Maio/2020
Rodrigo Cesar da Silva Magalhães*
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou como pandemia o surto de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), identificado pela primeira vez em seres humanos em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China. Pouco mais de dois meses depois, os números são assustadores: cerca de cinco milhões de casos confirmados e mais de trezentas mil mortes no mundo[1].
A rápida propagação da Covid-19 para todas as regiões do planeta e a inexistência de uma vacina ou de qualquer medicamento antiviral específico e cientificamente comprovado capazes de, respectivamente, prevenir e tratar a doença têm levado à implementação de quarentenas e lockdowns em vários países. Estas medidas extremas visam garantir o isolamento social e, assim, reduzir os níveis de contágio da nova doença. A principal preocupação de governos do mundo inteiro é evitar o colapso dos sistemas de saúde de seus países, que pode ocorrer se o número de doentes necessitando de internação for maior que o de leitos disponíveis nas unidades hospitalares.
Sistemas de educação ao redor do planeta também sentiram os efeitos da pandemia e vêm enfrentando um desafio sem precedentes. Um relatório do Banco Mundial aponta que cerca de 1.4 bilhão de estudantes estão fora da escola em mais de 156 países[2]. Na América Latina e no Caribe, mais de 154 milhões de crianças e adolescentes se encontram na mesma situação, número que representa cerca de 95% dos alunos matriculados na região, segundo estimativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)[3].
Neste cenário, muitos são os países que têm recorrido, com maior ou menor sucesso, à educação a distância (EAD) e variadas formas de ensino remoto para diminuir os impactos da pandemia sobre o cotidiano escolar. As alternativas vão desde aquelas que envolvem alta tecnologia, como a gravação de vídeo aulas em tempo real e sua disponibilização em plataformas online, até a produção de programas educativos para serem veiculados em emissoras de rádio e televisão. O Brasil também enveredou por este caminho, o que tem revelado e, mais do que isso, acentuado uma desigualdade histórica e estrutural que marca a nossa sociedade: o acesso à educação, que a Constituição Federal considera um direito de todos e que tem como um de seus princípios “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”[4].
No dia 18 de março, já com as aulas suspensas no país, uma portaria do Ministério da Educação (MEC) autorizou a substituição de aulas presenciais por aulas em meios digitais, pelo tempo que durar a pandemia de Covid-19, em toda a rede federal de ensino, que engloba as universidades e institutos federais, o Colégio Pedro II, o Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), o Instituto Benjamin Constant (IBC) e as universidades e faculdades privadas[5]. A portaria do governo federal abriu o caminho para que as redes estaduais e municipais de ensino do país também adotassem medidas visando a implementação do ensino remoto, modalidade já utilizada em muitas escolas particulares. Essa solução desconsiderou, por exemplo, as especificidades da educação infantil, na qual as crianças aprendem de forma lúdica, com brincadeiras e por meio do acolhimento e da interação, uma realidade que o ensino à distância mediado por tecnologias digitais é incapaz de reproduzir, independente da classe social e do nível de formação dos membros da família destas crianças. Além de inaquedada, a utilização de EAD ou quaisquer outras atividades escolares remotas na educação infantil é também ilegal, pois não está prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nem mesmo em situações emergenciais, como acontece com o ensino fundamental[6].
O fato é que a educação à distância e outras formas de ensino remoto mediadas por plataformas tecnológicas, aplicativos de celulares, rádio e televisão vêm sendo incentivadas pelas três esferas de governo, muitas vezes à revelia da legislação educacional vigente no país, e adotadas em larga escala, principalmente na rede privada de ensino. Esse processo, desencadeado em meio a uma pandemia, além de maximizar a exploração dos professores e jogar sobre eles grande parte do ônus causado pelo fechamento das escolas, também tem contribuído para descortinar as diferentes realidades em que vivem os estudantes brasileiros e como elas afetam o seu direito constitucional à educação.
De acordo com o Instituto Trata Brasil, que se baseia em dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS 2018), 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada[7] e outros 100 milhões vivem em locais sem coleta e tratamento de esgoto[8]. No que concerne ao uso de diferentes tecnologias nos domicílios brasileiros, a pesquisa TIC Domicílios 2018 apontou que 30% das residências do país não têm acesso à internet, porcentagem que sobe para 50% se considerarmos as áreas rurais. O estudo mostrou também que entre as classes D e E, 85% se conectam à internet exclusivamente pelo celular, 2% apenas pelo computador e 13% por ambos os dispositivos[9]. Os números não deixam dúvidas sobre quais parcelas da sociedade brasileira têm condições de acompanhar as atividades pedagógicas digitais, caso políticas públicas que tenham como objetivo a universalização do acesso à internet não sejam colocadas em prática. Isso é o que prevê, inclusive, o Marco Civil da Internet, lei sancionada em abril de 2014, que estabelece que o acesso à rede mundial de computadores é um serviço essencial e que, como tal, deve ser garantido a todos[10].
