Outubro/2018
Blog de HCS-Manguinhos ENTREVISTA COM LIGIA GIOVANELLA Quarenta anos depois da Declaração de Alma Ata, que garantiu o direito humano universal à saúde, vem aí a Declaração de Astana, que resultará da Conferência Global de Atenção Primária à Saúde, a se realizar em 25 e 26 de outubro, também no Cazaquistão. Há uma preocupação que a Carta de Astana desvirtue a de Alma Ata, pois nos rascunhos já divulgados, “atenção primária à saúde” vem sendo tratada como “cobertura universal de saúde”, centrada na cobertura financeira, que não necessariamente garante acesso aos serviços de acordo com as necessidades de saúde. Quem explica é Ligia Giovanella, pesquisadora titular da Ensp/Fiocruz e membro do comitê coordenador da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Abrasco, em entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos. “Saúde não é mercadoria”, afirma. Qual o principal legado da Declaração de Atenção Primária à Saúde (APS) aprovada na Conferência Internacional de Alma-Ata, em setembro de 1978? O principal legado da Declaração de Alma-Ata foi a concepção abrangente, integral, de atenção primária à saúde abrangente. Na Declaração de Alma Ata, APS é entendida como estratégia para organizar os sistemas de saúde e garantir o direito humano universal à saúde. Tem três componentes essenciais: 1) é o primeiro ponto de contato e a base de sistemas de saúde de acesso universal e cuidado integral; 2) reconhece a inseparabilidade da saúde do desenvolvimento econômico e social, envolvendo a cooperação com outros setores para enfrentar os determinantes sociais e promover a saúde; 3) promove a participação social para o empoderamento dos cidadãos na defesa e ampliação dos direitos sociais. Em um contexto distinto do atual, de independência de colônias africanas, democratização, organização de países periféricos em movimento dos países não alinhados, a defesa de justiça social, equidade, solidariedade e redução de desigualdades sociais é muito destacada na Declaração de Alma Ata. Ainda que logo após a conferência de Alma, a Fundação Rockfeller, o Unicef e a OMS tenham difundido uma concepção seletiva de APS, um pacote mínimo de serviços para o grupo materno infantil e populações em extrema pobreza, esta concepção de APS integral conquistou corações e mentes ao redor de todo mundo na luta em defesa dos direitos humanos e orienta até hoje movimentos sociais locais e globais como o People Health Movement (Movimento pela Saúde dos Povos). Marcus Cueto tem um excelente artigo de 2004 que conta este histórico da APS e o contexto da conferência de Alma Ata. Em estudo que fizemos pelo ISAGS sobre APS nos doze países da América do Sul, a declaração de Alma Ata era mencionada em quase todos os documentos de políticas de APS como estratégia para reorientar os sistemas de saúde e garantir o direito universal à saúde. Seu legado é a defesa do direito humano universal à saúde e que uma outra forma de cuidado de saúde mais integral é possível. Como surgiu a Declaração de Astana? O que deverá trazer de novo, 40 anos depois de Alma Ata? Penso ser uma iniciativa da OMS que junto com o Unicef promoveu a comemoração dos 40 anos da Declaração de Alma Ata. Esta Conferência Global sobre APS, todavia, tem como objetivo renovar a APS para o alcance da cobertura universal e os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS). O problema é que já nos objetivos da conferência global de Astana se subsume a APS à universal health coverage (UHC), cobertura universal de saúde (CUS). A CUS na forma como vem sendo difundida pelo Banco Mundial, Fundação Rockfeller e OMS centra-se na cobertura financeira, isto é, que cada indivíduo tenha um plano de seguro privado ou público, de modo que não incorra em gastos excessivos no ato de uso. Ora, a cobertura apenas financeira não necessariamente garante acesso aos serviços de saúde de acordo com as necessidades de saúde. Serviços de saúde não são distribuídos conforme necessidades de saúde se o governo não planejar e implantar um sistema em rede regionalizada com integração entre todos os níveis assistenciais que possam ser acessados conforme necessidade. Sem um desenho de sistema, se perpetuam desigualdades regionais e populações desfavorecidas não são cobertas. Ao mesmo tempo, contratos de seguro implicam em definição de uma cesta de serviços cobertos que pode ser maior ou menor conforme a possibilidade de pagamento de cada um. A experiência de seguros focalizados para pessoas em extrema pobreza incentivada pelo Banco Mundial na América Latina produziu mais segmentação, mais iniquidade. Com seguros de saúde diferenciados por grupo populacional, as desigualdades são cristalizadas! Não se busca mais reduzir desigualdades sociais ou promover a justiça social! Muito diferente da proposta de sistema público universal de saúde que tem como principio que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Muito diferente do que se propunha em Alma Ata. Quais as principais discussões em torno dessa Declaração? Há uma declaração de Astana já em preparação, em