Quando estávamos finalizando os detalhes desta edição da revista para enviar para impressão, imagens atrozes abalaram o Brasil e boa parte do mundo: em questão de poucas horas, um incêndio aterrorizante consumiu a melhor parte do bicentenário do Museu Nacional. Um colega de outro país latino-americano escreveu dizendo que parecia o fogo da Biblioteca de Alexandria.
Foi realmente um desastre nessa escala, especialmente para os historiadores da ciência, mas também para antropólogos, linguistas, cientistas sociais, historiadores e outros pesquisadores que trabalharam com suas coleções exclusivas. Foi também uma tragédia inimaginável para professores, técnicos e estudantes cuja vida profissional estava associada ao inestimável Museu. Foi de fato um evento desastroso que marcará a história cultural do Brasil e de toda a América Latina e que será registrado como uma desgraça inesquecível para a cultura mundial.
Nos dias que se seguiram, surgiu uma mistura de tristeza, rebelião, rejeição e justificáveis vozes de protesto em relação à persistente negligência das autoridades federais que permitiram que essa tragédia anunciada ocorresse. Também houve mobilizações – apoiadas decisivamente pela Fiocruz – contra o desmantelamento das organizações culturais e educacionais, bem como uma percepção pública incipiente que reconhece o abandono e o desdém pela história de seu país como um dos principais indicadores de atraso.
Por parte de História, Ciências, Saúde – Manguinhos, apoiaremos a transformação dessa percepção em nossa convicção sobre a necessidade urgente de alocar recursos financeiros significativos para a ciência e a cultura. Nossa lealdade às cinzas dos preciosos documentos, objetos, animais, múmias e paredes do Museu não é sentar e assistir à emergência em que quase todos os museus, arquivos e universidades públicas do Brasil se encontram. Precisamos de um consenso nos países em desenvolvimento, como o Brasil e boa parte da América Latina, de que não haverá desenvolvimento sem investimentos abrangentes e suficientes em sua própria ciência e cultura (Ramacciotti, 2017, Silva, Cueto, 2016).
Seja qual for o caso, para muitos de nós será difícil aceitar tudo o que foi perdido no incêndio. Pode bem ser que nem o tempo nos console ou aplaque nossa raiva. Apesar da dor, temos a obrigação de pensar em soluções de curto e longo prazo. Pensando no futuro imediato, nos comprometemos com o apoio desta revista aos esforços de pesquisadores do Brasil e do mundo inteiro para coletar documentos e imagens que pertenciam ao arquivo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Muitos deles mantêm documentos ou registros escaneados, fotocopiados ou manuscritos, bem como dissertações e publicações que usaram esses materiais como uma mina de informações. Essa iniciativa será coordenada na Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz em conjunto com o Museu Nacional. Os interessados em participar podem entrar em contato com museunacionalresgate@gmail.com.
Outro trágico evento que ocorreu antes desta revista foi para a imprensa, e isso nos faz pensar novamente sobre a morte como um desastre, mas também como uma obrigação de reconstruir nossas vidas profissionais após um infortúnio, foi a morte de Jean Gayon, um dos mais historiadores e filósofos da ciência notáveis. Por esse motivo, a carta do editor convidado é dedicada a Gayon, professor da Universidade de Paris 1 e autor de inúmeros livros e artigos notáveis sobre a história da biologia. O autor da carta é Gustavo Caponi, que conhecia bem o mestre francês. Ressalte-se que, em 2017, o professor Gayon esteve no Rio de Janeiro para o 25º Congresso Internacional de História da Ciência e Tecnologia, organizado pela Sociedade Brasileira de História da Ciência e pela História da Divisão de Ciência e Tecnologia, uma organização acadêmica internacional da qual Gayon era membro. Ocupou vários cargos de gestão na referida organização, a partir dos quais fez importantes contribuições para o desenvolvimento profissional e acadêmico da história da ciência.
É difícil saber como, tão logo após esta desgraça, temos a esperança e também a certeza de que a investigação da história da ciência relacionada com a informação do que o Museu foi e continha irá ressurgir. Da mesma forma, evocar e reconstruir algo que admiramos e desfrutamos, mas que perdemos, permitirá que todos sejamos pessoas e profissionais melhores.
Acesse a Carta dos Editores em espanhol ou inglês e navegue pela edição (v. 25, n. 3 jul/set 2018)
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Leia em HCS-Manguinhos:
Sá, Dominichi Miranda de, Sá, Magali Romero and Lima, Nísia Trindade Telégrafos e inventário do território no Brasil: as atividades científicas da Comissão Rondon (1907-1915). Set 2008, vol.15, no.3
Azevedo, Nara, Cortes, Bianca Antunes and Sá, Magali Romero Um caminho para a ciência: a trajetória da botânica Leda Dau. 2008, vol.15
Benchimol, Jaime L. et al. Bertha Lutz e a construção da memória de Adolpho Lutz. Abr 2003, vol.10, no.1.
Sá, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. 2001, vol.8
Maio, Marcos Chor and Sá, Magali Romero Ciência na periferia: a Unesco, a proposta de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica e as origens do Inpa. Set 2000, vol.6
Como citar este post:
CUETO, Marcos; SILVA, André Felipe Cândido da. O incêndio, a morte e a esperança. Blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 2018. Publicado em 19 de outubro de 2018. Acesso em 19 de outubro de 2018. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/o-incendio-a-morte-e-a-esperanca/