Março/2015
José Tadeu Arantes | Agência Fapesp É frequente identificar a antiga cidade grega apenas com seu núcleo urbano visível, especialmente com a Acrópole de Atenas. Mas pesquisas arqueológicas demonstraram que a pólis englobava área extensa, incluindo uma parte eventualmente mais urbanizada (ásty) e outra de povoamento menos denso (khôra), onde se praticava a agricultura, a pecuária, a coleta de lenha, mas também se morava. A multifacetada relação entre centro e periferia na organização da pólis é objeto de dois Projetos Temáticos apoiados pela FAPESP: “A organização da khôra: a cidade grega diante de sua hinterlândia” e “Cidade e território na Grécia antiga: organização do espaço e sociedade” (concluído). Esses estudos vêm ajudando na revisão em profundidade da organização social e da vida cotidiana da Grécia nos períodos arcaico e clássico. “Nossa visão do mundo grego foi muito sugestionada por uma certa conotação atribuída à palavra ‘política’, que é um adjetivo derivado de pólis. E é este o principal conceito que estamos revendo”, disse a historiadora Maria Beatriz Borba Florenzano, professora titular de Arqueologia Clássica no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e coordenadora dos projetos. “Desde a criação dos Estados nacionais europeus, no período compreendido entre os séculos XV e XIX, o que se procurou na Antiguidade foram os aspectos relacionados com a autoridade, a estrutura de poder, as instituições etc. Então, a famosa frase de Aristóteles, de que ‘o homem é um animal político’, foi entendida em termos de organização em facções, de disputa pelo controle do Estado, de participação no governo ou na oposição etc. Mas, se fizermos uma leitura mais acurada, veremos que, ao empregar a palavra ‘política’, Aristóteles se referia a uma forma de vida específica do mundo grego, centrada na organização em cidades enquanto espaços extensos, englobando a ásty e a khôra, e não apenas à participação nas instituições que hoje chamamos de ‘políticas’, no sentido estrito da palavra”, prosseguiu a pesquisadora. Florenzano enfatizou que essa abordagem revisionista é fruto da recente pesquisa arqueológica, que possibilitou uma releitura ou uma melhor contextualização dos textos clássicos. Nesse processo, o Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (Labeca) vem dando sua parcela de contribuição. Fundado em 2006 no MAE-USP, o laboratório está estreitamente vinculado aos dois projetos temáticos citados. “A historiografia sempre se baseou no estudo dos textos antigos. Mas a arqueologia permitiu desvelar outros aspectos, que os textos não mostravam. E essas são informações que o Labeca tem procurado difundir”, afirmou. Materiais diversos disponibilizados pelo laboratório podem ser acessados no site da instituição (http://labeca.mae.usp.br/pt-br/). A visão da antiga Grécia oferecida por esses materiais é bem diferente da convencional. Havia, é claro, uma helenidade: todos falavam grego; até a região ser submetida pelo Império Macedônico, no século IV a.C., a sociedade se organizava em cidades independentes e não em um Estado centralizado; o panteão era um só (embora determinados deuses ou deusas fossem mais cultuados em um lugar do que em outros, ou fossem cultuados com certos atributos em um lugar e com atributos diferentes em outros). Mas as pequenas cidades e o mundo rural eram bem mais relevantes do que fez supor a antiga historiografia. “Havia numerosas poleis com não mais do que mil habitantes e havia também algumas grandes poleis, como Atenas, com 150 mil habitantes, ou Siracusa, com 100 mil”, informou Florenzano. “Antigamente a historiografia valorizava muito os grandes templos, localizados na ágora, a praça central da cidade antiga. Mas, quando inserimos esses grandes templos no contexto geral da pólis, percebemos que eles estavam conectados com outros espaços sagrados, distribuídos pela ásty e pela khôra. Havia caminhos específicos ligando uns aos outros e o conjunto dos caminhos formava uma rede que articulava o território todo”, afirmou. “Verificamos, então, que o domínio da cidade se estendia sobre um território muito maior do que o núcleo densamente povoado. E podemos entender também as referências feitas nos textos antigos aos percursos por onde se deslocavam as procissões – como a grande procissão que integrava Atenas à cidade de Eleusis, onde eram celebrados os mistérios associados aos cultos das deusas agrícolas Deméter e sua filha Kore (a forma virginal e terrestre de Perséfone). São percursos que energizavam