliza.
Fonte: Newsletter #emCasa | Ano 3 | Edição n.10 | 29 Julho 2022, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Leia na revista HCS-Manguinhos:
O saber nos labirintos do poder: a Europa e a (inter)nacionalização da ciência na primeira metade do século XX, artigo de Fernando Clara (Hist. cienc. saude-Manguinhos vol. 29 n.2 • abr/jun 2022)