3 de fevereiro de 2017
Por Robert Wegner *
Ricardo Benzaquen de Araújo nos deixou neste 1o de fevereiro, após meses lutando contra um câncer no fígado. Recebi a notícia com tristeza, pois embora soubesse da seriedade do seu estado de saúde, não podia acreditar que a morte chegaria cedo, antes de completar 65 anos. Mas então minhas lembranças me levaram para um dia de 1994, em que, junto a uma escrivaninha alocada em frente a uma janela de seu apartamento no Jardim Botânico, Ricardo expunha, a partir de páginas artesanalmente revisadas, sua avaliação sobre a primeira versão do projeto de doutorado de um jovem aluno pretensioso que tentava impressionar seu professor erudito. Não apenas não o enganei, como foi a partir daí que comecei a levar à sério o processo de escrita e a ter consciência que não existe bom texto sem trabalho. Aprendi a escrever com Ricardo. É difícil falar dele sem se referir a estes lances de memória que remetem a uma relação pessoal. Mesmo as orientações se transformavam em amizade e isto não significava uma diminuição de rigor, antes, pelo contrário. Amizade não significava condescendência e os diálogos densos se davam entre amigos. Sua contribuição como professor, orientador, colega e, recobrindo a todas essas categorias, amigo, é enorme e deixa marcas profundas na vida e na carreira daqueles que compartilharam da sua companhia. Muitos desses casos, certamente, serão lembrados e contados, geralmente, penso eu, em casos que remetem ao seu bom humor e fina ironia. Mas quero evitar, neste momento, um depoimento de ordem pessoal para me ater à sua contribuição escrita para as Ciências Sociais e a História.
Não é exagero dizer que, com Guerra e Paz, publicado em 1994 pela Editora 34, Ricardo Benzaquen de Araújo contribuiu para modificar o rígido plano de discussão então estabelecido acerca da obra de Gilberto Freyre. Se o autor pernambucano era reconhecido fora do Brasil, aqui, desde os anos 1960, era execrado e sua obra produzida na década de 1930 era pouco citada e, muito menos, lida. Quando citada, quase sem exceção, era para ser denunciada como uma obra encobridora dos conflitos e mesmo constituinte e defensora de um passado colonial quase idílico, marcado pela democracia racial. Em seu livro, Ricardo Benzaquen chama a atenção para o fato de que tanto Casa Grande & Senzala quanto Sobrados & Mucambos merecem ser compreendidos num contexto em que, não apenas no Brasil, eram muito mais amplos e intensos os diálogos entre as ciências sociais e movimentos estéticos, estes marcados pelas experiências de vanguarda que buscavam dar atenção e valorizar experiências culturais diferentes das européias e que não fossem destituídas de ambivalências e paradoxos.
Por esse caminho, Ricardo veio mostrar, por um lado, que Casa Grande & Senzala é um livro marcado por uma sucessão de antagonismos em equilíbrio, desenhando uma experiência de proximidade entre senhores e escravos, marcada tanto pela violência quanto pela confraternização. Ao mesmo tempo, apontou para o fato de que o termo raça, presente no livro, adquire no decorrer do argumento um sentido fluido e mesmo próximo ao que pouco tempo mais tarde se consubstanciou no conceito de cultura. Nesse sentido, Guerra e Paz demonstra que a obra de Gilberto Freyre dos anos 1930 não possui uma matriz explicativa racial e nem apresenta um passado colonial idílico.
Ao mesmo tempo em que propõe uma leitura mais detida da obra de Gilberto Freyre, faz-nos intuir o anacronismo que permeava aquelas leituras apressadas que projetavam no Gilberto Freyre da década de 1930 o mesmo autor que, na década de 1950, daria, com sua teoria lusotropicalista, sustentação à política colonialista do ditador português Salazar e, na década seguinte, apoiaria o regime militar instaurado no Brasil. Aliando sua formação em História e em Antropologia, Ricardo Benzaquen realizou o esforço de compreender a obra de Gilberto Freyre a partir de seus próprios termos e contexto, evitando o pecado que o historiador mais deve evitar, o do anacronismo. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, que ganhou sua segunda edição em 2005, recebeu dois prêmios: o Jabuti, na categoria ensaio, e o Prêmio Fundação Joaquim Nabuco.
O livro resultou da tese de doutorado de Ricardo, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional, em 1993, sob orientação de Otávio Velho, e, na verdade, já era, por assim dizer, a sedimentação de uma carreira docente e de pesquisador de quase 20 anos, pois, em 1975, assim que concluiu sua graduação em História na PUC do Rio de Janeiro, ingressou no quadro docente da Universidade. E sua lista de publicações foi inaugurada quando ainda jovem professor e mestrando em Antropologia pelo Museu Nacional – curso em que ingressou também em 1975 –, com o artigo “Romeu e Julieta e a origem do Estado”, publicado em 1977 em Arte e Sociedade, livro organizado por Gilberto Velho.
