Abril/2017
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Com dois eixos desafiadores – fixar médicos no interior e nas periferias e fortalecer a formação e inserção de médicos na Atenção Primária – o Programa Mais Médicos enfrenta dificuldades e impasses diversos desde a sua criação, em 2013, pelo Governo federal. Para se analisar esta política de forma contextualizada, é preciso mergulhar em um conjunto de informações que permitam entender os cenários e interesses envolvidos, suas relações e as implicações ao longo dos anos. Para fornecer uma fonte de informações essenciais, o Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz lançou a página Programa Mais Médicos para o Brasil: textos e documentos de referência reunidos.
O Blog de HCS-Manguinhos entrevistou Thais Franco, enfermeira e mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Uerj, que conduziu a construção da coletânea, e o coordenador do Observatório, Carlos Henrique Assunção Paiva.
Qual o objetivo da iniciativa?
Carlos H. Paiva – O Observatório História e Saúde é parte da Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde (ObservaRH), uma iniciativa da Organização Panamericana da Saúde (OPAS/OMS) e do Ministério da Saúde do Brasil, e tem como finalidade produzir e difundir conhecimento sobre o campo da educação e do trabalho em saúde. Como “Observadores” do campo, portanto, não poderíamos deixar de trazer nossa contribuição para os estudiosos, gestores ou simplesmente interessados em uma política tão importante como o Mais Médicos. Controverso, palco de acirrado debate que em muito o transcendeu, o Mais Médicos não pode deixar de ser percebido como uma das mais relevantes iniciativas do governo brasileiro no sentido de produzir alterações na formação de médicos em nosso país. Um esforço que procurou mais do que aumentar e distribuir profissionais pelo território, mas, sobretudo, reforçar a Atenção Primária em Saúde no país. A despeito de sua importância e repercussão pública, entendemos que há uma relativa dispersão de informações sobre o Programa. É verdade que o Ministério da Saúde dispõe, em seu website, toda a documentação institucional que embasa a política. Esta documentação, naturalmente, é parte fundamental para que possamos compreender o Programa, suas orientações e modificações mais recentes. Nós procuramos reuni-la, mas também agregar – para fins de uma leitura mais crítica e embasada – uma pequena seleção de textos que certamente permitirão uma compreensão, digamos assim, mais alargada do Mais Médicos, seja em termos históricos, percebendo iniciativas que seguiram caminho semelhante; seja em termos de sua repercussão e do debate público mais recente. Acreditamos que por intermédio dessa modesta contribuição o Observatório cumpre, mais uma vez, sua função institucional.
O que mudou no Mais Médicos e por quê?
Thais Franco – As mudanças mais significativas no programa ocorreram antes mesmo da publicação da lei que o instituiu. A introdução de um segundo ciclo de formação para ingressantes no curso de medicina, presente na MP, foi excluído no texto final da Lei. Em troca, a lei determinou a ampliação da carga horária do internato destinada às atividades na Atenção Básica e em Serviços de Urgência e Emergência do SUS, e também instituiu a obrigatoriedade de cursar um ou dois anos da residência em Medicina Geral de Família e Comunidade para o acesso à maior parte dos outros programas de residência médica.
Ao longo desses três anos, também ocorreram mudanças em aspectos operacionais, e alguns ajustes no programa. Por exemplo, no último edital para a seleção de médicos para atuação nas regiões prioritárias, foi aberta aos profissionais selecionados a possibilidade de solicitar a mudança do seu local de atuação. A opção de permuta de localidade faz parte da tentativa do Governo federal de incentivar a adesão e permanência de médicos brasileiros no programa.
Qual a situação do programa hoje?
Thais Franco – Devido à heterogeneidade dos municípios participantes, é possível que em cada um desses locais a atuação dos médicos bolsistas esteja repercutindo de forma diferente, e enfrentando desafios distintos. Na seleção de referências para compor a página, encontramos alguns artigos que descrevem resultados das ações do PMM e relatam experiências diversas, como a entrada do programa em comunidades quilombolas no Pará e Rio Grande do Norte, Unidades de Saúde Indígena no Tocantins e Unidades Básicas de Curitiba.
