Agosto/2016
No Brasil, o debate sobre miscigenação racial foi um dos assuntos que mais mobilizaram a opinião de cientistas e intelectuais nas primeiras décadas do século XX, motivando a produção de uma série de ensaios de caráter científico e literário. No contexto internacional, o tema também vinha suscitando inúmeras polêmicas, resultado tanto das teorias eugênicas e do racismo que grassava na Europa e nos EUA desde o século XIX quanto dos interesses imperialistas nos continentes africano, asiático e americano.
Nesse cenário, em regra, os “cruzamentos raciais” eram duramente condenados por médicos, antropólogos, eugenistas e viajantes estrangeiros, sendo vistos como os grandes responsáveis pela degenerescência das populações não europeias. No caso brasileiro, o debate sobre miscigenação ganhou diferentes significados, desde visões negativas sobre o valor dos mestiços, passando por discussões sobre “mestiçagem” e branqueamento da população, até explicações que valorizavam a formação mestiça brasileira como elemento distintivo da identidade e da cultura nacional.
Em diálogo com essas diferentes interpretações, o médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) pode ser considerado um dos intelectuais brasileiros que mais atenção dedicaram aos estudos sobre miscigenação racial. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1905, Roquette-Pinto dedicou boa parte de sua trajetória aos estudos em antropologia física, atuando como antropólogo e etnógrafo do Museu Nacional por três décadas, entre 1905 e 1935. Além de suas atividades no campo da antropologia, seu nome também é identificado pelos trabalhos realizados na área da educação e da comunicação e por sua atuação como membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e da Academia Brasileira de Ciências.
No artigo Ciência e miscigenação racial no início do século XX: debates e controvérsias de Edgard Roquette-Pinto com a antropologia física norte-americana, publicado na atual edição de HCS-Manguinhos (vol.23, no.3, jul./set. 2016), Vanderlei Sebastião de Souza, professor de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, PR, analisa a maneira como Roquette-Pinto inseriu-se no debate internacional envolvendo o campo da antropologia física e as discussões sobre miscigenação racial. O historiador procura demonstrar que Roquette-Pinto realizou uma leitura politicamente seletiva de autores como os antropólogos Charles Davenport, Madison Grant e Franz Boas, empregando os argumentos que se adequavam ao projeto de valorização dos “mestiços do Brasil” e refutando os que eram contraditórios.
“O debate e as apropriações de ideias feitas por Roquette-Pinto devem ser vistos como ‘estratégias anticoloniais’, concepção empregada por Sérgio Carrara para analisar a reação dos intelectuais brasileiros contra as teorias científicas que estigmatizavam ou inferiorizavam as populações mestiças. Diante da condenação que os europeus faziam da origem mestiça e da suposta imoralidade das populações não brancas, Carrara demonstra que a intelligentsia nacional mobilizou uma série de argumentos que refutavam esses estigmas, criando estratégias que pudessem construir uma ‘identidade nova e positiva para si mesma e para a nação'”, explica o autor.
Leia em HCS-Manguinhos:
Ciência e miscigenação racial no início do século XX: debates e controvérsias de Edgard Roquette-Pinto com a antropologia física norte-americana, artigo de Vanderlei Sebastião de Souza (vol.23, no.3, jul./set. 2016)
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
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