Pane geral: tudo não passou de um mau jogo

Julho/2014

Victor Andrade de Melo

Victor Andrade de Melo

Ao contrário de muitos brasileiros, o professor Victor Andrade de Melo, coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ, não condena a Comissão Técnica da seleção brasileira pela derrota de 7 a 1 para a Alemanha no Mineirão. Para ele, foi apenas um mau jogo, com um momento de pane geral. O historiador também não acha correto comparar o “Maracanazo” de 1950 com o “Mineiratzen” de 2014, mas defende que se apurem os erros cometidos na Copa para não repeti-los nos Jogos Olímpicos de 2016.

Do ponto de vista histórico, o que esta derrota significa para o Brasil?

Para um historiador, é sempre um grande risco perspectivar o futuro, mas acho sinceramente que não terá grande repercussão. Será obviamente sempre lembrada por jornalistas e “catastrofistas” em geral, mas não creio que na prática venha a trazer grandes mudanças, marcar um novo momento, servir para reavaliações, nada disso, até porque não passou mesmo de uma mau jogo, contra uma equipe superior que fez sua melhor partida, enquanto nossa seleção, que já era mais fraca e estava desfalcada, fez um péssimo jogo, com direito a “pane geral”. Só isso.

É possível comparar esta derrota à de 1950?

Em hipótese alguma. O jogo de 1950 foi uma final, no Maracanã, quando o Brasil não tinha ainda sido campeão, e era muito mais jovem do ponto de vista da sua afirmação identitária; além disso, a equipe vinha de excelentes resultados e parecia superior ao adversário. O jogo de ontem foi uma derrota na semifinal, no Mineirão (bem menos mítico do que o “Maraca”), quando a seleção já é pentacampeã, uma derrota para uma equipe claramente superior; além disso, já não nos escoramos tanto no futebol para nossas construções identitárias, ainda que o velho esporte bretão continue sendo importante e apreciado.

E agora, qual será o legado da Copa?

Devemos separar os temas. O legado de uma Copa não depende diretamente do resultado da seleção nacional. A derrota de ontem não diminui ou aumenta tal legado. Esse para mim é o tema central a ser apreciado. A Copa para nós não acaba no dia 13 de julho, quando todos voltam para casa. A festa indubitavelmente foi excelente, mas devemos seguir perguntando e reivindicando: o que ficou para nós, donos da casa? Mais ainda, é necessário apurar gastos, desperdícios, até porque não só há uma conta a ser paga, como porque temos ainda um megaevento pela frente, os Jogos Olímpicos de 2016. Seria bom que tenhamos aprendido com os erros da Copa para não fazer nos Jogos Olímpicos. Eu, sinceramente, não tenho grande esperança que isso ocorra, até porque há sempre muitos interesses obscuros que cercam essas competições esportivas.

A derrota pode trazer mudanças significativas na questão tática do futebol jogado pelo Brasil, saindo os treinadores com perfil de “paizões”/motivadores e entrando profissionais que de fato estudam a parte tática?

Primeiro gostaria de desfazer essa relação tão direta entre “falta de atualização” e o resultado da partida. Vale lembrar que chegamos entre os quatro melhores e que com esse time fomos campeões da Copa das Confederações, vencendo a na ocasião poderosa Espanha. A Comissão Técnica da seleção brasileira atual não é incompetente, embora tenha se saído mal nessa Copa. Jornalistas e analistas de plantão vão fazer milhares de análises estapafúrdias no calor dos acontecimentos; nessas horas sempre surgem milhares de “posições geniais” (com ironia). Quase ninguém falou, por exemplo, que a equipe está sendo preparada há pouco tempo. Quase ninguém falou que a “safra” de jogadores, de fato, não é das melhores, além de ser muito jovem e inexperiente. Dito isso, quero dizer que acho fundamental uma mudança de rumos em nosso futebol, mas isso mais no aspecto político e de administração/gestão. Isso sim precisa mudar completamente.

Podemos esperar um clamor por mais profissionalização do nosso futebol e uma renovação na CBF?

