Outubro/2020
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Anos 1960. Enquanto o poder público, em plena ditadura militar, enxergava a favela como um antro de pobreza e marginalidade cuja solução estaria na remoção dos seus habitantes para conjuntos habitacionais afastados da cidade, os moradores resistiam e se mobilizavam politicamente. Ignorados e oprimidos pelas autoridades locais, que menosprezavam sua capacidade de organização, encontraram escuta em ouvidos estrangeiros – cientistas sociais de agências internacionais com foco no desenvolvimento, como as Nações Unidas e o Peace Corps. Com ideias de mudança social e modernização, estes pesquisadores ofereciam uma nova perspectiva – a de urbanização das favelas, com a melhoria das casas e das condições de vida dos moradores.
Foi nesse contexto de interações complexas, na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, que foi realizada a primeira pesquisa sobre favelas na cidade. Conduzida pelo casal Anthony e Elizabeth Leeds e uma rede de pesquisadores formada em torno deles, a pesquisa etnográfica serviu como referência fundamental para o livro A sociologia do Brasil urbano (1978), pioneiro no campo da sociologia e da antropologia urbana no Brasil.
Há dez anos, a obra dos Leeds encanta a cientista social Rachel de Almeida Viana, que passou a se dedicar ao estudo dos arquivos do casal no acervo da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Em seu doutorado, Rachel investigou as condições de produção do conhecimento da pesquisa realizada no Jacarezinho, com especial atenção às notas de campo dos pesquisadores, e o resultado foi a tese Encontros etnográficos e antropologia em rede: a favela do Jacarezinho e a pesquisa de Anthony e Elizabeth Leeds na década de 1960, orientada pela socióloga Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz. A tese acaba de ganhar o Prêmio Oswaldo Cruz na categoria Ciências Humanas e Sociais.
Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, Rachel fala da complexa cena local e sua relação com o contexto político nacional e mundial, das fontes que utilizou, das disputas narrativas encontradas, das diferentes visões de desenvolvimento em voga na época, do papel das agências internacionais, dos pesquisadores a elas ligados e de um personagem peculiar – o morador Flávio Romano. Vale frisar, porém, que é no fim da entrevista que surgem as maiores emoções: a pesquisadora revela toda a sua admiração pelos Leeds – especialmente por Elizabeth -, por sua orientadora Nisia e por outros professores, como Lícia Valladares e Luiz Antônio Machado da Silva, falecido em setembro, e a importância que os ensinamentos deles têm na sua vida. Tome fôlego e boa leitura!
No seu doutorado, você investigou as condições de produção do conhecimento da primeira etnografia com foco nas favelas do Rio, realizada pelo casal Leeds e sua rede de pesquisadores no Jacarezinho nos anos 1960, que foi uma das principais referências para a obra “A sociologia do Brasil urbano”, de 1978. Que fontes usou na pesquisa que levou à sua tese?
Foram os documentos do arquivo pessoal de Anthony e Elizabeth Leeds. Uma parte do acervo de Anthony Leeds está no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz e outra, no National Anthropological Archives, do Smithsonian Institute. Boa parte do que analisei na tese veio do acervo da COC. Neste, dei ênfase aos documentos relativos ao trabalho de campo no Jacarezinho por ser o que reunia maior número e diversidade de documentos, bem como foi nesta localidade que os Leeds moraram por mais tempo. De modo complementar, também consultei dossiês referentes a outras localidades onde as agências internacionais de cooperação técnica atuaram. Do acervo do NAA, consultei, além do dossiê Ethics, os dossiês da série biographical materials. Nesta série está o texto autobiográfico não publicado de Anthony Leeds. Cruzando os dados oriundos dos dois acervos, pude dar maior precisão a informações que estavam soltas, como por exemplo, os períodos que Leeds esteve na Europa, a relação com as artes, com os movimentos políticos progressistas dos EUA, a crítica epistemológica que fazia à antropologia, entre outras. A espinha dorsal da documentação utilizada, e que me exigiu muitas horas de dedicação, foram os documentos do campo. Isto é, os documentos produzidos na execução do trabalho de campo – as notas de campo e outros tipos de registro. Também foram fundamentais os documentos produzidos pelos moradores, tais como atas de reunião, recibos de conta de luz, panfletos, convites, poemas, cartas para os Leeds, entre outros. Do morador Flávio Romano, que também fazia parte da rede científica, utilizei as cartas, relatórios de campo e textos que ele escrevia sobre as favelas. Das agências internacionais, utilizei relatórios, jornais, entre outros documentos produzidos por estas.
