Para enfrentar dramas sanitários, história

Julho/2020

Marina Lemle e Marcos Cueto | Blog de HCS-Manguinhos

Gabriel Lopes

Diante da enormidade dos danos causados pela Covid-19, historiadores têm sido instados a traçar paralelos com pandemias e epidemias do passado. É o caso de Gabriel Lopes, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos. Autor do recém-lançado livro “O feroz mosquito africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940)”, que narra a história do vetor causador de uma grande epidemia de malária no Nordeste na década de 1930, Lopes explica que não se resolve uma questão da escala da Covid-19 sem uma boa articulação entre o local e o global.

A chegada do mosquito africano no Rio Grande do Norte levou à organização de ações emergenciais para contê-lo, mas, num segundo momento, a partir de 1932, sua presença no Brasil foi negligenciada, favorecendo um alastramento silencioso que resultou numa epidemia sem precedentes nas Américas em 1938. O mosquito foi erradicado do país em 1940, após esforços cooperativos entre o governo de Getúlio Vargas e a Fundação Rockefeller, dos EUA.

Em relação à pandemia de Covid-19, Lopes enfatiza a importância de políticas que valorizem consensos científicos e orientações de órgãos supranacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS), assim como um bom entendimento entre estes organismos, países fronteiriços e governos nacionais, estaduais e locais. 

Nesta entrevista, o pesquisador destaca também a importância da dimensão ecológica na história das doenças e da busca por uma perspectiva histórica que supere o antropocentrismo. “A história das ciências e da saúde fornece um conjunto de documentos muito rico para se entender os problemas e desafios sanitários em seus momentos mais dramáticos”, afirma. 

Quais os desafios da sua pesquisa sobre o Anopheles gambiae no Brasil?

Capa do livro de Gabriel Lopes (Editora Fiocruz)

A história sobre a chegada, alastramento e erradicação do Anopheles gambiae, conhecido como o “feroz mosquito africano” nas palavras de Afrânio Peixoto, pode ser contada de diferentes formas. Um dos principais desafios que me propus a enfrentar foi buscar entender de que maneira a cooperação entre Divisão Sanitária Internacional da Fundação Rockefeller que atuava no Brasil teve que negociar com a realidade tanto política quanto científica do início dos anos de 1930.

Houve uma transformação importante, que foi a aproximação de Fred Soper, que se tornaria o diretor do Serviço de Malária do Nordeste em 1939, com Getúlio Vargas. Uma relação que era precária no início dos anos de 1930, e levou a um descompasso das ações emergenciais contra o Anopheles gambiae, se fortaleceu ao longo da década e deu uma autonomia à atuação da Fundação que desagradou muitas autoridades brasileiras. Esse contexto político não pode ser separado de um contexto ecológico e epidemiológico que serviu de precondição para o mosquito invasor se alastrar silenciosamente pelo interior dos estados do Rio Grande do Norte e do Ceará.

Juntamente com os pesquisadores e as populações atingidas, o mosquito é um personagem ativo nessa história, assim como o ritmo das chuvas, secas e controvérsias científicas e políticas entre pesquisadores e instituições.

Na história da saúde, qual a importância de se compreender a dimensão ecológica de uma doença?

A história das doenças transmitidas por mosquitos mostra a importância de se considerar as dimensões ecológicas da nossa coexistência com esses vetores. Eu procuro mostrar no livro como os pesquisadores buscavam entender o comportamento do A. gambiae baseado em estudos realizados no continente africano e como ele surpreendeu, desde o início até sua erradicação, as autoridades de saúde pública e pesquisadores.

A história das ciências e da saúde fornece um conjunto de documentos muito rico para se entender os problemas e desafios sanitários em seus momentos mais dramáticos. É no momento dos impasses, quando não sabe muito o que fazer, que observamos como esses objetos que a ciência persegue, ao mesmo tempo que ajuda a moldar, estão sempre se colocando como um novo desafio.  Esses elementos, seja o Anopheles gambiae ou como vemos hoje o SARS-CoV2, ajudam a mostrar como esses desafios sanitários ajudam a entender seres humanos como parte de uma cadeia de espécies e parasitismos e de uma coexistência íntima, mesmo que não desejável nesses casos, com outros seres vivos.

