“Mulheres prendadas, famílias sanas”

Janeiro/2023

Na primeira metade do século XX, o sul de Santa Catarina enfrentou uma série de problemas médico-sanitários que mobilizou a população local em torno de ações assistenciais. Parte desta ação ficou registrada no Álbum-Relatório das Pequenas Irmãs da Divina Providência, que capturou, por meio de fotografias, o cotidiano da classe trabalhadora em meados do século passado. 

Enfermagem a domicílio. Página do álbum das atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência, 1955-1957

Pesquisadores do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), em Criciúma, digitalizaram e divulgaram partes do álbum em artigo publicado na seção fontes da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 29, n. 4, out/dez 2022). Os autores Ismael Gonçalves Alves e Giani Rabelo, professores da Unesc, explicam tratar-se de um minucioso e bem elaborado material, sendo uma fonte histórica que registra particularidades da assistência social e à saúde desenvolvida por mulheres no interior do Brasil. A partir de uma perspectiva de gênero, o artigo analisa registros da assistência médico-social na Região Carbonífera Catarinense de 1955 a 1957 e discute o processo de interiorização das políticas assistenciais no Brasil.

Localizada no sul de Santa Catarina, a Região Carbonífera Catarinense despontou no cenário econômico nacional através da expansão de suas atividades mineradoras a partir da década de 1930, num momento em que o incipiente complexo industrial brasileiro também passava por um processo de reestruturação promovido pelo governo de Getúlio Vargas, que buscava tornar a indústria nacional mais competitiva e dinâmica e menos dependente das importações.

Até a década de 1960, grandes transformações ocorreram na região. As atividades mineradoras provocaram um profundo processo de ruptura com as formas tradicionais de vida, expondo as populações locais a uma nova dinâmica sociocultural ligada às atividades mineradores capitalistas. A cidade de Criciúma foi a que sofreu maior impacto das atividades industriais, sendo metamorfoseada de um pequeno núcleo agrícola a uma cidade industrial dedicada às atividades extratoras de carvão mineral.

Sem as condições mínimas requeridas de uma cidade industrial, como serviços públicos de saúde, já na década de 1940 Criciúma havia entrado em uma espécie de colapso socioambiental de difícil solução. De maneira geral, as famílias operárias mineiras foram obrigadas a arcar os resultados do crescimento do setor industrial carvoeiro: doenças, más condições de vida, trabalho precário, mortes e acidentes de trabalho.

Diante deste cenário, as mulheres atuaram de maneira significativa na assistência aos trabalhadores do carvão, priorizando especialmente aquelas atividades relacionadas à maternidade e à infância. Os pesquisadores contam que, dentre as diversas associações de mulheres que agiram na região, congregações religiosas femininas desenvolveram um intenso trabalho junto às Vilas Operárias. Destaca-se a Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência, fundada em 1889, na Itália. Sua chegada em Criciúma foi em 1954, por convite do Serviço Social da Industria (Sesi).

O bom desempenho da Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência em suas atividades logo chamou a atenção da maior mineradora local, a Carbonífera Próspera S.A, que em 1955 contratou as irmãs para realizarem serviços assistenciais aos trabalhadores da Companhia até 1964, quando se encerrou o contrato. 

Página do álbum das Pequenas Irmãs que retrata o Serviço Prático de Costura, realizado em abril de 1957

Dedicando-se especialmente às mulheres mães e às crianças, as religiosas buscaram colaborar com a diminuição da mortalidade infantil, e para isso priorizaram “a adequação das mulheres e meninas ao espaço doméstico por meio de cursos populares de economia doméstica, arte culinária, prendas domésticas, entre outros, que tendiam a instrumentalizar as mulheres a transformar sua casa em um espaço saudável e propício ao desenvolvimento de uma família sana e ordeira”.

A pesquisa pensa o processo de interiorização das políticas de assistência no Brasil a partir da perspectiva gênero e discute os impactos de tais políticas na criação de modelos idealizados de maternidade e infância junto às camadas populares urbanas da região.

Leia na revista HCS-Manguinhos:

Álbum/Relatório das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência: registros da assistência médico-social na Região Carbonífera Catarinense, 1955-1957, artigo de Ismael Gonçalves Alves e Giani Rabelo (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 29, n. 4, out/dez 2022)

Leia no Blog de HCS-Manguinhos:

HCS-Manguinhos celebra 21 anos da Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fiocruz
Volume 29, n. 4 (out/dez 2022) tem Carta da Editora Convidada da socióloga Nísia Trindade Lima, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, então presidente da Fiocruz e hoje ministra da Saúde.