Também entrevistei Elizabeth Leeds, Luiz Antônio Machado da Silva e James (Jim) Wygand.
Você afirma que “a análise histórica das notas de campo de um antropólogo permite não só reconstruir o campo, no caso, a favela do Jacarezinho naquele determinado período e conjuntura históricos, como também reconstruir o contexto de produção dessa pesquisa”. Como era esse contexto?
Do ponto de vista da conjuntura histórica, estávamos vivenciando a Guerra Fria, com todo o pacote de política externa levada a cabo pelos EUA, e as ditaduras militares na América Latina. Do ponto de vista das favelas, estávamos vendo as remoções acontecerem a todo vapor, bem como a resistência e mobilização política dos moradores, principalmente a reativação das associações de moradores. Daí entendemos melhor o contexto das agências internacionais que estavam nas favelas e, consequentemente, a interação dos quadros técnicos destas agências com os moradores e suas demandas. Vimos também algumas disputas narrativas, como os sentidos dados à ideia de desenvolvimento, grande tema das ciências sociais e dos governos na época, bem como o debate remoção versus urbanização das favelas. Nas falas dos moradores, é possível verificar todos estes elementos presentes, incluindo a política internacional, o papel dos EUA e a ditadura militar no Brasil. É interessante observar os modos como relacionavam toda a experiência política interna da e na favela com a conjuntura nacional e internacional.
Do ponto de vista da antropologia e das ciências sociais, estávamos presenciando tanto nos EUA quanto no Brasil algumas discussões: o debate sobre a ética profissional, mais especificamente, os usos estratégicos, ou militar, das ciências sociais em plena Guerra Fria; os possíveis sentidos e os muitos equívocos encontrados na ideia de desenvolvimento e subdesenvolvimento; a mobilização de recursos voltados para o estudo das habitações de baixa renda na América Latina; o início da antropologia urbana no Brasil; a entrada das favelas na agenda de pesquisa das ciências sociais no Brasil; a mudança na abordagem no trabalho de campo em relação às pessoas com as quais o antropólogo interagia. Se antes eram vistas como informantes, nesse momento estavam começando a serem vistos como interlocutores e, tal como os cientistas, também produtores de conhecimento.
Quem formava a rede de pesquisa?
A rede era formada por cientistas sociais estadunidenses e brasileiros, urbanistas brasileiros, jovens voluntários do Peace Corps e alguns moradores de favelas. Ela se formou com o objetivo de entender a complexidade das favelas, já que a literatura vigente naquele período, impregnada pelas teorias da cultura da pobreza e da marginalidade, via as favelas como enclaves urbanos, celeiros de criminosos, bem como locais de apatia política e desorganização. Ou seja, a literatura vigente não dava conta da complexidade das favelas, na medida em que acabava por reduzir estes espaços a antros de pobreza. Tudo isso reforçava os velhos estigmas atribuídos às favelas e seus moradores, bem como reforçava as justificativas apresentadas pelo poder público para promover a remoção dos moradores. Esta rede científica, de fato, trouxe farto material empírico que possibilitou a superação das teorias da cultura da pobreza e da marginalidade. Cabe lembrar que havia também outros cientistas estudando outros tipos de habitações de baixa renda na América Latina e que reforçava essa rede formada em torno das favelas. É o caso de William Mangin, John Turner, Alejandro Portes, Lucien Parisse, entre outros que viam as habitações de baixa renda como soluções, e não como problemas urbanos.