Essa perspectiva na história da saúde deve muito à história ambiental e aos estudos recentes sobre história dos animais não humanos em uma perspectiva que busca superar o antropocentrismo. Sobretudo essas histórias reforçam que é importante entender que mesmo nos colocando no centro das nossas narrativas, não somos a medida de todas as coisas. As humanidades devem se ampliar nesse sentido para desenvolver uma sensibilidade que possa narrar essas relações que são históricas apesar de não serem exclusivamente humanas. Os desafios sanitários do presente dependem disso.

O que o alastramento do Anopheles gambiae e a epidemia de malária no Brasil nos anos 1930 podem nos ensinar sobre como se lidar com a Covid-19 e outras possíveis epidemias futuras? É possível traçar paralelos?

Pesquisadores que buscam entender as epidemias ao longo da história sempre são provocados a repensar suas narrativas sobre o passado na medida em que se deparam com a dramaticidade das epidemias do presente. Atualmente, dada a perplexidade diante da Covid-19, esses paralelos estão sendo muito estimulados. Um dos elementos sobre o estudo das doenças, epidemias e pandemias que sempre me fascinou foi a importância da análise desses acontecimentos em diferentes escalas, ou seja, como as epidemias e pandemias, mesmo possuindo determinadas características específicas, podem ser mais ou menos devastadoras a depender das condições locais específicas. Geralmente essas questões são definidas por fatores complexos, tanto naturais, quanto sociais. Nesse sentido, é importante observar que a Covid-19 amplifica problemas de saúde pública pré-existentes em vários níveis. Uma questão que é importante, além de tudo, é que temos endemias que estão coexistindo com a pandemia de Covid-19, como o caso da malária, especialmente no continente africano, e a dengue no Brasil. Como já foi alertado pela OMS, há uma perspectiva de aumento das doenças transmitidas por mosquitos, a partir do momento em que a atual pandemia pode desmobilizar ações de prevenção contra a malária e a dengue, especialmente em populações negligenciadas e sem saneamento.

Por isso, na atual pandemia, podemos observar que uma boa articulação entre organismos supranacionais como a Organização Mundial da Saúde, grupos de países fronteiriços, governos nacionais e estaduais/locais é muito importante. Não há uma solução simples, nem mesmo uma “bala mágica”, que resolva uma questão dessa escala sem uma boa articulação entre o local e o global. Uma grande questão, no caso do A. gambiae, um mosquito vindo do Senegal, era como ele iria se comportar no Brasil, por isso os pesquisadores recorreram aos estudos realizados na África subsaariana nos anos de 1930. Mesmo assim, boa parte das soluções locais não puderam ser aplicadas de forma mais rápida devido à desarticulação política entre o estado do Rio Grande do Norte, a Fundação Rockefeller e o governo federal no início de 1930, esse foi um dos fatores que pode ter levado ao alastramento silencioso que descrevo no livro. Por outro lado, a chegada desse mosquito no Brasil impulsionou muitas mudanças sobre acordos internacionais sobre a maneira de funcionamento de aeroportos, e intensificou a vigilância nos aeroportos a respeito do transporte de mosquitos.

Geralmente, a análise histórica das grandes epidemias e pandemias pode servir para amplificar problemas estruturais, tornando-os mais visíveis como processo. Nesse sentido, a atual pandemia tem a possibilidade de tornar as lideranças e poderes públicos mais sensíveis não apenas a aspectos de problemas estruturais locais, como o saneamento básico e condições de vida das populações negligenciadas, mas também à importância de políticas responsáveis que valorizem os consensos científicos e políticos e orientações de órgãos supranacionais como a OMS.

Quais os principais arquivos consultados na sua pesquisa sobre o Anopheles gambiae no Brasil?

