Para pesquisadora, mito de ‘país tolerante’ silencia debate sobre racismo na Holanda

Carolina de Assis | Opera Mundi
O debate sobre a herança colonial e o racismo na Holanda é reaceso a cada ano nos meses de novembro e dezembro, quando o personagem Zwarte Piet, ou “Pedro Preto”, aparece nas vitrines de lojas decoradas para o Natal em todo o país.

De acordo com o folclore holandês, os Zwarte Piets são os ajudantes do Sinterklaas, ou São Nicolau, figura análoga ao Papai Noel. Nas paradas natalinas realizadas em várias cidades, o personagem é encarnado por pessoas brancas, que fazem uso de “blackface” (maquiagem que cobre o rosto de negro) batom vermelho que realça os lábios, perucas de cabelos crespos e brincos de argola dourados. Se grande parte da população holandesa não vê problema na representação do Zwarte Piet, por outro lado, ele é considerado uma caricatura racista por vários movimentos sociais, que há anos protestam contra o personagem e ressaltam a necessidade da discussão sobre o racismo na sociedade holandesa.

Holandeses caracterizados como Zwarte Piets em parada na cidade de Ypenburg, perto de Haia, em 2009.
jar0d / Flickr

A questão voltou à baila no país na última quarta-feira (12/11), quando o Conselho de Estado holandês — o mais alto tribunal do país — divulgou decisão sobre o recurso apresentado pela prefeitura de Amsterdã em prol da realização da parada anual de Sinterklaas na cidade, o maior evento natalino do país. O recurso foi apresentado após sentença do Juizado Administrativo de Amsterdã do início de julho que considerou o personagem Zwarte Piet “ofensivo” e “perpetuador de estereótipos racistas”, exigindo que o prefeito Eberhard van der Laan reconsiderasse a realização do desfile na cidade. O Conselho de Estado, entretanto, julgou anteontem que a questão do racismo não compete ao prefeito, e se absteve de estipular se o personagem tem ou não caráter racista.

Em entrevista a Opera Mundi, Patricia Schor, pesquisadora da Universidade de Utrecht e especialista em pós-colonialismo e racismo, argumenta que o personagem remete ao passado colonial e escravocrata da Holanda e reforça a discriminação contra pessoas negras no contexto atual do país: “Não somente o Zwarte Piet carrega esta herança de desumanização do negro, como ele reafirma também a posição marginal que a população negra tem na Holanda contemporânea”. Schor, que é brasileira e vive na Holanda há 20 anos, vê semelhanças entre os dois países: segundo ela, apesar de terem sido construídos sobre a exploração da mão de obra de pessoas negras escravizadas, ambos se baseiam em mitos de formação nacional que permitem a negação do racismo.

 

Cartaz do ano de 1900 anuncia ‘Minstrel Show’ nos EUA, em que ator branco usa ‘blackface’ para representar pessoa negra. Wikimedia Commons

Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Opera Mundi: Você considera a figura do Zwarte Piet racista?

Patricia Schor: A figura do Zwarte Piet é um elemento “novo” na festa do Sinterklaas, uma tradição vinda da Idade Média. O Zwarte Piet é uma caricatura de um negro vestido como escravo doméstico, que foi adicionada à tradição somente no século 19, ainda antes da abolição da escravidão nas colônias holandesas. Nesta época circulavam figuras correspondentes ao Zwarte Piet em outros espaços coloniais e imperiais, como o Golliwog no Reino Unido, e os Minstrel Shows nos Estados Unidos, ambas figuras impensáveis no espaço público destes países hoje em dia. A pintura da época também está repleta de figuras de negros como escravos domésticos que, afinal, serviam como símbolo de status social da família “proprietária”.
Desde o século 18 o negro foi objetificado na cultura europeia como elemento sexualizado, desejado, e animalizado, temido. Não somente o Zwarte Piet carrega esta herança de desumanização do negro, como ele reafirma também a posição marginal que a população negra tem na Holanda contemporânea.


Assista abaixo vídeo, em inglês, com reação de pessoas em Londres à tradição natalina holandesa:

OM: Você vê algum paralelo entre Zwarte Piet e o racismo na sociedade holandesa e o racismo na sociedade brasileira?

PS: A sociedade holandesa, assim como a brasileira, se considera não racista por nascimento. É como se fosse impossível conceber o racismo em tais lugares. Imagine o Brasil, um país para onde foi levado forçosamente o maior contingente de negros escravizados no comércio transatlântico, um país construído sobre o trabalho da mão de obra escrava, um país cuja estrutura social pouco mudou desde então; como conceber um país com esta herança como imune ao racismo? Criou-se o mito luso-tropical da harmonia racial, firmemente enraizado e repleto de adeptos até hoje em terras brasileiras e lusitanas. Imagine a Holanda, um país que enriqueceu vertiginosamente com o comércio marítimo, um país que colonizou e explorou populações indígenas, um país que participou direta e indiretamente do comércio de negros escravizados; como conceber tal país como imune ao racismo? Construiu-se o mito de uma tolerância nata e, como no Brasil, não se permitiu que o negro adentrasse o espaço público senão como subalterno. Quem fala e reforça o mito é o branco, detentor do poder, da propriedade e da voz. O Zwarte Piet materializa mito e realidade: o holandês branco faz festa desumanizando e ridicularizando o negro. Ele, o branco, pode, já que todos sabem que ele, por definição, não pode ser racista, pois nasceu holandês. E que ninguém ouse questionar a prática racista; afinal, quem é proprietário deste país?

