Novembro/2013
Marina Lemle
Mandioca, banana, peixe e caça são a base da alimentação diária do Povo Kulina, que habita três Terras Indígenas no Alto Rio Envira, no Acre. A oferta de peixe e caça, porém, nem sempre supre as necessidades de proteína da aldeia. Para incrementar a dieta, os Kulina cultivam variedades de cará e taioba, que possuem valor energético importante, assim como o milho, usado para fazer mingau e pamonha. O amendoim é cultivado em algumas aldeias nas áreas de praia, na época de estiagem, chamada de verão. Há ainda alguns alimentos esporádicos, de acordo com a época de frutificação, como açaí, patoá, buriti, frutas silvestres diversas e algumas frutas cultivadas em menor proporção.
Além dos plantios para subsistência, o grupo cultiva diversas espécies para fins terapêuticos. Um levantamento feito pelo pesquisador Moacir Haverroth, da Embrapa Acre, identificou 30 espécies cultivadas em 64 roçados Kulina e outras cultivadas em torno de suas moradias (quintais), além de mais de 200 morfotipos vegetais da floresta – não se diz ‘espécies’ porque poucas foram identificadas taxonomicamente – utilizados pelos Kulina no seu dia-a-dia.
“Das 200 plantas registradas na floresta, praticamente todas são para fins terapêuticos, considerando, nesse caso, todo o contexto cultural em torno de concepções de saúde, doença, tratamento e cura. Nos roçados, registramos o cultivo (ou tolerância de plantas espontâneas) de 30 espécies. Há desde roçados mais biodiversos, com até 15 espécies (no mesmo roçado) até roçados com apenas uma espécie cultivada. Nem todas são destinadas à alimentação – há espécies com papel medicinal e com papel agroecológico, como controle de doenças e insetos, dar força para as outras ou plantas companheiras”, explica Haverroth.
O projeto “Etnobiologia e Etnoecologia entre os Povos da Floresta, Acre: os Kulina (Madija) do Alto Rio Envira” começou em 2008, com o objetivo de pesquisar as plantas conhecidas e utilizadas pelos Kulina para alimentação e fins medicinais (cultivadas ou não) dentro do seu contexto cultural e regional. Para chegar nas aldeias Kulina, é preciso subir de barco o Rio Envira por 5 a 7 dias desde a cidade de Feijó, no Acre. A etnia também se distribui em aldeias ao longo do Rio Purus, desde o Peru, e no Rio Juruá, entre Acre e Amazonas.
“Os Kulina vivem num contexto próprio e o cotidiano é vivido em função de conseguir o básico para a manutenção da vida. Circulam bastante pelo rio e, por vezes, ficam muitos dias distantes das casas de moradias, na mata ou ao longo do Rio Envira. Falam, basicamente, sua língua própria – poucos falam alguma coisa de português. Isso exige do pesquisador a aprendizagem da língua Kulina, da família Arawá”, conta Haverroth. Ele acrescenta que outra parte importante do trabalho foi a introdução de algumas sementes de frutíferas, visando aumentar a variabilidade da alimentação. Esta ação, entretanto, foi prejudicada por diversos fatores, como a dificuldade de acesso às aldeias, que é muito limitado por questões sazonais, os recursos escassos para o projeto e a equipe reduzida – apenas ele com algum acompanhamento da Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira (Opire). Foram realizadas cinco viagens a campo, com um barco tipo batelão, típico na região.
Previamente, em 2006, o pesquisador havia feito uma viagem com recursos próprios para obtenção do Termo de Anuência Prévia, exigência do CGEN para realizar a pesquisa. “As autorizações do CGEN/MMA são uma grande novela que emperra as pesquisas que precisem de acesso ao Patrimônio Genético (PG) e/ou ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA) ao PG. Levei dois anos para conseguir autorização do CGEN, Funai e Ministério da Defesa”, revela.
A concepção do projeto surgira em 2005, quando ele retornava de Brasília para o Acre, onde já havia trabalhado, entre 1997 e 1999, fazendo a formação de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) de Kulinas do Alto Rio Purus e dando assessoria nas aldeias pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC), uma das mais antigas ONGs do estado. Isso foi pouco antes da transição da responsabilidade integral da saúde indígena para a Funasa, em consonância com o SUS, o que já não é mais, desde a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena.
“Após essa experiência, minha intenção era fazer doutorado com os Kulina, o que acabou não acontecendo. De 2000 a 2004, fiz doutorado em Saúde Pública na ENSP/Fiocruz, sob a orientação de Carlos Coimbra Jr.. Por uma questão de financiamento da pesquisa, acabei fazendo minha pesquisa com os Wari’ (Pakaanova) de Rondônia, o que foi bom, porque vim a conhecer outra etnia e pude estabelecer uma ponte melhor de conhecimento entre Acre e Rondônia”, explica.
Ao terminar o doutorado, Haverroth ficou em Brasília trabalhando na Cassi (Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil), mas a vida o levou novamente ao Acre.
“Minha opção foi concorrer a uma bolsa do CNPq com um projeto sobre os Kulina ligado à UFAC. A bolsa foi aprovada e comecei a elaborar melhor o projeto. Entramos na fase de autorizações, que levou dois anos. Nesse ínterim, prestei concurso para a Embrapa, onde fui contratado em março de 2007. Então, aprovei o projeto, com algumas adaptações, no sistema Embrapa de projetos. Somente no final de 2008 é que iniciamos o trabalho de campo. O prazo de execução do projeto, na Embrapa, encerrou em 2011. Agora, estamos executando outro projeto entre os Kaxinawá da Terra Indígena Nova Olinda, também no Alto Rio Envira, mas envolvendo uma grande equipe formada por pesquisadores e técnicos da Embrapa e de parceiros”, conta.
Fonte: Portal da RETiSFito
Saiba mais:
Projeto pesquisa conhecimento tradicional indígena – Reportagem reproduzida do site da Embrapa.
Os Kulina (Madija): língua, trabalhos e estudo – Artigo publicado em Agrosoft Brasil (2010)
Calendário agrícola, agrobiodiversidade e distribuição espacial de roçados Kulina (Madija), Alto Rio Envira, Acre, Brasil – Artigo de Moacir Haverroth e Paula Rosane Menezes Negreiros, da Embrapa Acre, publicado em Sitientibussérie Ciências Biológicas 11(2): 299–308. 2011.
Ethnobiology and Health among the Kulina People from the Upper Envira River, State of Acre, Brazil – Artigo de M. Haverroth, P.R.M. Negreiros e L.C.P. Barros publicado em The Open Complementary Medicine Journal, 2010, 2, 42-57.
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Antônio Moniz de Souza, o ‘Homem da Natureza Brasileira’: ciência e plantas medicinais no início do século XIX – Santos, Laura Carvalho dos, vol.15, no.4, dez 2008.
Tradições populares de uso de plantas medicinais na Amazônia – Santos, Fernando Sergio Dumas dos, vol.6, Set 2000.