Fevereiro/2020
Haendel Gomes dos Santos | Casa de Oswaldo Cruz
Harald Sioli trajando chapéu que ganhou de presente em expedição pelo alto Tapajós em 1941. Arquivo Histórico da Sociedade Max Planck, Hauptabt. Va, Rep. 166.
O cientista alemão Harald Sioli chegou à Amazônia em 1940, quando iniciou seus estudos sobre as águas doces no norte do Brasil. Já na época, a região era cenário de projetos de “desenvolvimento” frequentemente idealizados no centro do país ou no exterior. Passados 16 anos desde a morte de Sioli, iniciativas concebidas a partir de Brasília e de outras regiões brasileiros – incluindo a expansão da mineração e do agronegócio, passando por projetos de hidrelétricas – seguem na agenda, ignorando uma das principais “lições” dos estudos de Sioli.
Na visão do cientista, as práticas e visões locais – indígenas e de populações ribeirinhas – deveriam guiar a formulação de políticas para a região, como forma de garantir sua preservação, aponta o historiador André Felipe Cândido da Silva, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que investigou a trajetória de Sioli. O cientista alemão se notabilizou por seus estudos das águas dos rios da Amazônia, incluindo seus organismos e aspectos físicos, químicos e biológicos.
“Uma das principais [lições de Sioli] diz respeito à necessidade de se levar em conta padrões de povoamento da região e usos da floresta praticados pelos próprios habitantes”, afirma. “As ditas políticas de “desenvolvimento” devem ser guiadas privilegiando aquilo que é defendido pelo próprio amazônida e não [por] interesses e visões de mundo […] guiados por pressupostos materialistas que visam meramente o lucro e a exploração dos recursos.”
Em novembro de 2019, André Felipe participou da mesa-redonda “Ciência, cooperação e desenvolvimento na Amazônia” durante o 3º Seminário de História das Ciências na Amazônia, realizado em Belém. Na ocasião, o pesquisador discutiu seu estudo sobre “Harald Sioli e a formação de uma rede transnacional de estudos da ecologia amazônica (1945-2004)”.
Nesta entrevista, André Felipe Cândido da Silva discute o caráter pioneiro das pesquisas de Sioli, que, décadas antes das discussões sobre mudanças climáticas, já apontava o papel da Amazônia como reserva de carbono e o consequente aumento da emissão desse elemento na atmosfera em decorrência das queimadas da floresta.
Confira os principais trechos:
Qual é a importância do trabalho do limnologista alemão Harald Sioli para o entendimento do bioma Amazônia?
O trabalho de Sioli permitiu compreender a relação das características das águas da bacia amazônica com a composição do solo, da vegetação e da formação geológica das zonas de origem e de percurso dos rios. Ele decifrou o papel dos rios na formação da paisagem e nos ciclos de nutrientes, assim apontando a centralidade das águas na dinâmica daquele ecossistema, o qual pode abordar de forma integrada e holística. Ele demonstrou, por exemplo, que os solos de terra firme são pobres, não se prestando, portanto, à prática agrícola. Também advertiu sobre os riscos do desmatamento e de intervenções de grande escala que comprometem o equilíbrio do ecossistema, baseado, segundo ele, em ciclos bastante fechados e eficientes de circulação de nutrientes e metabólitos. Antes mesmo do debate sobre mudança climática global, Sioli apontou o papel da Amazônia como reserva de carbono e o consequente aumento da emissão desse elemento na atmosfera em decorrência das queimadas da floresta.
Harald Sioli era um crítico do desmatamento da Amazônia. Que lição os estudos do cientista deixam aos brasileiros preocupados com a preservação desse bioma?
