Outubro/2019
Blog de HCS-Manguinhos
A adoção de novos critérios para avaliação de revistas científicas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) vem preocupando editores de periódicos de História da Ciência, que podem passar a ser classificados em outras áreas que não a História.
Para discutir a questão, o Blog de HCS-Manguinhos convidou o historiador da ciência Mauro Condé, editor-chefe do periódico Transversal: International Journal for the Historiography of Science. Ele alerta para os problemas que o Qualis Único poderá acarretar a periódicos de história da ciência no que diz respeito à sua área de classificação. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais e professor titular de História da Ciência, ele esclarece: “É a partir da identidade da área de História que fazemos história da ciência, sendo esta, assim, uma subárea da História.”
A Divisão de Avaliação da Capes está propondo novos critérios para avaliação de programas e revistas científicas, como a adoção de um Qualis único, no qual cada revista seria classificada de acordo com sua área mãe. Poderia comentar esses critérios?
No seminário de meio termo com os coordenadores de Programas de Pós-Graduação da área de História, realizado em setembro passado na Capes em Brasília, chegou a ser dito pela Diretoria de Avaliação que uma das propostas era de acabar com o Qualis periódico. Então, antes mesmo de falar minha opinião sobre a proposta em curso de um Qualis único, gostaria de manifestar meu entusiasmo com a ideia de se acabar com o Qualis periódico. Certamente, a avaliação dos periódicos deve ser feita de algum modo, mas o Qualis periódico trouxe uma série de distorções em todo o sistema. Ele é feito para avaliar o periódico e, indiretamente, o Programa que mantem este periódico, mas acaba influenciando todo o processo acadêmico de uma maneira um pouco distorcida. Instituições passam a avaliar o Lattes de um professor (para concurso ou progressão na carreira) pelo número de artigos que ele publica em periódicos A1 ou A2. Consequentemente, esses pesquisadores querem apenas publicar nestes periódicos (o que é algo natural) e, assim, os demais periódicos nos outros extratos passam a ter dificuldades de atrair bons autores. Enfim, o selo da Capes cria um tipo de “efeito Mateus”[1] ou de vantagem acumulada, onde os periódicos melhor avaliados assim o continuarão e manterão os demais periódicos com muito mais dificuldades de serem periódicos do estrato A1, visto que o número de bons autores é limitado. Da mesma forma, as agências de fomento (sendo a própria Capes, CNPq ou as FAPs) praticam o efeito Mateus concedendo subsídios aos periódicos de acordo com a nota do Qualis periódico. Mais recursos para as maiores notas.
Avalio que esse efeito Mateus é mais devastador para os programas, periódicos e professores fora da área de excelência definida pela Capes, isto é, os programas de nota 3 a 5, e os periódicos fora da avaliação A. De modo geral, também fica mais difícil para esses pesquisadores da área de História publicarem em periódicos mais bem avaliados, pelas próprias condições de pesquisas destes programas ou de dificuldades de inserção internacional destes pesquisadores. Em um programa de nota 6 ou 7, cuja internacionalização é bem forte, os pesquisadores não apenas publicam em periódicos nacionais com Qualis A1 e periódicos internacionais (embora estes nem sempre estejam bem no Qualis), mas também publicam livros em editoras nacionais e internacionais de grande relevância acadêmica. Estas publicações altamente qualificadas terminam por ajudar fortemente a manutenção da nota destes programas sem necessariamente se fundamentar no Qualis periódico nacional, já que o livro é uma forte tradição da área de História, além de publicações internacionais terem um grande peso na avaliação. Então, novamente, aqueles que têm mais dificuldades de publicar em periódicos de Qualis A, são os que mais precisam de aí publicar.