todo o território, dotando-o de uma sacralidade específica”, disse a historiadora. Um exemplo específico, estudado pela professora Elaine Farias Veloso Hirata, pesquisadora do laboratório, foi a instauração do culto às duas deusas (Deméter e Kore) em Gela, cidade fundada pelos gregos na Sicília (hoje região autônoma da Itália). O estudo foi descrito no artigo “As práticas religiosas e a organização do espaço na Sicília arcaica: artefatos e estruturas entre a ásty e khóra em Gela”, publicado como capítulo do livro Imagem, gênero e espaço: representações da Antiguidade, de Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (organizador)(Niterói, Editora Alternativa-Capes, 2014). “Nossa hipótese de pesquisa centra-se no papel desempenhado pelas áreas consagradas a Deméter-Kore, localizadas nos arredores da ásty, nos limites da khóra, como marcas territoriais do domínio greco-balcânico sobre a planície interiorana agriculturável ocupada pelas populações locais”, escreveu a historiadora. Segundo Hirata, os santuários dedicados a essas deusas agrícolas (eram 25 na área de Gela) foram uma forma de os gregos, vindos de fora, se aproximarem das populações nativas, tornando manifesta sua presença e garantindo as posições conquistadas. Nessas áreas sagradas, eram realizadas as tesmofórias, festividades celebradas em honra a Deméter-Kore, nas quais estava interditada a presença de homens e só podiam participar as mulheres casadas com cidadãos. Este e outros exemplos divergem do modelo construído pela historiografia tradicional de uma sociedade em que os únicos agentes históricos eram os cidadãos – categoria que excluía mulheres, crianças, estrangeiros e escravos. O subtema foi desenvolvido pelo historiador Fabio Augusto Morales Soares no artigo “Cidadãos e habitantes: por uma dialética da pólis”, publicado como capítulo do livro Estudos sobre a cidade antiga, organizado por Maria Beatriz Borba Florenzano e Elaine Farias Veloso Hirata (São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2000), que contou com apoio para publicação da FAPESP. “A historiografia do final do século XIX ao final do século XX tendeu a pensar a pólis como categoria central na organização narrativa da ‘história da Grécia antiga’, e essa pólis era a Atenas do período clássico; a pólis se identificava com uma ‘comunidade de cidadãos’, ou ‘comunidade de cidadãos em suas instituições’ (…)”, escreveu Soares. No artigo, o historiador apontou várias tentativas, feitas na historiografia contemporânea, para incluir como sujeitos históricos os habitantes não cidadãos (mulheres, crianças, estrangeiros e escravos). E concluiu, escrevendo: “Se, por um lado, os cidadãos procuram, institucionalmente, monopolizar a política e, portanto, a apropriação da pólis, identificando-se com ela e formulando seus ‘outros’, os não cidadãos dispõem de meios não institucionais de prática política, pela qual eles se apropriam, como sujeitos políticos, da pólis vista como comunidade dos habitantes”. Em seu estudo de mestrado, apoiado pela FAPESP, Soares estudou especialmente o exemplo de Lísias, célebre orador de ascendência estrangeira do período clássico: “A democracia ateniense pelo avesso: os metecos e a política dos discursos de Lísias”. Reestudo do material disponível A Grécia vem sendo escavada desde o Renascimento. Os museus e os institutos de patrimônio europeus têm arquivos e publicações repletos de materiais. A massa documental é gigantesca. Considerando essa variável e a dificuldade em obter autorizações para realizar novas escavações na Grécia, na Itália ou na Turquia, os pesquisadores do Labeca optaram por reestudar o material disponibilizado pelos arquivos e publicações. “É claro que fizemos também várias viagens a campo, para recuperar bibliografia e mapas antigos e para visitar, fotografar e filmar os sítios arqueológicos, porque os nossos projetos também se inserem em uma arqueologia da paisagem. Levamos equipes e alunos, montamos bancos de dados, estabelecemos muitos contatos, na Grécia, na Itália e na França, mas não realizamos escavações”, afirmou Florenzano. O projeto temático em curso, coordenado por ela, enfoca principalmente as muitas maneiras encontradas pelos gregos para ocupar o território de suas cidades e marcar fronteiras com outros gregos e os não gregos. Fonte: Agência Fapesp Leia em HCS-Manguinhos: Platão e a medicina, artigo de Rodrigo Siqueira-Batista e Fermin Roland Schramm. (vol.11, no.3, dez 2004) Sobre a técnica, artigo de Ricardo Lafetá Novaes (vol.3, no.1, jun 1996)