Abril/2020
As ações de Oswaldo Cruz à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), órgão responsável pelas ações de combate e controle à epidemias e a saúde dos portos no antigo Distrito Federal, são lembradas pela Revolta da Vacina, evento que transformou a então Capital Federal em uma verdadeira praça de guerra: a população carioca se rebelava contra a vacinação obrigatória contra a varíola imposta pelo médico. Estaríamos revivendo este momento, em que, por conta da descrença na letalidade do Covid-19, uma parcela da população se recusa a cumprir o isolamento social e evitar o contágio? E por conta dessa descrença, age até com violência para exigir “direitos” de mobilidade social que põe em risco toda a sociedade?
O fato é que Oswaldo Cruz combatia três epidemias diferentes ao mesmo tempo – peste bubônica, febre amarela e varíola – e, em todas, tinha poder de polícia. A autorização para Oswaldo Cruz agir com plenos poderes foi dada pelo presidente da República Rodrigues Alves. A Polícia Sanitária era formada por inspetores sanitários, de isolamento e de desinfecção, delegados de saúde, demografistas, chefes de laboratório e diretores de distrito e dos hospitais, além de médicos, farmacêuticos e diversos funcionários administrativos.
A Polícia Sanitária punha em prática as medidas profiláticas contra a varíola e a febre amarela – principais epidemias que assolavam o Brasil em geral e o Rio de Janeiro, em particular, e que geravam a sensação de grandes prejuízos econômicos. Combatê-las, porém, era necessário para garantir a segurança sanitária do país, à semelhança dos dias de hoje. As ações significaram a divisão da cidade em dez distritos sanitários; eram nesses distritos que os inspetores sanitários atuavam vacinando em massa a população e as brigadas mata-mosquito percorriam as ruas buscando destruir os focos de suas larvas, as águas estagnadas, e entravam nas residências para verificar as condições higiênicas. Naquelas casas onde a presença do mosquito transmissor havia sido detectada, aplicavam enxofre e piretro.
Oswaldo Cruz, entretanto, não criou estas medidas de sua cabeça. Ele se apropriou das ações postas em prática na França. Na biblioteca particular de Oswaldo Cruz encontra-se o livro Vacccination et revaccinations obligatoires: en application de la loi sur la protection de la Santé Publique, de G. Borne, lançado pela C. Naud Éditeur, Paris, 1902, evidenciando o conhecimento da lei francesa de 1902 pelo cientista.
Essa lei, que ficou conhecida como a primeira Lei Federal Francesa de Proteção à Saúde Pública, estabelecia regras uniformes de higiene para toda a França e autorizava os funcionários públicos a inspecionar as habitações privadas para verificar sua salubridade. Na prática, estendia a noção de obrigação aos prefeitos, aos médicos e aos poderes públicos e obrigava os prefeitos a agirem concretamente na luta contra as doenças transmissíveis. Não obrigava apenas a vacinação antivariólica, mas a revacinação aos 11 e aos 21 anos de cada cidadão.
No Brasil, os poderes de Oswaldo Cruz ficaram restritos ao Distrito Federal, mas foram suficientes para debelar as epidemias de forma eficiente e duradoura, como reforça, inclusive, a memória histórica da população sobre a ação do médico. Atuou até sua morte, em 1917, como servidor do Instituto Soroterápico Federal, criado em 25 de maio de 1900, em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, e que sob sua liderança se tornaria, em 1908, o Instituto Oswaldo Cruz. Esse mesmo instituto se transformaria, nos anos de 1970, na Fundação Oswaldo Cruz, a mesma instituição que lidera, hoje, as maiores ações de combate ao novo coronavírus no Brasil e uma das mais importantes na América Latina, como mesmo reconhece a OMS.
Ao assumir a direção do então Instituto Soroterápico, em dezembro de 1902, Oswaldo Cruz teria a missão de empreender a fabricação de soros e vacinas e atacar as epidemias de peste, febre amarela e varíola. Com sua nomeação, em 23 de março de 1903, para Diretor Geral de Saúde Pública – função equivalente à época ao de ministro da saúde de hoje -, cargo em que ficou até fins de 1909, Oswaldo Cruz conseguiria as verbas necessárias para erguer melhores instalações para seus laboratórios em Manguinhos, para desenvolver as pesquisas e preparar as ações estratégicas de combate às epidemias, construindo um complexo científico de grande porte e com tecnologia das mais avançadas à época.
Para a construção dos edifícios então propostos para Manguinhos, durante a gestão de Oswaldo Cruz, o arquiteto português Luiz Moraes Jr., buscou evidenciar a condição de edifícios próprios para pesquisas em saúde, dotando-os das melhores instalações e infraestruturas laboratoriais e científicas existentes. A concepção arquitetônica do edifício principal e sua simbologia no imaginário social como sede da Fundação Oswaldo Cruz são muito discutidas pela população e especialistas de diversas áreas do saber. O imponente castelo que se ergue com destaque na paisagem carioca, em meio à mata circundante e por cima do que é hoje a Avenida Brasil, teria tido influências as mais diversas, de um observatório astronômico em Paris, a uma sinagoga em Berlim e um palácio em Granada, Espanha.