Gostaria de crer que sim, mas acho que não. São muitos os interesses obscuros que cercam o futebol (dois livros para quem deseja alguma informação sobre isso: Jogo Sujo – o Mundo Secreto da Fifa, de Andrew Jennings; e O Lado Sujo do Futebol – A Trama de Propinas, Negociatas e Traições que Abalou o Esporte Mais Popular do Mundo, de Amaury Ribeiro Jr., Tony Chastinet e Luiz Carlos Azenha). De toda maneira, aqui também proponho não fazermos relações diretas com o resultado da partida de ontem. Não há dúvida que precisamos mudar tudo no futebol brasileiro, mas o que houve mais do que tudo foi uma tragédia (no sentido grego mesmo). Para um torcedor da seleção brasileira, foi muito triste. Para um investigador do esporte, um fato lindo, que demonstra a beleza dramática do “mais ilógico dos esportes” – expressão usada pelo técnico argentino para explicar o resultado da partida.

Leia artigos de Victor Andrade de Melo em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Atividades físicas, saúde e movimentos juvenis em Cabo Verde, 1910-1930 (vol.19, no.3, set 2012)

Fabricando o soldado, forjando o cidadãoo doutor Eduardo Augusto Pereira de Abreu, a Guerra do Paraguai e a educação física no Brasil (vol.18, no.2, jun 2011)

Sport, medicina e artea ‘ciência encantada’ do corpo nas obras de Thomas Eakins (vol.17, no.1, mar 2010)

Leia também no blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

O legado que se espera é uma profunda revisão do futebol brasileiro
Para o sociólogo Mauricio Murad, obrigação de redimir a derrota de 1950 foi equívoco que pesou nas costas dos jogadores.

Uma megafesta com legado superestimado
Poucos países ou cidades conseguem efeitos positivos duradouros sediando grandes eventos, afirma o professor Rory Miller, fundador do MBA A Indústria do Futebol da Universidade de Liverpool

‘A Copa é o melhor momento de expressar o inconformismo com as nossas insatisfações’
Para o jogador e médico Afonsinho, o Brasil não está aproveitando uma oportunidade extraordinária

‘Uma Copa não tem a força necessária para mudar um país’
Para o antropólogo alemão Martin Curi, os brasileiros alimentaram esperança demais, e o legado possível restringe-se à venda de uma imagem positiva do Brasil

‘Se aprendermos com o acontecido e lutarmos por mudanças, a Copa deixará um legado’
O sociólogo Bernardo Sorj publicou artigo no jornal O Globo.

‘O x da questão não está na reação do jogador, mas no teor da campanha’
Para Clícea Maria Miranda, associação do negro com animalização e a irracionalidade está cristalizada.

Macacos não jogam futebol
Ricardo Waizbort
 inocenta Darwin de acusações de racismo e explica que ele defendia que todas as “raças” humanas faziam parte de uma mesma espécie e compartilhavam um ancestral comum: um primata.

Na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Formação de relações regionais em um contexto global: a rivalidade futebolística entre Rio de Janeiro e São Paulo durante a Primeira República – Artigo de Christina  Peters (vol. 21, n.1,  jan.-mar. 2014)

Leia também:

Qual será o legado deixado pela Copa? – O preço que se paga por sediar o megaevento foi tema da reportagem de capa da Revista Radis de junho.  Legado também é tema do Blog Saúde em Pauta.

Arquivo Nacional em ritmo de Copa
Exposição virtual Drama e Euforia: o Brasil nas Copas de 50 a 70 traz fotos do Correio da Manhã e da Agência Nacional

Professores do CPDOC publicam em Londres livro sobre relações entre o Brasil e o futebol
Paulo Fontes e Bernardo Buarque de Hollanda lançam em Londres The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil.

‘O Maraca é nosso’?
Bernardo Buarque de Hollanda e Jimmy Medeiros apresentam os resultados de uma pesquisa sobre a percepção das torcidas do Rio do novo Maracanã. Exemplo: quanto mais velho o torcedor, mais ele aprova o estádio remodelado.

Como citar este post [ISO 690/2010]:
Pane geral: tudo não passou de uma mau jogo. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 9 July 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/pane-geral-tudo-nao-passou-de-uma-mau-jogo/