Durante a pesquisa para a tese de doutorado, que serviu de base para o livro, foram consultados os arquivos da Base Arch, que é o repositório de informações do arquivo permanente da Casa de Oswaldo Cruz, que está no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. Nesse arquivo consultei principalmente informações sobre o Serviço de Malária do Nordeste, Serviço Cooperativo de Febre Amarela. Também analisei os diários de Evandro Chagas, uma vez que ele teve uma importante participação de cooperação com o Serviço de Malária do Nordeste.

Durante o doutorado sanduíche no Departamento de História da Medicina da Universidade Johns Hopkins, tive acesso a um rico material na coleção de história da medicina Welch Library. Os estudos relacionados ao transporte intercontinental de mosquitos foram particularmente importantes para compreender a necessidade de vigilância nos aeroportos em relação ao transporte de vetores de doenças. Esse tema passou a causar grande preocupação com as novas rotas aéreas do início dos anos de 1930 e vários experimentos foram realizados. Também foram consultados artigos científicos do período, especialmente sobre os estudos de entomologia médica.

O acervo da Hemeroteca Digital da Brasileira foi muito importante para acompanhar alguns eventos científicos e palestras de pesquisadores envolvidos no combate ao Anopheles gambiae e também para acompanhar as tensões políticas antes da Segunda Guerra Mundial e as preocupações em relação ao alastramento do A. gambiae.

A quem você acha que o seu livro pode interessar especialmente?

A chegada, alastramento e erradicação desse mosquito no Brasil foi um processo documentado por pesquisadores que se dedicaram tanto ao campo quanto ao laboratório. Muitos personagens que descrevo no livro, como Raymond Shannon, conheceram dezenas de cidades no Nordeste do Brasil, buscando por focos de mosquitos e fazendo pesquisas, pois a movimentação e o alastramento do mosquito foram um grande desafio. Ao mesmo tempo, os pesquisadores que cooperaram com Serviço de Malária do Nordeste também estavam enredados em acordos internacionais que definiam suas prioridades de pesquisa.  Acredito que o livro possa interessar o público geral interessado em história das doenças e também possa ser útil para pesquisadores das ciências biomédicas que queiram se informar sobre a história da malária e dos pesquisadores desse campo. Também pode interessar historiadores e pesquisadores das humanidades de maneira geral que queiram expandir seus horizontes sobre a riqueza dos objetos históricos da história das ciências e da saúde e pesquisadores com interesse sobre a história da cooperação internacional em saúde.

Leia em HCS-Manguinhos:

A chegada do “feroz mosquito africano” Anopheles gambiae no Brasil, artigo de Gabriel Lopes (v. 26, n.3, jul./set. 2019)

Leia no Blog de HCS-Manguinhos:

Editora Fiocruz lança livro sobre epidemia de malária no Nordeste nos anos 1930
Pesquisa de Gabriel Lopes que deu origem à obra ‘O Feroz Mosquito Africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940)’ recebeu o Prêmio Oswaldo Cruz de Teses 2017, na categoria Ciências Humanas e Sociais

Artigo aborda chegada de mosquito vetor da malária ao Brasil em 1930
Gabriel Lopes, pós-doutorando do PPGHCS/COC, analisa as primeiras reações de cientistas e autoridades de saúde pública contra as epidemias de malária causadas pelo Anopheles gambiae

Marcos Cueto e Gabriel Lopes publicam artigo sobre a participação do Brasil na política global da Aids
Trabalho acaba de ser publicado na revista Social History of Medicine (Oxford University Press)

A pandemia de coronavírus e o Antropoceno
André Felipe Cândido da Silva e Gabriel Lopes escrevem para o especial da Casa de Oswaldo Cruz: “Diferentemente de catástrofes que extinguiriam indistintamente todas as formas de vida, a Covid-19 atinge especificamente os humanos.”

Como citar este post:

Para enfrentar dramas sanitários, história. Entrevista de Gabriel Lopes a Marina Lemle e Marcos Cueto. Blog de HCS-Manguinhos. Publicada em 02 de julho de 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/para-enfrentar-dramas-sanitarios-historia