No entanto, a principal característica a se destacar no momento é sua vocação para atender os princípios exigidos à época para uma instituição de saúde: pesquisa científica de ponta para garantir higiene e salubridade. Tais princípios foram traduzidos nas edificações de Manguinhos: ventilação cruzada, pés direitos altos, materiais fáceis de se lavar – como azulejos e pisos hidráulicos, instalações com água corrente, esgoto, eletricidade, entre outros. Elementos que, naquela época, e mais ainda hoje em dia, no combate ao Covid-19, se mostram tão necessários, mas ainda inexistentes em muitas casas e cidades brasileiras.
Diante desses graves desafios atuais e da experiência histórica de Oswaldo Cruz, precisamos refletir e perceber que políticas prioritárias a sociedade brasileira deixou de implementar, pois estão em risco as camadas mais pobres e vulneráveis de nossa população. O legado positivo dessa epidemia, se é que se pode pensar assim, seria mudar a forma como os governos federal, estadual e municipal têm agido para atender às classes mais necessitadas, passando a encarar tais problemas como de todos, dotando-as de elementos básicos de saneamento, como água e esgoto encanados, de habitação, como moradias salubres e ruas urbanizadas, e atendimento assistencial para todos, fortalecendo o Sistema Único de Saúde, o SUS, tão reverenciado nas recentes ações de tratamento aos infectados pela nova epidemia.
* Gisele Sanglard é pesquisadora do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS)
Renato da Gama-Rosa Costa é pesquisador do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das CIências e da Saúde (PPGPAT)
Para saber mais:
COSTA, Renato da Gama-Rosa E SANGLARD, Gisele. “Oswaldo Cruz e a lei de saúde pública na França”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Jun 2006, vol.13, no.2, p.493-507.
COSTA, Renato da Gama-Rosa. 100 anos do Castelo da Fiocruz: criador e criatura. Brasiliana Fotografia. 15 de maio de 2018. In http://brasilianafotografica.bn.br/?p=11758. Acessado em 09-04-2018.
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Leia no Especial Covid-19: o olhar dos historiadores da Fiocruz, da COC:
Casa de Oswaldo Cruz lança especial ‘Covid-19 – o olhar dos historiadores das Fiocruz’
De acordo com Dominichi Miranda de Sá, chefe do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde, a série trará reflexões sobre temáticas que dialogam e tornam mais transparentes dilemas e processos relacionados à pandemia em curso.
Ciência, saúde e doenças emergentes: uma história sem fim
A Casa de Oswaldo Cruz lançou um especial com o olhar dos historiadores da Fiocruz sobre a Covid-19. A estreia foi com artigo de Luiz Teixeira e Luiz Alves.
O laboratório e a urgência de mover o mundo
O que a história e as ciências sociais têm a nos dizer sobre os atores, as práticas e os lugares que produzem a ciência? Simone Kropf responde, em artigo para o especial da Casa de Oswaldo Cruz sobre a Covid-19.
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Leituras sobre epidemias em acesso aberto no Hispanic American Historical Review
O editor científico de HCS-Manguinhos, Marcos Cueto, recomenda uma série de artigos publicados no periódico internacional
‘Entre a solidariedade e o egoísmo, patrões escolhem defender seus próprios interesses’
Pesquisador da história social do trabalho, o historiador Antonio Luigi Negro – o Gino -, professor da Universidade Federal da Bahia, deu entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos e ao programa Labuta, do Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho da UFRJ
Cueto: ‘Este é um momento chave para se definir como ficarão as relações entre a ciência e a política’
Editor da revista História, Ciências, Saúde Manguinhos e professor da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Marcos Cueto foi o entrevistado da primeira edição do programa Onda Histórica, da FlacsoRadio, cujo tema foi a pandemia de Covid-19 no contexto do capitalismo, do neoliberalismo e da globalização.
O Covid-19 e as epidemias da Globalização
“As epidemias regressam para nos recordar da nossa vulnerabilidade ante a enfermidade e o poder”, afirma Marcos Cueto, editor-científico de HCS-Manguinhos, autor de trabalhos sobre epidemias e coautor de livro sobre a OMS
Fake news circularam na imprensa na epidemia de 1918
Notícias falsas foram divulgadas até por autoridades, que disseminaram ‘receitas peculiares’ contra a gripe espanhola.
