Março/2013
Por José Tadeu Arantes | Agência Fapesp Encerrado oficialmente há apenas 125 anos, o sistema escravista, componente fundamental da formação da sociedade brasileira, ainda influencia, de diferentes maneiras, o país no presente. Embora exista uma vasta historiografia da escravidão, os novos estudos são sempre oportunos – ainda mais quando, recorrendo exaustivamente às fontes primárias, investigam em profundidade aspectos que só haviam sido tratados por obras de caráter mais geral. Tal é o caso de Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista , tese de livre-docência de José Flavio Motta, professor associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), publicada na forma de livro com o apoio da FAPESP. Nesse trabalho, o autor – um veterano no estudo da escravidão, que já havia publicado, em 1999, o livro Corpos escravos, vontades livres , igualmente com o apoio da FAPESP – pesquisa as características do comércio de escravos no período de 1861 a 1887, que cobre, quase inteiramente, as três últimas décadas do sistema escravista e do regime monárquico no Brasil. “Trata-se, como é sabido, de um período de grande expansão da lavoura cafeeira na Província de São Paulo. E os municípios escolhidos para análise – Areias e Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, e Constituição (Piracicaba) e Casa Branca, no ‘Oeste Histórico’ – foram atingidos pelo avanço do café no território paulista, na virada do século dezoito para o dezenove”, disse. A principal base documental do estudo foram escrituras de transações envolvendo escravos (compra e venda, permuta, doação etc.), preservadas nos arquivos desses municípios. No total, Motta analisou 1.656 escrituras, correspondentes a 3.677 cativos. Outra fonte utilizada foi o Almanak da Província de São Paulo para 1873 . Além disso, o pesquisador percorreu a vasta coleção de fontes impressas primárias e secundárias sobre o tema, desde o relato A Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861), de Augusto Emílio Zaluar, até o estudo historiográfico O escravismo colonial , de Jacob Gorender (1985), dois livros considerados clássicos. “Analiso nessa tese as características das transações, dos escravistas que as realizavam e, sobretudo, das pessoas que eram negociadas”, afirmou Motta. Com o fim do tráfico transatlântico intensificou-se no Brasil o comércio interno de escravos, inter e intraprovincial. A expansão da cafeicultura paulista fez com que os municípios analisados se tornassem importantes polos de atração, com as entradas de cativos prevalecendo sobre a saída, embora esta não deixasse de ocorrer. O mesmo fenômeno foi observado em outras áreas produtoras. “A proposta foi desenvolver um estudo comparativo, ao mesmo tempo sincrônico – entre os distintos municípios que vivenciavam estágios diferenciados do desenvolvimento das lavouras cafeeiras – e diacrônico entre os distintos intervalos de tempo: 1861-1869, 1870-1873, 1874-1880 e 1881-1887. Nesses intervalos houve variações na própria dinâmica de tráfico interna, devidoem parte ao avanço na chamada questão servil, com a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, e da Lei dos Sexagenários, em 1885”, explicou Motta. Variação nos preços Grosso modo, nas áreas mais recentes e dinâmicas (em especial no “Oeste Novo” paulista), localizadas na fronteira da expansão da cafeicultura, a grande demanda por mão de obra fez afluir, em maior número, escravos provenientes das províncias do “Norte” do país. E, no contingente de escravos comercializados, destacam-se os adultos jovens do sexo masculino. Seu preço, mais alto no mercado escravista, era compensado pela maior produtividade no trabalho. Já nas áreas mais antigas (Vale do Paraíba), os escravos negociados eram comparativamente mais velhos e provenientes, em maior proporção e dependendo do subperíodo considerado, de províncias limítrofes (Rio de Janeiro e Minas Gerais), tendo, por isso, menor preço no mercado escravista. Motta, no entanto, ressalva que a preferência pelos adultos jovens do sexo masculino como uma característica bastante geral do comércio interno estudado não é uma novidade para a historiografia. “O diferencial deste estudo está em acompanhar como, e sugerir interpretações do porquê, essa preferência se torna mais ou menos intensa, naqueles diferentes municípios, no decurso dos distintos intervalos temporais”, disse. A profusão de dados quantitativos, em uma tese que é fundamentalmente um trabalho de história econômica, não reduziu os escravos à condição de meros números, desprovidos de subjetividade e de protagonismo. “Em algumas situações, se percebe com nitidez o esforço dos escravos para moldar seus destinos ou ao menos influir neles, nos limites do possível”, ressaltou o pesquisador. Marcas profundas Um caso exemplar, tanto do empenho do escravo em conquistar sua liberdade como dos comportamentos da elite escravista, é o de Rosaura, cozinheira então com 25 anos. Autorizada pela proprietária a pedir esmolas como atividade adicional, para comprar sua liberdade por um conto e quinhentos mil réis, Rosaura conseguiu em sete meses juntar um montante de 30 mil réis, entregues à sua senhora mediante recibo. Quando Rosaura foi vendida a outro senhor, pelo valor de 1 conto e 500 mil réis, os 30 mil réis de seu pecúlio, conforme descrito na correspondente escritura, foram repassados pela antiga proprietária para o novo. Transcorridos apenas dois meses, esse a revendeu por 1 conto e 750 mil réis, obtendo grande lucro na transação. Mas, diferentemente da escritura de venda anterior, a nova não fez nenhuma referência às economias da escrava, talvez simplesmente apropriadas pelo seu segundo senhor.- Escravos daqui, dali e de mais além Autor: José Flavio Motta Lançamento: 2012 Preço: R$ 67 Páginas: 387 Mais informações: www.alamedaeditorial.com.br/escravos-daqui-dali