Saída dos EUA da OMS coloca em risco visão de saúde como direito, avalia Marcos Cueto

Abril/2025

Vivian Mannheimer | Blog de HCS-Manguinhos

Marcos Cueto. Foto de Vitor Vogel (COC/Fiocruz)

Marcos Cueto. Foto de Vitor Vogel (COC/Fiocruz)

Assim que tomou posse em 20 de janeiro, um dos primeiros anúncios do presidente dos Estados Unidos Donald Trump foi que ele deixaria a Organização Mundial de Saúde (OMS). Para analisar as consequências dessa retirada, conversamos com o historiador Marcos Cueto, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e editor científico da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos

O historiador é um dos autores, junto com os pesquisadores Ted Brown e Elizabeth Fee, do livro The World Health Organization – A History, que examina a história da OMS e campanhas da organização, como os primeiros programas de erradicação da malária e da varíola, a resposta à Aids e a luta contra o Ebola. 

Nesta entrevista, Cueto analisa, em uma perspectiva histórica, a relação entre os Estados Unidos e a organização e as mudanças ideológicas que influenciaram as políticas de saúde. De acordo com o pesquisador, com a retirada, os Estados Unidos não farão mais parte das discussões sobre quais cepas de gripe e Covid-19 devem ser usadas para as vacinas anuais; terão acesso tardio a dados sobre os vírus que ameaçam o planeta; e ficarão de fora das discussões em andamento a respeito de um tratado internacional sobre pandemias, que facilitaria o compartilhamento de vacinas, testes e outros suprimentos médicos.

Ele destacou ainda, que, caso a retirada se confirme, será essencial um compromisso mais profundo com a OMS por parte de outros governos, bem como o apoio do setor privado, da filantropia e, sobretudo, das economias emergentes dispostas a redefinir a governança sanitária global.

O que significa a retirada dos Estados Unidos da OMS?

A retirada unilateral dos Estados Unidos significa a suspensão da transferência de fundos para a OMS e a saída dos funcionários norte-americanos designados para a organização. Como aponta Deisy Ventura (2025), embora a OMS não seja perfeita, é uma instituição essencial e passível de reforma. É importante notar que os Estados Unidos aderiram à OMS em 1948 por meio de uma resolução do Congresso norte-americano, que estabelecia que, em caso de saída, o país deveria notificá-la com um ano de antecedência e cumprir com suas obrigações financeiras durante esse período (algo que parece que não será cumprido). Com a retirada, os Estados Unidos não farão mais parte das discussões sobre quais cepas de gripe e Covid-19 devem ser usadas para as vacinas anuais; terão acesso tardio a dados sobre os vírus que ameaçam o planeta; e enfrentarão um desgaste no diálogo com mais de setenta centros colaboradores da OMS que operam nos Estados Unidos (em áreas como enfermagem, saúde ambiental e farmacologia, entre outras).

Além disso, a decisão exclui os Estados Unidos do Regulamento Sanitário Internacional — as normas que buscam padronizar as respostas às emergências sanitárias e cuja origem remonta a 1851 —, que inclui a obrigação de um país de informar sobre um surto epidêmico, a padronização de quarentenas e os critérios para declarar uma pandemia. Da mesma forma, o país ficaria de fora das discussões em andamento a respeito de um tratado internacional sobre pandemias, que facilitaria o compartilhamento de vacinas, testes e outros suprimentos médicos.

Nesta nova fase autoritária do neoliberalismo, agora fundida com o ultranacionalismo e com traços de fascismo, as desigualdades na saúde, tanto entre países quanto dentro deles, são assumidas como uma realidade inevitável, e culpa-se as vítimas — doentes, minorias sexuais e países pobres — por futuras epidemias.

Além disso, esse modelo parece orientado para consolidar uma “cultura da sobrevivência” nos países em desenvolvimento, onde as intervenções, mesmo assistenciais e paliativas, exigem em troca obediência e alinhamento com o poder dos Estados Unidos, e a saúde pública é reduzida a uma dádiva dos mais poderosos para os mais vulneráveis, conceito que desenvolvo no meu livro com Steven Palmer, Medicina e Saúde Pública na América Latina: Uma História, publicada pela Editora Fiocruz em 2016. 

O que é possível ser feito para reduzir o impacto dessa saída para a saúde global?

Será essencial um compromisso mais profundo com a OMS por parte de outros governos de países industrializados não alinhados com os Estados Unidos, bem como o apoio do setor privado, da filantropia e, sobretudo, das economias emergentes dispostas a redefinir a governança sanitária global.

Outros atores institucionais da saúde global, como o Unaids e o Fundo Global para a luta contra a Aids, tuberculose e malária, devem sair em defesa da OMS e não se intimidar. Da mesma forma, é crucial a participação ativa dos países em desenvolvimento, muitos dos quais ainda não reconhecem plenamente a importância da saúde global.

Um exemplo claro dessa ausência é que poucos países latino-americanos possuem um centro de estudos de saúde global similar ao da Fiocruz, no Brasil. Esses países poderiam fortalecer suas redes de cooperação sul-sul, garantir respostas inclusivas que abordem as fragilidades estruturais de seus sistemas de saúde e aumentar sua capacidade de negociação como bloco, especialmente diante da provável incursão da China como aspirante à liderança na saúde internacional.

Não seria a primeira vez que uma organização de saúde internacional opera sem a participação dos Estados Unidos. Entre 1919 e 1939, a Organização de Higiene da Liga das Nações funcionou sem a adesão norte-americana, apesar do apoio do presidente Woodrow Wilson, que não conseguiu convencer o Congresso norte-americano a aprovar a participação do país. Nessa organização, o Brasil teve um papel destacado, com representantes como Carlos Chagas. Além de implementar valiosos programas sanitários, essa instituição tornou-se um espaço fundamental de reflexão sobre a medicina social. De fato, foi a partir desse debate que surgiu a célebre formulação do preâmbulo da Constituição da OMS: a saúde não é simplesmente a ausência de doença, mas um estado de completo bem-estar físico, social e mental.

A saúde global poderá sobreviver a um segundo mandato de Trump? 

Esperamos que sim.

Fonte: Site da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Leia também:

Alguns insights sobre a reeleição de Trump

Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, Ted Brown, professor emérito de história e ciências da saúde pública na Universidade de Rochester, investiga as profundas implicações da eleição presidencial dos EUA de 2024.
 

Leia na revista HCS-Manguinhos:

Brown, Theodore M., Cueto, Marcos e Fee, ElizabethA transição de saúde pública ‘internacional’ para ‘global’ e a Organização Mundial da Saúde. Set 2006, vol.13, no.3

Cueto, Marcos e Hochman, GilbertoApresentação – Dossiê Saúde Internacional/Saúde Global, (v. 22, n. 1, mar 2015)