Em tempos de Guerra Fria e ditaduras militares na América Latina, como as agências internacionais de cooperação técnica dos EUA atuavam no âmbito das políticas públicas destinadas à população das favelas do Rio?
As agências internacionais atuavam sob a égide do desenvolvimento. A princípio, estavam promovendo o desenvolvimento nas áreas empobrecidas do globo. E como o que se entendia por desenvolvimento era muito variado, nem sempre estava bem definido, para os quadros técnicos das agências, o que realmente eles deveriam fazer.
No caso do Peace Corps, eles vieram para as favelas para atuar em duas frentes: no Desenvolvimento e Organização de Comunidade (DOC) e na promoção da saúde. Junto aos postos de saúde, faziam atividades como aplicar vacinas, visitar famílias, levantar dados etc. No que tange ao desenvolvimento e organização de comunidade, deveriam auxiliar os moradores a identificarem as suas felt needs, isto é, suas principais demandas e problemas. Para isto, era necessário atuar junto às lideranças e orientar a organização dos moradores. Em linhas gerais, era isto o que os voluntários deveriam fazer nas favelas. No entanto, alguns eram incumbidos de fazer bolas de algodão, dar aulas de inglês na faculdade de engenharia, entre outras tarefas que nada tinham a ver com os propósitos da agência, nem dos voluntários, em sua maioria, jovens com formação universitária e orientação política mais progressista. E também havia outros impeditivos para a execução do DOC: a ditadura militar e a assunção falsa, por parte da agência, de que os moradores não sabiam se organizar. Se a ditadura não permitia a atuação dos voluntários no sentido de incentivar a organização política dos moradores, a postura da agência também em nada ajudava a atuação dos voluntários, que se deparavam com uma realidade completamente diferente. Os moradores não só sabiam se organizar – muito bem, obrigado – como também tinham uma infinidade de organizações: agremiações esportivas, carnavalescas, associações de moradores etc.
Já o programa BemDoc, da Usaid, por sua vez, tinha como finalidade melhorar as condições físicas das favelas e também a identificação de lideranças para a solução das felt needs. No entanto, quando os moradores colocavam para eles a necessidade de construir melhorias urbanas, como calçamento, incinerador de lixo ou qualquer coisa que precisasse de obras, a agência não podia fazer nada, nem destinar recursos para a execução das obras. Vou citar um exemplo. Quando os moradores de Nova Brasília conseguiram, sem a agência, terreno e material de construção para uma escola, enquanto o BemDoc se comprometia a fornecer o professor para a escola, esta última não só impôs que a escola atendesse somente as crianças como também, posteriormente ao funcionamento da escola, deslocou o professor, muito querido entre os moradores, para outra atividade na agência. No final das contas, acabaram atuando mesmo na qualificação profissional de jovens.
A pesquisa também aborda personagens, eventos políticos e disputas ocorridas na favela do Jacarezinho. Poderia nos traçar um cenário local?
