Julho/2014
Bernardo Sorj *
O Brasil só teve um destaque na Copa, a ação da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Desmantelou a armação do executivo da empresa Match — com contrato de exclusividade com a Fifa até 2023 para os pacotes de alojamento durante a Copa do Mundo —, que dirigia uma rede de venda ilegal de ingressos para os jogos, desde sua suíte no Copacabana Palace. Muita água ainda deve rolar sobre como foram montados os preços inflados das diárias de hotel, sob o comando da Match.
O padrão Fifa de qualidade é muito curioso. Quem paga por ele são os países que organizam a Copa. A Fifa fica com a arrecadação bilionária com os contratos de transmissão, de propaganda e todos os negócios que acompanham o evento, inclusive o contrato multimilionário com a Match. Dinheiro certamente não falta, mas a entidade impinge ao país-sede a obrigatoriedade da venda de cerveja nos estádios, um absurdo tanto do ponto de vista dos valores esportivos, quanto das consequências óbvias de aumento das possibilidades de distúrbios e de acidentes daqueles que vieram de carro.
Entre a forma Fifa de agir e a da CBF, as similitudes e relações são múltiplas. Em ambas, uma trupe se apropria de uma paixão popular para agir sem transparência, ganhar fortunas e sair impune. No caso da CBF, as consequências da falta de visão e de planejamento são mais dramáticas, pois afetam diretamente os sentimentos de um povo.
Mas que povo é esse? No jogo contra Alemanha, já no final do primeiro tempo, circulavam nas redes sociais gozações sobre a seleção, o técnico e alguns locutores. O típico mecanismo de defesa brasileiro, o esculacho e a gozação, que personaliza e transfere para o outro a responsabilidade pelo acontecido. Uma reação que enxerga o dedo e não o que ele aponta, que se esgota em si mesma, levando à apatia, à resignação e ao esquecimento. Enquanto há festa e chances de vitória, entramos no transe coletivo, quando vem a derrota caímos fora! A Copa seria “nossa”, o vexame foi “deles”.
Não se trata de desejar que pessoas realizem haraquiris porque a honra nacional foi maculada. Mas de assumir o lado sofrido, coletivo, reconhecendo que a desorganização da seleção, as falcatruas na CBF, as negociatas do Congresso Nacional, a cupidez das empreiteiras e a incompetência do governo falam de todos nós, pois a responsabilidade também é nossa.
Se aprendermos com o acontecido e lutarmos por mudanças, a Copa deixará um legado. Ele não será material, pois os estádios, certamente agora mais bem equipados, ficarão mais elitizados, já que os ingressos deverão aumentar para pagar os investimentos. Para o mundo fica a mensagem que eventos caros são para países ricos que podem bancar a conta ou regimes autoritários que precisam deste tipo de operação de prestígio para se legitimarem. Nas democracias onde a população ainda sofre enormes carências a prioridade é pão, não circo.
* Bernardo Sorj é sociólogo
Fonte: O Globo, 13 de julho de 2014
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