Pandemia reanima debates sobre a importância do SUS
Uma das questões problemáticas é a falta de coordenação e sintonia entre o sistema de formação de recursos humanos no país e as necessidades epidemiológicas e de atenção à população
Leia sobre outras epidemias no Blog de HCS-Manguinhos:
Há cem anos, gripe espanhola matou mais de 50 milhões
Doença dizimou cerca de 5% da população mundial em 1918. Leia reportagem na Folha de São Paulo e artigos em HCS-Manguinhos
Epidemias e colapso demográfico no México e Peru do século XVI
Ricardo Waizbort e Filipe Porto fazem leitura crítica da literatura histórica e discutem a importância de doenças como varíola e sarampo
Pesquisadores investigam de epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX
Fábio Kühn e Jaqueline Hasan Brizola buscaram conhecer o universo da morbidade e estabelecer o impacto social da doença na cidade entre 1846 e 1874
Epidemia de zika remete à rubéola e à discussão sobre aborto como ato médico
Ilana Löwy, pesquisadora do Instituto Nacional de Saúde e de Pesquisa Médica de Paris, conta como os surtos de rubéola estimularam a descriminalização do aborto na Europa
USP lança As enfermidades e suas metáforas: epidemias, vacinação e produção de conhecimento
Livro reúne artigos de autores renomados na área de história da saúde
Medo e desinformação marcaram epidemia de cólera em Veracruz, no México
Beau Gaitors e Chris Willoughby, da Universidade Tulane (EUA), participaram do workshop sobre doenças tropicais na Fiocruz
Grandes epidemias são tema de exposição em São Paulo
Mostra no Museu de Saúde Pública Emílio Ribas aborda adoecimento, prevenção, tratamento e cura e discute pesquisa, políticas públicas, campanhas e impactos sociais das doenças
Conservadorismo é um desafio na luta contra a Aids
“Como prevenir uma infecção sexualmente transmissível sem falar de sexo e sexualidade?”, questiona Eliza Vianna, pesquisadora da história da Aids. Ela deu entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos por ocasião do Dia Mundial de Luta Contra a Aids e do lançamento da nova campanha do Ministério da Saúde.
Artigo aborda chegada de mosquito vetor da malária ao Brasil em 1930
Gabriel Lopes, pós-doutorando do PPGHCS/COC, analisa as primeiras reações de cientistas e autoridades de saúde pública contra as epidemias de malária causadas pelo Anopheles gambiae
La fiebre amarilla y la medicina china en Perú. Artículo de Patricia Palma explora el crecimiento de diversos saberes médicos durante y tras la epidemia de fiebre amarilla en Lima, Perú.
La cólera, la desinformación y el comercio en Veracruz. Beau Gaitors y Chris Willoughby exploran el problema comercial y sanitario enfrentado por el puerto mexicano en el siglo 19.
Leia artigos sobre epidemias na revista HCS-Manguinhos:
Entre vacinas, doenças e resistências: os impactos de uma epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX, artigo de Fábio Kühn e Jaqueline Hasan Brizola (vol.26, no.2, abr 2019)
Zika e Aedes aegypti: antigos e novos desafios, artigo de Flávia Thedim Costa Bueno et al (v. 24, no.4, out 2017)
Cidade-laboratório: Campinas e a febre amarela na aurora republicana, artigo de Valter Martins (vol.22, n.2, jan./abr. 2015)
As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918. Artigo de Maria Antónia Pires de Almeida, Jun 2014, vol.21, no.2
“Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899 Artigo de Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva, Nov 2013, vol.20, suppl.1
Bactéria ou parasita? a controvérsia sobre a etiologia da doença do sono e a participação portuguesa, 1898-1904. Artigo de Isabel Amaral. Dez 2012, vol.19, no.4
‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750), artigo de Rafael Chambouleyron, Benedito Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa (vol.18, no.4, dez 2011)
A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa, artigo de Maria Antónia Pires de Almeida (v. 18, no.4, dez 2011)
A gripe de longe e de perto: comparações entre as pandemias de 1918 e 2009, artigo de Adriana Alvarez et al. (vol.16, no.4, dez 2009)
Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Kaori Kodama (vol.16, no.2, Jun 2009)
A epidemia de gripe espanhola: um desafio à medicina baiana, artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.15, no.4, dez 2008)
O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’. Artigo de Ricardo Augusto dos Santos (v.13, n.1, jan./mar. 2006)
A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.12, no.1, abril 2005)
Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro, artigo de Adriana da Costa Goulart (v. 12, no.1, abr 2005)
A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50) – Cláudia Rodrigues (vol.6, no.1, Jun 1999)
E ainda, na revista HCS-Manguinhos, artigos em inglês e espanhol:
La “cultura de la sobrevivencia” y la salud pública internacional en América Latina: la Guerra Fría y la erradicación de enfermedades a mediados del siglo XX, artigo de Marcos Cueto (vol.22, no.1, mar 2015)
Curing by doing: la poliomielitis y el surgimiento de la terapia ocupacional en Argentina, 1956-1959., artigo de Daniela Edelvis Testa (vol.20, no.4, dez 2013)
Las epidemias de cólera en Córdoba a través del periodismo: la oferta de productos preservativos y curativos durante la epidemia de 1867-1868., artigo de Adrián Carbonetti e María Laura Rodríguez (vol.14, no.2, jun 2007)
El rastro del SIDA en el Perú, artigo de Marcos Cueto (vol.9, 2002)
Caponi, Sandra. Lo público y lo privado en tiempos de peste. Jun 1999, vol.6, no.1