A favela existe, entre inúmeros motivos, também porque os moradores sabem fazer política e porque são empreendedores natos. A própria existência da favela é, por si só, um grande empreendimento. Afinal, requer que se construa casas, o que por sua vez requer materiais, a criação de uma infraestrutura mínima e força de trabalho, individual e coletivo. Não é pouca coisa. Então, como o Jacarezinho já era uma favela consolidada – talvez a maior da América Latina naqueles anos -, cabia aos moradores melhorar a infraestrutura: distribuição de luz, água e esgoto. Também era importante intensificar suas fontes de recursos, como os blocos, escolas de samba, clubes de futebol, comércio etc. E para que estas demandas fossem encaminhadas, era preciso uma associação de moradores. Os conflitos e negociações entre os moradores se dão nesse sentido. Como eu digo na tese, são as interações em torno da materialidade da vida política e da política da vida material que dão os contornos do cenário do Jacarezinho naquele momento. Tínhamos, em plena ditadura, uma questão fundamental que era viabilizar as eleições para a associação de moradores, o que se deu no ano de 1967. Até lá, muitas disputas aconteceram internamente em torno do controle das cabines de luz, do preço da luz, da organização dos representantes de rua, da associação pró-melhoramentos (antecessora da associação de moradores), das ameaças de perseguição àqueles que pudessem ser denunciados como subversivos e até em torno das festas juninas houve disputas. Isso para não falar nas disputas entre a favela e o estado, analisadas por Elizabeth Leeds. Nesse sentido, o risco das remoções foram tema recorrente entre os moradores e entre os quadros técnicos de agências internacionais, sobretudo a ACB – Ação Comunitária do Brasil. No que tange especificamente aos moradores, vemos ininterruptamente uma intensa mobilização política, a exemplo da organização da União dos Trabalhadores Favelados, analisada por Nísia Lima (1989). Não só entre eles, mas com órgãos do estado como a Fundação Leão XIII, a prefeitura, políticos, enfim, com toda e qualquer pessoa ou instituição. Até os pesquisadores foram enredados nas tramas dos moradores, como mostro na tese.
Um capítulo da tese é destinado à colaboração de Flávio Romano, morador do Jacarezinho, na rede de pesquisadores. Qual a importância deste personagem na história?
Flávio Romano era um político e um antropólogo nato. Como diria nosso grande mestre, Prof. Luiz Antônio Machado da Silva, era um antropólogo de mão cheia. Conseguia fazer o que chamo na tese de “jogo etnográfico”. Jogava com os pesquisadores e com a agência internacional na qual trabalhou, a ACB. Ele sabia que sua condição de morador da favela e observador privilegiado poderia lhe render benesses, ou ainda, que isso poderia ser transformado em um capital político junto aos moradores e junto às agências. Dentro da ACB, sua inserção foi importante na medida em que ele conhecia muitas favelas e que tinha facilidade em conhecer e se comunicar com seus moradores. Também sabia que essa facilidade de comunicação e entrada nas favelas era algo que faltava nessas agências, incluindo a ACB, cujos quadros técnicos eram compostos majoritariamente por estadunidenses.
Dentro da rede científica sua inserção foi importante para que pudesse entrar nessas agências. Muito provavelmente, foi através desse contato que pôde frequentar as reuniões do Peace Corps no Brasil. Cabe lembrar que havia quadros que saíam de uma agência internacional e iam para outra. Joseph Blatchford, por exemplo, saiu do Peace Corps e foi para a Action International, matriz da ACB, nesse período.
Sua presença na rede científica também é evidente não só nas notas de campo, mas também nos resultados de pesquisa. Não por acaso, vemos muita semelhança entre o texto publicado pelo Prof. Machado, A política na favela, publicado originalmente em 1967, e o de Romano, intitulado Favela, de novembro de 1966, nos quais apontam a estratificação de classes dentro da favela e a burguesia favelada. A presença dele nesta rede científica mostra não só a mudança que estava ocorrendo na antropologia, na busca por alguma simetria na relação entre pesquisadores e seus interlocutores, bem como o coloca como um ativo produtor de conhecimento, tanto quanto os pesquisadores. Mostra também a qualidade das observações de Romano, a ponto de serem dignos de coleta e guarda pelos Leeds, estando no mesmo patamar que as notas de campo de nomes como Peggy Rockefeller, David Morocco, Luiz Antônio Machado da Silva, Ina Dutra, entre outros cientistas que compunham a rede científica.
A sua tese discute os principais debates levantados pela antropologia do período. Quais eram as questões em voga e como se relacionavam com as políticas urbanas?
