Fevereiro/2022
Marina Lemle / Blog de HCS-Manguinhos
“Eu penso que a história dos animais é uma espécie de antídoto contra a arrogância humana. Arrogância da crença de que o mundo foi ‘feito’ para uso e abuso pelos humanos.” A fala marcante da historiadora Regina Horta Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), uma das fundadoras do grupo de pesquisa Centro de Estudos dos Animais, expõe a necessidade urgente de uma reviravolta na forma de se contar a história dos animais. Nesta abordagem, eles deixam de ser coadjuvantes passivos para se tornarem coprodutores da história. O objetivo é contar a história das relações entre os animais, sem qualquer hierarquia entre as espécies.
Editora convidada, junto com Gabriel Lopes (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz), Natascha Ostos (Instituto René Rachou/Fiocruz-MG) e Nelson Aprobato Filho (Universidade de São Paulo), do suplemento da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos que acaba de ir ao ar (v. 28. supl., dez/2021), ela defende a criação de metodologias para uso de fontes documentais e uma abordagem transdisciplinar em que a história e a biologia se comuniquem. “Este número especial é um convite ao diálogo”, afirma Regina nesta impactante entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos.
Blog de HCS-Manguinhos: Por que o estudo das relações entre animais pelas áreas humanas e sociais, incluindo a história, se faz tão necessário atualmente, e em especial no Brasil?
Regina Horta Duarte: Animais sempre estiveram, de uma forma ou de outra, na mira do historiador. Vejam o exemplo do belíssimo capítulo de Capistrano de Abreu sobre a “civilização do couro” no Brasil colonial. Ora, se há couro, há animais. Lembrem-se das reflexões de Caio Prado Junior sobre a pecuária, ou de Alcir Lenharo sobre as tropas de mulas no centro-sul oitocentista. Podemos citar ainda as análises dos bestiários medievais – com seus dragões e unicórnios – por Jacques Le Goff, ou as narrativas sobre as cabeças repletas de piolhos dos hereges de Montaillou, por Emmanuel Le Roy Ladurie. A lista seria imensa.
Desde meados dos anos 1980, algo como um “animal turn” (reviravolta animal, em tradução livre) movimenta a historiografia europeia e norte-americana, com emergência de um campo específico de pesquisa, a história dos animais. A grande e decisiva particularidade é que os animais têm sido chamados à cena principal. Eles deixam de ser coadjuvantes passivos para se tornarem coprodutores da história.
Há muitas questões metodológicas decisivas a serem enfrentadas. O fato de serem ativos e protagonistas não quer dizer que animais ajam intencionalmente. O historiador precisa amadurecer reflexões cuidadosas sobre agência, antropocentrismo, coexistência. É necessário criar metodologias para o uso de fontes documentais, preparar-se para uma abordagem transdisciplinar, abrir janelas de comunicação entre a história e a biologia.
A urgência desses estudos indica o compromisso do historiador com os desafios de seu tempo. Vivemos num mundo de aceleração da extinção de espécies animais e vegetais, da produção industrial vertiginosa de carne com práticas de confinamento, do fortalecimento do mercado consumidor pet, do crescimento do movimento de proteção animal, e tantas outras transformações. As sociedades humanas têm escolhas urgentes a fazer, e a história se apresenta, como diria Castoriadis, não apenas para explicar o que é, mas “para fazer ser o que não é”.
O Centro de Estudos dos Animais (CEA), sediado na UFMG, é pioneiro na área e foi inaugurado em dezembro de 2019, justamente quando a Covid-19 começou a fazer suas primeiras vítimas. Essa coincidência temporal revela uma urgência científica?
Foi mesmo uma coincidência. Eu vinha trabalhando nessa área há algum tempo, minha colega Natascha Ostos também, e trocávamos ideias e leituras. Estávamos conversando aqui em casa, decidimos fundar o Centro, e buscar outros interlocutores. A covid ainda nos parecia algo distante em dezembro de 2019. Eu, particularmente, nem sonhava o que estava por vir. Mas é claro que, de uma forma ou de outra, estávamos “antenadas”, e isso indica, como eu já disse, uma abertura do historiador ao diálogo com seu tempo. O CEA hoje tem vários membros, entre eles Gabriel Lopes e Nelson Aprobato Filho, que integraram os trabalhos da concepção desta edição da revista.
Também interagimos nas redes sociais por meio de nosso Instagram, Facebook e Twitter. A menina dos meus olhos é a playlist Conversa Animal que integra o canal do Youtube As 4 Estações. Realizamos 14 programas em 2021, com convidados de várias instituições e países, e temos muitos planos para 2022, incluindo algumas entrevistas com autores deste número especial.
Como esta área transdisciplinar pode se consolidar e se desenvolver?
Estamos entusiasmados para novas iniciativas, e nosso objetivo principal é contribuir para impulsionar essa área promissora de pesquisa, ensino e extensão no cenário historiográfico brasileiro. Sabemos que há muitos excelentes pesquisadores que exploram possibilidades da história animal pelo Brasil afora, e desejamos conhecê-los, juntar esforços, trocar ideias, integrar ações etc. Nesse sentido, este número especial é um convite ao diálogo.
Outras revistas brasileiras de humanidades, principalmente de antropologia, já publicaram dossiês sobre estudos animais, mas nenhuma da área de história, apesar do crescimento do número de trabalhos de historiadores. Como você interpreta essa lacuna?
Na verdade, nós interpretamos isso como uma chance imperdível. Propusemos o dossiê com grande alegria. A revista, seguindo sua tradição de pioneirismo, acolheu nossa proposta com grande entusiasmo. A História Ciência e Saúde – Manguinhos é uma revista de padrões internacionais, com excepcional profissionalismo e práticas acadêmicas irretocáveis.