Além dos dados apresentados, qualquer medida que vise estimular a EAD ou formas de ensino remoto no país deve considerar também a realidade daqueles estudantes que têm alguma responsabilidade doméstica, aqueles que precisam trabalhar em idade escolar e os que, embora possuam celular, não podem pagar por um pacote de dados suficiente para acessar as plataformas e aplicativos educacionais. Cabe destacar também que muitos estudantes brasileiros tiveram, infelizmente, familiares doentes, que perderam o emprego ou falecidos em virtude da pandemia de Covid-19, e que um número considerável está enfrentando problemas graves de alimentação, pois, para muitos, a merenda escolar é a única refeição diária. O problema para estas crianças e adolescentes vai muito além das dificuldades de acesso às mais modernas tecnologias. Elas não têm garantidas as condições mínimas de segurança alimentar e de saúde física e mental, sem as quais viver se torna uma tarefa extremamente difícil e estudar praticamente impossível.
Desse modo, como se o enfrentamento de uma crise sanitária de grande magnitude não fosse, por si só, uma tarefa árdua, para o qual o governo federal tem contribuído muito pouco, chegando até mesmo a prejudicar parte dos esforços, esta luta ainda vem acompanhada de outros obstáculos para grandes contingentes da população brasileira, tais como a falta de saneamento básico, de alimentação adequada, de moradia, dificuldades de acesso ao sistema de saúde, sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e ataques aos direitos trabalhistas, para citarmos apenas alguns.
Nesta triste realidade, aceita com normalidade por uma parcela de nossa sociedade, é difícil imaginar que esse número gigantesco de cidadãos brasileiros desassistidos pelo Estado em seus direitos básicos, que não tem água tratada para lavar as mãos e realizar a sua higiene pessoal, tenha condições de estudar à distância por meio de tecnologias digitais. Esta, no entanto, não parece ser a preocupação de gestores educacionais das três esferas de governo e de organizações privadas como Itaú Social, Fundação Lemann, Google e Laureate, dentre outras, que, apesar das críticas de movimentos e organizações sociais ligados à educação, professores e intelectuais, têm feito grandes investimentos em tecnologias para o ensino remoto.
A situação de excepcionalidade na qual nos encontramos não dá ao governo federal o direito de criar barreiras no acesso à educação, sobretudo para crianças e adolescentes que já se encontram em situação de vulnerabilidade. Antes de pensar em EAD e em outras modalidades de ensino remoto, é necessário massificar os investimentos em educação e desenvolver políticas públicas nesse campo que levem em consideração as condições sociais e econômicas em que vive a maior parte dos estudantes brasileiros, principalmente os mais pobres e vulneráveis, sobre os quais as consequências da pandemia de Covid-19 têm se abatido com maior gravidade. Na atual realidade brasileira, a educação à distância ou qualquer outra forma de ensino remoto mediado por tecnologias digitais só fazem sentido para aqueles que enxergam a educação como uma atividade excludente que, ao invés de atenuar, potencializa as desigualdades sociais e econômicas do país.
* Rodrigo Cesar da Silva Magalhães é professor do Departamento de História do Colégio Pedro II e Doutor em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz)
Referências
[1] OPAS BRASIL. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
[2] BANCO MUNDIAL. Políticas Educacionais na Pandemia a Covid-19: o que o Brasil pode aprender com o resto do mundo? http://pubdocs.worldbank.org/en/413781585870205922/pdf/POLITICAS-EDUCACIONAIS-NA-PANDEMIA-DA-COVID-19-O-QUE-O-BRASIL-PODE-APRENDER-COM-O-RESTO-DO-MUNDO.pdf
[3] UNICEF. Covid-19: Mais de 95% das crianças estão fora da escola na América Latina e no Caribe, estima o UNICEF https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/covid-19-mais-de-95-por-cento-das-criancas-fora-da-escola-na-america-latina-e-caribe
[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Artigo 205, Caput, e Artigo 206, Inciso I.
[5] BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO / GABINETE DO MINISTRO. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020 (Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – COVID-19). Diário Oficial da União, 18 de março de 2020, Edição 53, Seção: 1, página: 39. http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. “MEC autoriza ensino a distância em cursos presenciais”. http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=86441
[6] ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED). “Educação à distância na Educação Infantil, não!” http://www.anped.org.br/sites/default/files/images/manifesto_anped_ead_educacao_infantil_abril_2020.pdf
BRASIL. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Brasília, 1996.
[7]TRATA BRASIL. “Saneamento: principais estatísticas no Brasil – Água”, 2018. http://www.tratabrasil.org.br/saneamento/principais-estatisticas/no-brasil/agua
[8] TRATA BRASIL. “Saneamento: principais estatísticas no Brasil – Esgoto”, 2018. http://www.tratabrasil.org.br/saneamento/principais-estatisticas/no-brasil/esgoto
[9] COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.BR). TIC Domicílios: Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros, 2018. https://www.cetic.br/media/docs/publicacoes/2/12225320191028-tic_dom_2018_livro_eletronico.pdf
[10] BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. (Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil). Brasília, 2014. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
Como citar este post:
MAGALHÃES, Rodrigo Cesar da Silva. Pandemia de Covid-19, ensino remoto e a potencialização das desigualdades educacionais. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado em 26 de maio de 2020. Acesso em 27 de maio de 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/pandemia-ciencia-e-sociedade-a-covid-19-no-parana/
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