A meu ver, o desenvolvimento era o grande tema, que vinha acompanhado das ideias de mudança social e modernização. O desenvolvimento era o ponto de convergência entre as agências internacionais e os cientistas sociais no período. Afinal, a preocupação com as habitações de baixa renda também mobilizou a Organização das Nações Unidas, como mostro na tese. Houve uma grande mobilização de recursos e de estrutura administrativa voltada para a promoção do desenvolvimento nas cidades, voltadas mais especificamente para as habitações de baixa renda. Tanto as Nações Unidas, quanto o Peace Corps, o Bemdoc/Usaid e a ACB tinham o desenvolvimento como justificativa para suas entradas nas favelas. Para isso, absorveram muitos profissionais das ciências sociais, que estavam, naquele momento, às voltas com a disputa de narrativa em torno desse conceito. No caso das favelas, na medida em que os poderes públicos as viam como problemas, ou ainda, empecilhos à modernização e à mudança, o debate sobre o desenvolvimento veio ora para reforçar essa visão, ora para abrir a possibilidade de uma nova abordagem. Afinal, havia também a perspectiva de urbanização das favelas e a melhoria das casas e das condições de vida dos moradores. Alguns viam a remoção para conjuntos habitacionais em locais afastados da cidade como única forma de oferecer moradia digna para os mais pobres. Outros viam a possibilidade de urbanização, mas somente em favelas sem risco de desabamento. Assim como havia aqueles que defendiam a urbanização das favelas, argumentando que era mais barato e mais viável do que a remoção. Isto, aliás, foi comprovado empiricamente por essa rede científica que estudei e, em 1968, executado pela Codesco – Companhia de Desenvolvimento de Comunidade na urbanização de Brás de Pina. A disputa narrativa sobre o que poderia ser o desenvolvimento e como se promoveria o desenvolvimento levou às perspectivas de atuação destas agências internacionais que atuavam nas favelas naquele período, bem como estruturou a narrativa que justificava a remoção.
Após quase uma década pesquisando os arquivos do casal Leeds, e especificamente suas notas de campo, como você os vê, pessoal e profissionalmente? O que cada um trouxe de peculiar no trabalho e como suas abordagens se integravam?
Intelectualmente, os Leeds são minhas principais referências nas ciências sociais, além da minha orientadora, claro. Hoje em dia, tudo que eu leio, eu remeto à obra deles. Lembro a primeira vez que li A Sociologia do Brasil Urbano. Li aquela introdução umas 500 vezes, degustando, linha por linha, a crítica à teoria marxista, opção teórica e metodológica que me é muito cara. Isso foi em 2010, com o objetivo de fazer a identificação preliminar dos documentos escritos dos Leeds. Também os capítulos em colaboração com Elizabeth Leeds (e aí, minha gente, me perdoe, mas vou puxar a sardinha pro lado dela, sim, sem pudor nenhum) me trouxe uma sofisticação no meu olhar político em relação às favelas, ao estado e às cidades. Enquanto Anthony Leeds me deu maior amplitude na perspectiva econômica e na teoria marxista, Elizabeth Leeds me tirou qualquer pingo de ingenuidade política que eu pudesse ter. A ela eu devo uma maior perspicácia política que levei para a minha vida. Nunca mais eu li jornal da mesma maneira. Nem dei aula de sociologia da mesma maneira. Se ela influenciou as análises de Anthony Leeds, também a mim me influenciou muito. Aquele artigo dela, de 1994, Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: ameaças à democratização em nível local, publicado em Um século de favela (Zaluar e Alvito, 1998), foi crucial para eu entender as relações que temos com o Estado. Para mim, que trabalho numa escola pública, foi fundamental a perspectiva que ela me trouxe. Sem dúvida, A sociologia do Brasil urbano foi a obra que eu mais li na minha vida!
