‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’

Abril/2014

Por sugestão do professor Luiz Antonio de Castro-Santos, o blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos abre um espaço de discussão, críticas e comentários sobre as normas que regulam as pesquisas no Brasil hoje. Ele escreveu um texto para incitar o debate no blog e uma carta aos editores da revista. Estamos publicando contribuições ao debate.

‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’

Maurício Reinert *

Maurício Reinert

Maurício Reinert

A iniciativa do professor Luiz Antonio de Castro Santos de propor um debate amplo sobre os atuais comitês de ética é fundamental e o seu texto aborda alguns pontos fulcrais desse debate: o Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde (MS), como definidor das diretrizes e normas sobre a ética na pesquisa em seres humanos em todas as áreas de conhecimento; e a transparência e o debate público entre os pares e entre a comunidade como os legítimos sustentáculos da ética na pesquisa. Quero destacar outros três pontos que têm relação com esses dois, seja como causa ou consequência deles.

O primeiro se refere à autonomia das universidades e da comunidade de pesquisadores nas decisões sobre as questões de éticas nas pesquisas envolvendo seres humanos quando fica outorgado ao MS, por intermédio do CNS, estabelecer todas as diretrizes e normas e fazer cumpri-las, inclusive podendo cancelar o registro de um Comitê de Ética na Pesquisa de uma universidade. Sem autonomia, universidades e pesquisadores transferem a responsabilidade dessa discussão para o Conep, pois não há o que discutir, já que a nossa única responsabilidade é seguir as diretrizes e fazer cumprir a norma.

O segundo é a definição ampla e quase irrestrita do que é pesquisa envolvendo seres humanos, a qual coloca no mesmo balaio pesquisas tão diferentes quanto o teste de uma nova vacina e uma enquete sobre hábitos de estudo de alunos de uma universidade. Onde ficam as idiossincrasias das diferentes áreas do conhecimento e o respeito a diferentes métodos empregados nessas áreas? A comunidade científica de cada área de conhecimento é que pode julgar e avaliar questões específicas tais como, se existem e quais os riscos envolvidos em uma pesquisa. Mas não, o Conep já determinou que “toda pesquisa com seres humanos envolve riscos em tipo e gradações variados”, portanto não cabe mais a comunidade discutir se eles efetivamente existem. Como escutei quando tentava aprovar uma pesquisa no CEP da minha universidade, “a resolução do Conep diz que toda pesquisa tem risco, portanto se aprovarmos um protocolo sem informar os riscos podemos ter nosso registro cancelado”.

Universidades, pesquisadores e a comunidade deveriam ser responsáveis pelas decisões que tomam, e não serem subjugados por um órgão predominantemente formado por profissionais da saúde, legislando sobre todas as áreas do conhecimento. Conhecimento da sua área de pesquisa e sentir-se responsável são os primeiros passos para ser ativo no processo de discussão sobre ética na pesquisa, quando a responsabilidade lhe é tomada basta seguir.

Por fim, o Brasil precisa de mais e não menos pesquisa. O incentivo à pesquisa não virá ao se dificultar o processo com o intuito de resolver por decreto um problema que não é recente, e evolui com a própria ciência. Como professor de metodologia para alunos do primeiro ano, questiono-me sobre como realizar um exercício prático de pesquisa com eles, fazendo-os realizar uma enquete sobre os hábitos de estudo de seus colegas, se tal pesquisa se enquadra na definição já apresentada pelo Conep. Um exercício de três aulas transforma-se em uma via crucis de meses nos meandros da Plataforma Brasil, e numa carga de trabalho excedente para o nosso CEP.

Nós, pesquisadores das Ciências Sociais e Sociais Aplicadas, já temos dificuldades na coleta de dados secundários em um país que não valoriza a memória. Agora temos mais um fardo na coleta de dados primários, quando um consentimento gravado no início de uma entrevista pode não ser aceito, pois ele deve “ser elaborado em duas vias, rubricadas em todas as suas páginas e assinadas, ao seu término, pelo convidado a participar da pesquisa”. Isso não significa que a ética na pesquisa não precisa ser observada, mas sim que, como sabemos muito bem pela nossa experiência diária como brasileiros com a corrupção, são a transparência e a participação que trazem melhores resultados para a solução desses problemas.

As discussões sobre ética na pesquisa envolvendo seres humanos precisam adentrar as comunidades acadêmicas e fazer parte do dia-a-dia da formação dos pesquisadores. Bancas de qualificação, salas de aula e grupos de estudo devem se transformar em espaços de discussão sobre o tema. Somente com ele se enraizando na formação do pesquisador é que a ética na pesquisa envolvendo seres humanos deixará de ser uma ação burocrática de preenchimento de formulários para tornar-se uma prática da vida acadêmica.

Maurício Reinert é professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Estadual de Maringá/PR

Contribuições para o debate:

Vamos discutir os comitês de ética na pesquisa?
Por sugestão do professor Luiz Antonio de Castro-Santos, o blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos abre um espaço de discussão, críticas e comentários sobre as normas que regulam as pesquisas no Brasil hoje em dia.

Uma crítica aos atuais comitês de ética na pesquisa no Brasil
Carta de Luiz Antonio de Castro-Santos aos editores de História, Ciências, Saúde – Manguinhos

Luiz Fernando Dias Duarte: cientistas sociais estão presos em camisa de força burocrática
Para antropólogo, submissão das pesquisas em ciências sociais e humanas à lógica biomédica é descabida e autoritária.

Maurício Reinert: ‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’
Para professor de Administração da Universidade Estadual de Maringá, submissão de pesquisas em ciências sociais ao Conep fere autonomia universitária

Flavio Edler: comitês de ética inibem liberdade de pesquisa
Historiador compara sanha reguladora à Real Mesa Censória dos tempos coloniais.

Luciano Mendes de Faria Filho: anonimato para quê?
Para o professor de Educação da UFMG, o anonimato nas pesquisas em ciências humanas mais garante o apagamento da autoria, do pensamento e da expressão dos setores populares do que a fidedignidade dos dados.

Como citar este post [ISO 690/2010]:
‘O Brasil precisa de mais, e não menos, pesquisa’. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 10 April 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/o-brasil-precisa-de-mais-e-nao-menos-pesquisa/