Poderia falar um pouco sobre os desafios e resultados desta empreitada?
Acho que chegamos a um excelente resultado e, confesso, estou tão radiante quanto orgulhosa. Conseguimos reunir nomes muito diversos, todos de excelência, em artigos muito originais.
Ao longo do rigoroso processo de julgamento por pares promovido pela revista, os originais incrementaram ainda mais a sua qualidade. A oportunidade de oferecer ao leitor versões bilíngues (inglês e português) de quatro artigos aumenta o seu impacto, pois poderão ser largamente usados em cursos de graduação nas universidades brasileiras. Além desses, há artigos em espanhol, facilmente acessíveis também ao público de língua portuguesa.
Todos esses artigos circularão entre o público leitor internacional, mas poderão simultaneamente atingir um leque muito amplo de leitores no Brasil. Tudo isso por meio de numa plataforma gratuita e cheia de recursos sensacionais – o SciELO – catapultada pela excepcional indexação da revista. Enfim, os artigos surgem em condições que propiciam sua circulação de forma democrática e o sucesso da missão de divulgar o conhecimento de maneira ampla e dinâmica.
“Desejamos explorar ‘relações entre animais’, e aqui abandonamos deliberadamente a dicotomia animais humanos/animais não humanos. Essa separação já clássica estabelece hierarquias, em vez de enfatizar conexões interespécies”, afirma a Carta dos Editores Convidados. Esta nova abordagem será facilmente assimilada ou tenderá a enfrentar resistências e obstáculos?
A abordagem provavelmente encontrará alguma resistência, mas é um caminho profícuo, e vale a pena defendê-la. Eu penso que a história dos animais é uma espécie de antídoto contra a arrogância humana. Arrogância da crença de que o mundo foi “feito” para uso e abuso pelos humanos. Entretanto, na história de nosso planeta, o surgimento da humanidade não era nem necessário, nem inevitável, nem predestinado. Arrogância de acharmos que nossa espécie está fora do destino comum do planeta, ou que estaremos a salvo com nossa tecnologia (o que, além de arrogância, é uma estupidez imensa). Arrogância de dispormos livremente dos corpos de outros animais e de ignorarmos a nossa condição corpórea, biológica, animal e finita.
A condição da existência humana é a coexistência com os outros seres vivos, animais e vegetais. E sempre foi assim, desde o surgimento do Homo sapiens o que, por sua vez, é tão recente. Comparada à história do nosso planeta, o tempo humano é um átimo. Quando formos extintos, voltaremos ao nada, sepultados pelas camadas de rochas sedimentares. E a Terra provavelmente seguirá em frente, quem sabe até melhor, dependendo das consequências do estrago que estamos fazendo.
Olhar e refletir sobre o diagrama de taxa desenhado por Darwin em A Origem das Espécies, publicado em 1859, deveria nos colocar em alerta, trazer-nos muita humildade e transformar nossas atitudes. O diagrama explicita como a trajetória das espécies não é um processo linear, nem progressivo, nem previsível. Sobretudo, não há um ponto de chegada determinado desde o início. Já se passaram 163 anos da publicação desse livro monumental, mas parece que não “caiu a ficha” da humanidade.
E confesso: como historiadora, aprendi muito lendo Darwin: aprendi sobre história, tempo, criação, conflito, transformação, e sobre a necessidade de combater a arrogância humana. Tenho vislumbrado tudo isso também na história dos animais. Espero que os leitores do número especial achem ali bons caminhos para reflexão.
Leia também no Blog de HCS-Manguinhos:
Leia o release do suplemento especial sobre a história das relações entre animais
Leia na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Reciprocidades em desequilíbrio: história das relações entre animais, Carta dos Editores Convidados Regina Horta Duarte, Gabriel Lopes, Natascha Stefania Carvalho De Ostos e Nelson Aprobato Filho (HCS-Manguinhos, v. 28. supl., dez/2021)
Acesse o número especial sobre relações entre animais (HCS-Manguinhos, v. 28. supl., dez/2021)
Leia em HCS-Manguinhos:
Entre medo e audácia: paradoxos da modernização brasileira, artigo de Regina Horta Duarte (vol.25, n.1, mar 2018)
Barth e a ilha da Trindade, 1957-1959, artigo de Regina Horta Duarte e Güydo Campos Machado Marques Horta (vol.19, no.3, set 2012)
História da ilha da Trindade evidencia desafios da preservação da natureza, artigo de Regina Horta Duarte (vol.19, no.3, set 2012)
História e biologia: diálogos possíveis, distâncias necessárias, artigo de Regina Horta Duarte (vol.16, no.4, dez 2009)
Sobre a história das culturas científicas, artigo de Mauro Lúcio Leitão Condé e Regina Horta Duarte (vol.14, no.1, mar 2007)
“Em todos os lares, o conforto moral da ciência e da arte”: a Revista Nacional de Educação e a divulgação científica no Brasil (1932-34), artigo de Regina Horta Duarte (vol.11, no.1, abr 2004)
Acesse também:
Conversa Animal, playlist no canal You Tube As 4 Estações
Activist Biology, livro de Regina Horta Duarte publicado pela Arizona University Press, em 2016, com download integral gratuito
Leia ainda no Blog:
Regina Horta Duarte: ‘HCS-Manguinhos se mantém como a melhor revista da área de história no Brasil’
Para a professora da UFMG, a revista teve papel pioneiro no aprimoramento de procedimentos de julgamento entre pares e de excelência de edição
‘E viva o julgamento por pares!’
Em editorial neste número de Varia Historia, Regina Horta Duarte defende o “tribunal de recursos” da lógica histórica