No plano pessoal, me identifico muito com os Leeds. Eu também morei no Tuiuti numa época da minha vida; dei aula no Conjunto Cesarão, em Santa Cruz, que é para onde foram removidos alguns moradores do Morro da Catacumba; dei aula numa localidade chamada Barata, entre Realengo e Padre Miguel, isto é, numa região que podemos chamar de periferia; e desde 2010 até hoje dou aula numa escola situada entre o Jacarezinho e Manguinhos, que atende moradores destas e de outras favelas próximas, como Arará, Mangueira e Maré. Sou servidora desses moradores! É para eles que eu trabalho! E, assim sendo, compartilho as dores e as delícias de frequentar estes espaços e, mais ainda, ouvir, conversar e aprender com meus interlocutores.
Fale um pouco da sua orientadora, a socióloga Nísia Trindade Lima, hoje presidente da Fiocruz.
O convívio com os documentos, com a obra dos Leeds e com a minha orientadora me trouxe qualidade de percepção das favelas, das cidades, das ciências sociais e, principalmente, da vida, dos valores humanitários. Através da Nísia e da Licia Valladares, outra fonte de inspiração minha, tive a alegria de conhecer pessoalmente Elizabeth Leeds, a quem eu devo muito. Ela, Nísia e Lícia me acolheram e foram sempre interlocutoras muito atentas. Para mim, são cientistas exemplares, justamente porque trabalham, como diz Elizabeth Leeds, “no chão”. Espero não tê-las decepcionado em nenhum momento, porque não há tese neste mundo que pague tudo o que elas me deram, intelectual e pessoalmente.
Sua tese acaba de vencer o Prêmio Oswaldo Cruz de Teses na área de Ciências Humanas e Sociais. Que impacto acredita que seu trabalho poderá ter?
No Brasil atual, onde se queimam biomas, museus, pessoas com cor e endereço, onde se nega a ciência, é difícil acreditar em alguma coisa. Como pensar em impacto de tese diante de tanta tragédia e negacionismo? Passei os últimos anos de escrita da tese amargando gastura atrás de gastura. 14 de março de 2018 – data do assassinato da vereadora Marielle Franco – foi o início do fim. Dali por diante, fomos só cinzas. Se não fosse minha orientadora e minha mãe, eu não teria segurado as pontas. Então, nesse cenário cinzento, não sei se nós, cientistas e professores, temos condições de fazer projeções de futuro, porque não sabemos se temos direito ao futuro. Na melhor das hipóteses, posso falar em termos de esperança, do que eu gostaria que acontecesse. E como tese é um constante refazimento, ela deve produzir outros refazimentos e renovações também. Espero que as pessoas leiam mais A sociologia do Brasil urbano, que leiam tudo que Elizabeth Leeds publicou, que valorizem toda a dedicação que esta cientista política têm dado aos estudos sobre Diretos Humanos e Segurança Pública no Brasil e, principalmente, que consultem o acervo dos Leeds e tudo o que tem na COC. Também espero que as pessoas tenham mais interesse nas ciências sociais e no pensamento social brasileiro; que leiam nossas grandes sociólogas Nísia Lima e Lícia Valladares; que valorizem as mulheres cientistas, principalmente as cientistas negras; que desconstruam todo e qualquer tipo de estigmatização perversa sobre as favelas e seus moradores; que as pessoas valorizem nossos bens culturais, como museus e arquivos, nossos bens naturais, como biomas, e nossos bens humanos, como os povos tradicionais, nossas crianças e jovens. Enfim, que valorizem nossa memória, nossa história e nossa existência. Espero que a tese estimule reflexões e ações construtivas nos leitores. Refaçamos toda a guariroba, agora, já.
Como citar este texto:
VIANA, Rachel. Refazendas: as favelas tecendo fios da antropologia urbana e da cidade. Entrevista ao Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado em 6 de outubro de 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/refazendas-as-favelas-tecendo-fios-da-antropologia-urbana-e-da-cidade/
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Favela, sertão carioca
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