No Brasil, o Zwarte Piet é, entre outras, a imagem do Mussum falando errado, ou a figura do “negro burro” em teoria engraçado, uma graça que todos nós temos que compartilhar, e que quem não compartilha não tem graça. Isso em um país onde os índices de homicídio de jovens negros, estes mesmos negros que são objeto de galhofa, permitem-nos falar do “genocídio do negro brasileiro”, uma expressão que o escritor e ativista Abdias do Nascimento cunhou três décadas atrás. Para não falarmos da segregação e discriminação que tocam os demais aspectos da vida da população preta e parda do Brasil. Na Holanda, a violência é menor e mais escondida, enquanto a questão da representação racista é um pouco mais acintosa, com o Zwarte Piet como mascote nacional, como assunto de Estado. Mas a herança colonial é a mesma.

[Obra do autor holandês Jan Schenkman (1806-1863), que teria criado o personagem Zwarte Piet em seu livro “São Nicolau e seu servo” (1850)]

OM: Como você avalia a resistência de parte da população holandesa às alegações dos opositores ao Zwarte Piet?

PS: A população holandesa, notadamente a maioria branca, acredita ter o monopólio sobre a cultura e sociedade holandesas. Os não-brancos, provindos das ex-colônias holandesas, e os demais imigrantes não-ocidentais (note que o Brasil também é considerado não-ocidental) sempre foram e continuam sendo considerados cidadãos de segunda categoria. Destes se espera o agradecimento incondicional por terem sido recebidos neste “paraíso” onde são marginalizados e tolerados como se fossem hóspedes indesejados. A luta destes holandeses pela participação verdadeira e pelo exercício da cidadania plena enfurece os holandeses brancos. Esta fúria tem sido direcionada aos ativistas antirracismo mais vocais, e primordialmente aos ativistas negros.

OM: Como a sociedade holandesa deveria lidar com a figura do Zwarte Piet? Ela deveria ser banida, alterada ou discutida?

PS: A sociedade holandesa deveria ter dado ouvidos aos holandeses negros que iniciaram o ativismo contra o Zwarte Piet décadas atrás, em vez de tê-los intimidado, marginalizado e silenciado. As escolas primárias deveriam ter banido esta caricatura racista do currículo escolar; as prefeituras, das festas públicas; as lojas, das vitrines. Sempre houve ativismo direcionado a cada uma destas instituições, ativismo que continua a existir, mas muito pouco mudou. Por isso levamos o caso à Justiça. Desde então o racismo virou o tópico mais discutido no país. O movimento contra o Zwarte Piet está intimamente ligado a outras manifestações de racismo na sociedade holandesa, como levantado pelo recente relatório do Conselho da Europa: segregação nas escolas e no acesso à moradia, discriminação no mercado de trabalho, discriminação racial como prática da polícia, uma legislação de imigração e asilo que busca os limites do possível e do ético e um clima político xenófobo. O debate é necessário, principalmente porque foi silenciado sob a cortina de um país tolerante, o que é somente em parte verdade e, em grande parte, mito. Porém é preciso, além da conversa, mudar. Assim que o sistema legal confirmar que o Zwarte Piet é uma manifestação racista, ele será banido das instituições públicas, e as privadas irão acompanhar a mudança. Assim, as crianças negras não serão mais xingadas de Zwarte Piet na escola, e as crianças não-negras aprenderão a viver de forma respeitosa e humana, em sociedade.

 

Protesto da campanha Zwarte Piet Niet (“Pedro Preto Não”, em tradução livre) em novembro de 2013 em Amsterdã. Zwarte Piet Niet / Facebook

 

OM: Como você avalia a decisão do Conselho de Estado holandês sobre o personagem Zwarte Piet e a parada de Sinterklaas em Amsterdã?

PS: O Conselho de Estado é um órgão conservador que, por via de regra, se posiciona em defesa do Estado holandês. Como já esperávamos, o Conselho deu razão ao prefeito de Amsterdã, que se recusou a considerar a “questão do racismo” quando julgou o pedido de autorização para a parada do Sinterklaas, que desfila pela cidade no seu cavalo branco, acompanhado de seus setecentos e tantos Zwarte Piets. Segundo o Conselho, as questões ligadas ao respeito ou não aos direitos fundamentais estão fora do escopo do prefeito quando este julga pedidos para a realização de eventos no espaço público. Assim, o Conselho anula a decisão da Corte de Amsterdã, que havia exigido que o prefeito levasse a questão do racismo em consideração, e havia afirmado que o Zwarte Piet é um estereótipo racial negativo. O Conselho de Estado se negou a confirmar ou negar o caráter racista do Zwarte Piet, e indicou que o prefeito de Amsterdã também não é a autoridade que deve fazer este julgamento. Segundo o Conselho, alegações de racismo em um evento público devem endereçar os organizadores do evento, não a prefeitura que o autoriza, e devem ser direcionadas à corte civil ou criminal.

Assim, após décadas de luta contra a manifestação mais evidente de um racismo enraizado nas instituições holandesas, estas mesmas instituições – públicas, inclusive – continuam a ter carta branca do Estado para manter uma caricatura racista como elemento central na cultura pública holandesa. O Zwarte Piet está presente de forma massiva na sociedade holandesa na época das festas – em lojas, programas de TV, filmes, escolas, livros – e é direcionada ao público infantil. Deste modo se garante a doutrinação de uma nova geração de holandeses para o racismo.

Fonte: Opera Mundi

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