Neste artigo, escrito a quatro mãos com seu então colega Eduardo Viveiros de Castro, Ricardo empreendeu, a partir de uma leitura da peça shakespeariana Romeu e Julieta, um diálogo com a obra do antropólogo francês Louis Dumont, que em comparações entre a sociedade indiana e a ocidental vinha apontando que, nesta, a idéia de indivíduo havia sido naturalizada e até mesmo incorporada no próprio arcabouço conceitual da Antropologia – como manifesta na oposição entre indivíduo e pessoa, como se o primeiro pólo apontasse para uma identidade estabelecida fora da sociedade e o segundo remetesse a papéis sociais. O artigo argumenta que a peça Romeu e Julieta pode ser lida como um mito de origem do amor, tanto por ser uma das obras que, por assim dizer, mais marcaram o imaginário ocidental em torno do tema, mas principalmente no sentido de que, na peça mesma, o amor entre Romeu e Julieta os descola dos seus nomes de famílias, rivais, transformando-os em indivíduos descolados de injunções sociais. A leitura da peça é complementada com a do livro de Maquiavel, O Príncipe, que, por sua vez, inaugura a reflexão sobre o Estado a partir de relação entre o soberano e seus súditos, tratados como indivíduos. No caso da tragédia de Shakespeare, a morte dos amantes acaba por apaziguar a luta de famílias e a consolidar o poder do príncipe e a unidade do reino. Nesse sentido, temos, ao mesmo tempo, um mito de origem do indivíduo, do amor e do Estado. E, no mesmo movimento, a transformação, no decorrer da peça, do dualismo simétrico da divisão do reino em duas famílias em um dualismo “concêntrico”, marcado pela relação entre príncipe e súditos, agora indivíduos antes que membros de facções.
Em 1980, sob orientação de Gilberto Velho, Ricardo Benzaquen concluiu seu mestrado com a Dissertação sobre “Os Gênios da Pelota: Um estudo do futebol como profissão”. Embora, aparentemente, o resultado do mestrado não tenha a ver com sua graduação em História e, diante dele, o artigo comentado há pouco soe como certo devaneio, em “Gênios da Pelota” a História Social e seu interesse no cotidiano aliaram-se a Antropologia das sociedades complexas e sua articulação com a discussão sobre a concepção de indivíduo, a partir da obra do sociólogo alemão Georg Simmel e a de Dumont.
Em certo sentido, o jogador de futebol é quase a radicalização da afirmação do indivíduo na sociedade moderna, pois, conforme o argumento desenvolvido na dissertação, é portador de um talento inato e de uma personalidade singular – aliás, a noção de personalidade, com uma dimensão tanto psicológica quanto corporal, é um elemento fundamental para a noção de indivíduo no Ocidente, conforme Benzaquen havia apontado em seu diálogo anterior com Dumont. Desse modo, o jogador deveria cultivar este talento e personalidade sem, contudo, levá-lo ao excesso, demonstrando, portanto, humildade, porém não abatimento, sangue frio, mas não indiferença ao jogo, raça, e não violência. E, finalmente, ao jogador de futebol pode ser associada a idéia de gênio: nem deus, nem um homem comum, o jogador de futebol está acima dos outros indivíduos. Contudo, este lugar está sempre sobre ameaça, pois qualquer malogro em um lance decisivo pode obscurecer as diversas batalhas anteriormente vencidas. Assim, é preciso combater o tempo todo, não se entregar nunca.
Após o mestrado, entre 1980 e 1985, Benzaquen se dedica às aulas no Departamento de História da PUC-Rio e à pesquisa no Centro de Documentação e Pesquisa (CPDOC-FGV), que vinha se tornando um núcleo de pesquisa em Pensamento Social Brasileiro, especialmente em torno do pensamento conservador dos anos 1920 e 1930. Aí desenvolve suas pesquisas em torno do pensamento de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, resultando em seu primeiro livro, Totalitarismo e Revolução: o integralismo de Plínio Salgado, publicado em 1988. Neste, já então um exercício para compreender um autor polêmico e facilmente rotulado, Benzaquen procura demonstrar os limites de pensá-lo a partir da categoria conservador. Se Plínio Salgado poderia ser qualificado como um conservador na medida em que tecia uma crítica ao liberalismo e à sociedade dos indivíduos, a solução proposta pelo movimento por ele liderado na década de 1930 não visava manter uma totalidade fundada em uma hierarquia, mas remetia a uma igualdade pensada como uniformização e o ideal de transformar todos os indivíduos em cidadãos. Mais do que isso, visava a criação de uma sociedade de militantes constantemente mobilizados na participação política, que, na verdade, diria respeito a todas esferas da vida. Desse modo, a noção de totalitarismo daria mais conta do pensamento de Plínio Salgado do que a de conservadorismo, pois sua proposta não apenas não é elitista, como também é revolucionária, visando criar uma nova totalidade.