Outro aspecto que, aparentemente, está mudando é o perfil dos médicos participantes. De acordo com o Governo federal, já em 2015, no 5° edital de chamamento, a maior parte das vagas para provimento emergencial de médicos abertas foi ocupada por médicos brasileiros. Essa tendência se repetiu nos editais subsequentes.
Com relação a abertura de novos cursos de medicina, entre 2013 e 2015 ocorreu uma expansão de vagas e cursos em instituições federais, como previsto na Política Nacional de Expansão das Escolas Médicas das Instituições Federais de Ensino Superior, que é parte das ações do PMM.
No entanto, a expansão de cursos privados acabou demorando mais do que o previsto inicialmente pelo governo. Em julho de 2015, foram pré-selecionados 36 novos cursos privados por meio do processo de seleção definido pelo PMM. Em novembro de 2015 a abertura das 2290 vagas de medicina previstas, foram suspensas pelo TCU após diversas ações serem movidas questionando o edital. Em julho de 2016, a criação dos novos cursos foi autorizada e deverão ser implantados em um prazo máximo de 18 meses.
Conclui-se, portanto que, se tratando de uma política relativamente recente, composta por ações de curto e médio prazo, e que vem passando por sucessivas mudanças, não é possível precisar a situação do programa hoje. Para que isso ocorra, será necessário o desenvolvimento e publicação de novas pesquisas sobre os diferentes aspectos do programa.
Quais as perspectivas futuras? O que é preciso melhorar e para quê?
Thais Franco – A distribuição dos médicos no país e a fixação desses profissionais em áreas rurais e periferias urbanas, questão central do programa, é um problema vivenciado por diferentes sistemas de saúde. A má distribuição de médicos vem sendo identificada em vários países ao longo dos últimos 50 anos. As diversas experiências e pesquisas desenvolvidas sobre a temática assinalam que a solução para o problema dificilmente virá de uma política ou um único programa, mas de uma combinação de incentivos e ações diversificadas. O PMM reúne elementos importantes como a criação de programas de residência médica no interior, a introdução de mudanças curriculares e oferta de incentivo para a atuação de médicos nessas regiões, porém, como todo programa tem limitações.
No cenário atual, a adoção de medidas de restrição do financiamento das políticas sociais, como a aprovação da PEC 55, possivelmente impactarão na capacidade dos pequenos municípios rurais e periferias urbanas conseguirem atrair e fixar médicos, já que as condições de trabalho e infraestrutura são parte importante nesse processo.
Outro aspecto sobre o qual é difícil traçar uma perspectiva é a ampliação significativa do número de cursos de medicina privados, muitos deles relativamente pequenos (50 vagas). Existem questões importantes, principalmente quando se desenha um cenário no qual políticas federais de acesso ao ensino superior, notadamente o FIES, que desempenharam um importante papel na ampliação do acesso ao ensino superior pela via privada estão em declínio. Os valores das mensalidades em cursos de medicina privados são significativamente maiores que a média dos valores cobrados em outras graduações. Esse aspecto levanta uma série de questões como o perfil do aluno que consegue arcar com esses encargos, quais são as possibilidades de democratizar o acesso a formação médica nesse contexto, e quais serão as possibilidades de financiamento estudantil, entre outras.
Em minha dissertação de mestrado, orientada pelo professor Mario Dal Poz, no Instituto de Medicina Social da Uerj, identificamos que a atuação do setor privado no curso de medicina apresenta uma dinâmica bem diferente do observado tanto nos outros cursos da saúde, quanto no ensino superior brasileiro. O crescimento e predomínio do setor privado na formação de médicos no país se acelerou no momento em que o setor de ensino superior estava passando por um período de desaceleração.