negociação atualmente pelos países, inclusive uma das versões foi colocada para consulta pública e nós da Rede de Pesquisa em APS da Abrasco respondemos a consulta salientando a necessidade de ratificar a Declaração de Alma Ata. Nos primeiros rascunhos da declaração observa-se: esta redução da APS à cobertura universal, o que restringe sobremaneira seu alcance; a ausência do chamado à responsabilidade governamental para garantia do direito à saúde; forte ênfase na participação do setor privado – e certamente há enormes interesses privados de seguradoras, indústria farmacêutica, de equipamentos, entre outros, na expansão de seus mercados pela proposta de cobertura universal, contudo nenhum conflito de interesse é mencionado; ênfase na responsabilidade individual na garantia da saúde e de sua atenção à saúde; não se menciona o problema das desigualdades sociais e a necessidade de redução destas para a garantia do direito à saúde; nem se faz menção à justiça social – só para mencionar algumas de nossas preocupações. Como será a participação da Fiocruz na reunião de Astana? A Fiocruz compôs um grupo de trabalho que está elaborando um documento de posicionamento em favor da APS integral, o direito universal de saúde e sistemas públicos universais de saúde como o SUS. Este documento está sendo sintetizado a partir de contribuições especificas elaboradas por pesquisadores da Fiocruz sobre os temas mencionados nas primeiras propostas da Carta de Astana e temas constantes da programação da conferência em Astana já disponível na internet. Integrantes deste grupo participarão da conferência em Astana. Qual a sua expectativa em relação ao evento? Minha expectativa é de que se consiga pressionar por uma declaração de Astana que reafirme a proposta abrangente de APS de Alma Ata, que reafirme os princípios da Carta de Alma Ata de saúde para todos e justiça social. Que a união de governos progressistas e movimentos da sociedade civil de defesa de direitos humanos possam fazer com que a carta aprovada avance em relação às primeiras proposições. Penso que será difícil mudar a menção à cobertura universal, pois esta é uma das metas do Objetivo 3 dos ODS; mas que poderia ser possível pressionar para a defesa mais clara do direito humano universal à saúde ao acesso de serviços de saúde conforme necessidades e da responsabilidade precípua dos governos na garantia deste direito. Na região das Américas, a Opas teve que ampliar seu entendimento de cobertura universal para incluir acesso e garantia do direito humano à saúde, e recentemente, durante a reunião do seu conselho diretor, a comissão sobre Saúde Universal, presidida pela ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, apresentou um documento com preocupações como estas. Vamos ver como o processo avança. Nosso documento da Fiocruz em consonância com o posicionamento do Conselho Nacional de Saúde defende a saúde como direito humano universal e dever do Estado garanti-la. Saúde não é mercadoria. Para download: Baixe a Declaração de Alma Ata (1978) Baixe o rascunho da Declaração de Astana em inglês (julho/2018) ou acesse a versão em português Leia também: Atenção Primária à Saúde seletiva ou abrangente?, artigo de Ligia Giovanella em Cadernos de Saúde Pública (vol.24, supl.1, 2008) O legado de Alma-Ata, 40 anos depois, artigo de Marcos Cueto em Trabalho, Educação e Saúde (vol.16, no.3, set/dez 2018) A década de Alma-Ata: a crise do desenvolvimento e a saúde internacional, artigo de Ciência & Saúde Coletiva, vol.22, no.7, jul/2017 The Origins of Primary Health Care and Selective Primary Health Care, artigo de Marcos Cueto no American Journal of Public Health, nov/2004 Leia no Blog de HCS-Manguinhos: Atenção Primária à Saúde com progresso social Na Carta dos Editores (vol.22 no.4 out./dez. 2015), Marcos Cueto e André Felipe Cândido da Silva relembram o aniversário de 37 anos da Declaração de Alma-Ata, criticam cortes no apoio a revistas brasileiras e festejam conquistas internacionais Como citar este post: ‘Saúde não é mercadoria’. Entrevista com Ligia Giovanella. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 10 de outubro de 2018. Acessível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/saude-nao-e-mercadoria
Home »
Com a palavra... » ‘Saúde não é mercadoria’
‘Saúde não é mercadoria’
Posted | Comentários desativados em ‘Saúde não é mercadoria’
Aleatórios
- Ditadura, arquivos e lugares de memória
- Comitês de ética inibem liberdade de pesquisa
- Biblioteca Nacional é tema do I Encontro Sociedade, Memória e Poder, em abril de 2023
- 1794 – Morre Antoine Lavoisier, o pai da Química moderna
- 'A cidade: espaço e natureza' em debate no JBRJ nesta quarta, 13/5
- Teorias conspiratórias e desinformação na pandemia de Covid-19 serão tema de palestra
- Exposição Sentidos do Nascer em cartaz no Parque das Mangabeiras, em BH
- Arca Dados, repositório de dados para pesquisa da Fiocruz, recebe selo CoreTrustSeal
- Chamada de artigos: a história da divulgação científica
- Ana Girão fala sobre a revolta da vacina em entrevista à EBC