Pouco antes da publicação de Totalitarismo e Revolução, em 1985, Ricardo Benzaquen ingressou no Doutorado em Antropologia do Museu Nacional, e, em 1987, passou a fazer parte do corpo docente do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ). Nesse contexto desenvolveu sua tese de doutorado sobre a obra de Gilberto Freyre nos anos 1930, tema de pesquisa desenhado a partir de sua experiência com o Pensamento Social Brasileiro adquirida no CPDOC. Desde fim dos anos 1980, portanto, Ricardo Benzaquen desenvolveu suas atividades docentes, ao mesmo tempo, na área de Teoria da História na PUC-Rio e em Teoria Sociológica no IUPERJ, articulando essas experiências no desenvolvimento de pesquisas acerca de autores brasileiros como, além dos já citados, Capistrano de Abreu, Joaquim Nabuco e Alceu de Amoroso Lima. Desse modo, por exemplo, publicou, na revista Estudos Históricos, em 1988, “Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu”; e, em 2004, na Revista Brasileira de Ciências Sociais, “Através do Espelho: subjetividade em Minha Formação, de Joaquim Nabuco”.
Não é possível encerrar esta nota sem fazer uma referência sobre a carreira docente de Ricardo Benzaquen. Afinal foram mais de 40 anos de presença ininterrupta em sala de aula e mais de 25 anos na orientação de mestrandos e doutorandos, tendo tido um papel fundamental na formação de mais de uma geração de pesquisadores e professores.
Na PUC-Rio, Ricardo foi responsável pelas disciplinas de Teoria da História e História da Historiografia, tanto na Pós-Graduação quanto na Graduação, onde lecionou também História Antiga e Medieval. Enquanto no IUPERJ lecionou seguidamente disciplinas de Teoria Sociológica, lidando com clássicos como Durkheim, Weber e Simmel. Em primeiro lugar, vale salientar que estas atividades exercidas em instituições e disciplinas diferentes não foram desenvolvidas de forma desarticulada, pois os cursos de Ricardo Benzaquen costumam privilegiar o diálogo entre a História e a Sociologia, e, também, a Antropologia. Além disso, seus cursos podiam ainda promover outros diálogos. E, aqui, como deixo de comentar textos escritos e publicados, tomo a liberdade de retornar a recordações pessoais.
O primeiro curso ministrado por Ricardo Benzaquen que frequentei tratava das relações entre a Ciências Sociais e movimentos estéticos nas primeiras décadas do século XX. Desse modo, líamos não apenas clássicos da Sociologia, como Max Weber, e intérpretes do Brasil, como Paulo Prado, como também autores mais frequentados em cursos de Filosofia, como Nietzsche, além de textos literários, como Morte em Veneza, de Thomas Mann. Permito-me estender estas lembranças. Quando frequentei este curso, em 1992, Ricardo estava em processo de redação de sua tese de doutorado. Neste contexto, sua aula sempre tinha um preâmbulo – em torno de cinco minutos – em que narrava as dificuldades do momento e explicava porque não havia preparado a aula como gostaria. Eu – e acredito que os outros colegas – me preparava para ouvir comentários esparsos sobre o texto marcado para leitura. Qual não era a nossa surpresa ao ouvir, durante as três horas seguintes, uma aula surpreendentemente encadeada e rica, na qual o professor se amparava apenas no texto marcado e não usava uma anotação sequer. Contudo a aula seguia pari e passu o texto, ao mesmo tempo em que este servia de plataforma para inesperadas relações com outros autores, de Ciências Sociais ou História, ou mesmo com filmes de cinema. Nenhuma de nossas intervenções caía no vazio, antes eram incorporadas à arquitetura da aula.
Em anos seguintes voltei a cursar disciplinas com Ricardo, e o preâmbulo às aulas, que julguei estar relacionado à redação da tese, sempre se repetiu. E as aulas, cuidadosamente preparadas e surpreendentes, também se sucediam. Isto se tornou um enigma. Hoje sei que o preâmbulo nada mais era do que um recurso para demonstrar humildade, como aquela necessária para dosar a genialidade do grande jogador de futebol.
* Professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)