Assim, as mudanças instituídas pelo PMMB podem acarretar em transformações no perfil das mantenedoras de cursos de medicina. No Brasil, atualmente, observa-se um crescimento significativo da participação de IES privadas lucrativas, e também a formação de grandes grupos empresariais no setor de ensino superior. Por esse motivo, serão necessárias pesquisas que identifiquem quais as consequências da combinação das mudanças instituídas pelo PMM às tendências recentes do ensino superior privado no país. Na dissertação, por exemplo, analisando os resultados do primeiro edital de seleção de cursos de medicina privados, percebemos uma tendência ao aumento da participação de IES privadas lucrativas na formação médica.
Numa perspectiva histórica, qual a importância deste programa para o Brasil?
Carlos H. Paiva – Sendo, talvez, excessivamente rigoroso, eu te diria que o programa é ainda inconcluso, seus resultados precisam ser devidamente aquilatados, seu processo de desenvolvimento e suas consequências concluídas. No entanto, adaptando sua pergunta, o que é possível concluir sobre o que se pode ver até o momento? Em minha opinião, o Mais Médicos se depara com dois grandes eixos de problemas muito importantes: fixar médicos no interior do país e em regiões de periferia urbana; e fortalecer a formação e inserção de médicos na Atenção Primária. Pode-se adiantar que não são itens de uma agenda exatamente nova. O primeiro eixo de problemas, por exemplo, desde o final dos anos 50, tendo a OPAS como importante fórum, já constituía um admirável foco de debates em âmbito latino-americano. Já no cenário especificamente brasileiro, especialmente no contexto dos anos 1960 e 70, fomos testemunhas de importantes iniciativas que não deixaram de se ocupar da fixação de profissionais de saúde.
Os chamados projetos de Medicina Comunitária – como os que se realizaram em Montes Claros, em Minas Gerais e em Londrina, no Paraná – podem ser encarados como frentes de trabalho que procuraram melhorar a cobertura assistencial no país. Mas não só! Eles foram mais do que isso: ao permitirem uma aproximação da formação médica aos problemas de saúde mais recorrentes, estes mesmos projetos foram capazes de produzir respostas, ainda que bastante limitadas, para a segunda problemática, isto é, foram capazes de contribuir para uma formação médica mais afinada com aquilo que chamaríamos hoje de Atenção Primária.
O que quero dizer, portanto, é que o Mais Médicos se localiza em um conjunto de iniciativas que, historicamente, tem procurado trazer respostas para velhos e tradicionais problemas nos campos da educação médica e da assistência à saúde. Não quero, contudo, que o leitor conclua que o Mais Médicos seja uma espécie de “mais do mesmo”. O que digo é que o Programa foi constituído a partir de um certo acúmulo, digamos, cognitivo, de expertises e de práticas provenientes de várias políticas e iniciativas desenvolvidas em todo país, inclusive em diálogo com o ambiente internacional.
A diferença mais importante com relação ao passado é o que o Mais Médicos se constitui, pela primeira vez, como uma vigorosa política nacional, formulada e implementada por uma secretaria especializada do Ministério. Aliás, a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), em 2003, é de alguma forma, parte desse acúmulo de expertise e de maior institucionalização das ações no chamado campo dos recursos humanos. Sob essa perspectiva, podemos avaliar o Mais Médicos como uma espécie de ponto culminante em nosso amadurecimento na formulação de políticas voltadas para aqueles dois eixos – fixar médicos no interior e nas periferias e fortalecer a formação e inserção de médicos na Atenção Primária. Mas não nos empolguemos demasiadamente. As resistências que enfrentou e ainda enfrenta o debate público que, em boa medida, lhe foi hostil, revela que o que chamei de “avanço” foi, no mínimo, repleto de contradições e limitações. Talvez precisemos de um pouco mais de tempo para que possamos avaliar, em retrospectiva, essa experiência e eventualmente melhor avaliar o seu legado.
Acesse: Programa Mais Médicos para o Brasil: textos e documentos de referência reunidos
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