Entre as várias lições que este profundo conhecedor da Amazônia nos legou por meio de seus estudos e textos considero que uma das principais diz respeito à necessidade de se levar em conta padrões de povoamento da região e usos da floresta praticados pelos próprios habitantes, ou seja, as ditas políticas de “desenvolvimento” devem ser guiadas privilegiando aquilo que é defendido pelo próprio amazônida e não os interesses e visões de mundo, de segmentos sociais que vivem em outras partes do Brasil ou do planeta, guiados por pressupostos materialistas que visam meramente o lucro e a exploração dos recursos. Ademais, Sioli defendeu o respeito pelas populações indígenas e ribeirinhas, reconhecendo seu papel na preservação do bioma, por manter com ele uma relação sustentável em longo prazo.
O cientista também contribuiu para um acordo transnacional entre Brasil e Alemanha no final da década de 1960. Como se deu esse processo?
O acordo entre a Sociedade Max Planck e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] teve como base institucional o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia [INPA], criado em 1952 e implementado em 1954, que desde o início manteve forte colaboração com o Instituto Max Planck de Limnologia, situado em Plön. Sioli assumiu a direção desse instituto em 1957 e, em 1966, criou o Departamento de Ecologia Tropical, cujo foco foram as pesquisas sobre a ecologia amazônica. Tais pesquisas envolveram a cooperação estreita com os brasileiros. O acordo firmado com o CNPq formalizou o intercâmbio entre Brasil e Alemanha, com a estruturação de contrapartidas de ambas as partes, sendo importante para a institucionalização dos estudos sobre os diversos aspectos da ecologia da bacia amazônica.
André Felipe Cândido da Silva, da Casa de Oswaldo Cruz, pesquisou a trajetória de Sioli
Qual é a importância do intercâmbio entre pesquisadores e instituições nos temas relacionados à região amazônica?
A complexidade dos processos concernentes à região amazônica demanda colaboração transdisciplinar, interinstitucional e internacional. A especialização científica, por sua vez, implica em equipes cada vez mais numerosas. As instituições possuem atribuições específicas e instalações limitadas. A cooperação entre elas otimiza a realização de programas científicos em termos de expertises, organização e equipamentos. Tudo isso se reflete nos estudos da região amazônica, na qual também se faz relevante a interface entre equipes que mantêm diálogo e engajamento mais próximo com as questões locais, da complexa ecologia humana dos povos que a habitam e processos que os afetam, com grupos de outras regiões e países. Esta sinergia traz uma abordagem integrada e panorâmica das dinâmicas da região amazônica e de soluções para os problemas e desafios que ela apresenta.
Por que é importante consolidar o campo da história das ciências nas instituições de ensino e pesquisa da Amazônia?
Existe uma longa tradição de pesquisas sobre a Amazônia, antes mesmo do surgimento das primeiras instituições científicas, com a visita de viajantes, que foram cruciais para o entendimento da natureza e das populações e para a construção de um imaginário em torno da região.
A investigação histórica do conhecimento científico da Amazônia nas distintas temporalidades permite-nos compreender, entre outras coisas, a relação entre as ciências e os padrões de relação com o ambiente amazônico, bem como o papel dos cientistas e das instituições na formulação e legitimação de políticas de ocupação e usos dos seus recursos. Possibilita entender, ainda, os significados assumidos pela bacia amazônica nos diferentes contextos históricos, como paraíso edênico, de natureza abundante e diversa; como o “inferno verde”, como o vasto, rico e bárbaro território que deve ser ocupado, explorado e “domesticado” pela “civilização”; e, por fim, como bioma que deve ser preservado ou racionalmente utilizado, pelo seu papel na conservação da biodiversidade e do equilíbrio climático regional, nacional e global.
A história das ciências no Brasil concentrou-se nas instituições das regiões sul e sudeste, mas nas três edições do seminário de História das Ciências na Amazônia dos quais tive a honra de participar foi possível perceber o adensamento crescente de estudos feitos nas instituições da própria região amazônica, o que é muito bem-vindo, pois, certamente, a inserção no contexto local impacta em estudos mais atentos e sensíveis às demandas e dinâmicas locais.
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Harald Sioli e a esquistossomose na Fordlândia, 1950
O historiador André Felipe Cândido da Silva revela as descobertas do limnologista alemão em workshop sobre doenças tropicais na Fiocruz