Desta forma, a boa ideia de avaliar os periódicos, do modo como tem sido feito, tem acarretado distorções como estas. Certamente, a Capes deve sim exigir altos parâmetros e boas práticas editoriais dos periódicos – como de fato já tem feito –, mas, ao conferir um “selo de certificação” como o Qualis, ela acaba criando essa corrida distorcida que acarreta, ao fim, esse tipo de efeito Mateus. Se uma revista tem qualidade atestada pela comunidade científica que nela publica, possui bons parâmetros e boas práticas editoriais, além de fazer parte de indexadores, repositórios e diretórios nacionais e internacionais isto, por si só, já é um forte atrativo para seus autores e, assim, temos aí critérios suficientes para considerar este periódico como um periódico bom ou mesmo de excelência, dependendo do grau desses parâmetros mencionados. Mas quando uma agência importante como a Capes diz algo sobre um periódico, isto muda tudo. Cria-se toda uma expectativa ou uma orientação do mercado editorial com esta certificação. Sem contar que entre as avaliações os periódicos, procurando atender a própria Capes, podem melhorar muito, mas isto será refletido anos depois na nova avaliação. Então, talvez a função da Capes fosse apontar para tais critérios, mas não necessariamente criar esse selo certificador chamado Qualis periódico que acaba gerando essas distorções do efeito Mateus.
Quanto ao Qualis único, que é a proposta que está sendo elaborada, espero que possa ser o caminho para o fim do Qualis periódico. Para a maioria das áreas, não vejo problema de ser um Qualis único, mas isto poderá trazer alguma dificuldade para as áreas transdisciplinares, isto é, segundo a proposta em curso, o que designa a área mãe é o fato da maioria dos autores pertencerem a programas de pós-graduação desta mesma área. Entretanto, para alguns periódicos, notadamente os bastante multidisciplinares, como é o caso dos periódicos de história da ciência, isto acarretará sérios problemas. Os autores que publicam nesses periódicos multidisciplinares são provenientes de muitas áreas e isso poderá acarretar a classificação do periódico em uma área que não necessariamente é aquela em que o periódico tem uma identidade temática – identidade esta já estampada muitas vezes no seu próprio título.
De que forma os periódicos de história das ciências podem ser prejudicados com a adoção dos novos critérios estipulados pela Capes?
Exatamente, pelo fato dos autores que escrevem nestes periódicos de história das ciências serem de diferentes áreas, poderíamos ter mal definida nossa área mãe, isto é, poderemos ficar fora da área da História. Perderíamos, assim, nossa identidade de periódico. Ainda que, em alguma edição específica, a maioria destes autores possam ser oriundos de programas de pós-graduação em História, nem sempre, ou talvez na maioria das vezes, o historiador das ciências não está lotado em um programa de pós-graduação em História, mas, além da História, em Educação científica, Filosofia ou em diferentes programas de pós-graduação (Física, Biologia, Matemática etc). Mesmo que se tome como parâmetro de análise para a definição da área mãe uma série mais ampla das publicações deste periódico, como parece ser a proposta da Capes para corrigir este problema, isto não necessariamente solucionará, pois não se trata de uma estatística autoral, mas é uma questão identitária. O historiador da ciência se enxerga como historiador, ainda que possa estar em outro programa de pós-graduação (onde certamente traz contribuições relevantes para a história da ciência deste programa no qual está inserido).
Sendo a História das Ciências uma área interdisciplinar, poderia comentar um pouco sobre a dinâmica dessa área? Como sua produção e estudos estão organizados?
A história da ciência não é apenas história e não é apenas ciência. Sendo um conhecimento interdisciplinar, para realizá-lo é preciso ter inserção nestas duas áreas – ciências e história. Daí as diferentes proveniências dos historiadores da ciência (às vezes da História, às vezes de uma outra área científica). Na história da ciência, o objeto a ser conhecido é a ciência, mas este objeto é visto pelo olhar da História, portanto, é necessário um tratamento com o ferramental da História. É a partir do olhar teórico e metodológico da História que compreendemos transversalmente o objeto ciência nas suas múltiplas possibilidades sociais, epistemológicas, políticas etc. Portanto, é a partir da identidade da área de História que fazemos história da ciência, sendo esta, assim, uma subárea da História. Com efeito, a dinâmica da comunidade da história da ciência é muito diferente de outros saberes no sentido de que não apenas trata-se de um conhecimento multidisciplinar, mas também de uma comunidade multidisciplinar com inserções em diferentes programas de pós-graduação. Ao permanecer o Qualis único, seria muito importante que a Capes permitisse que os periódicos fossem avaliados por sua inserção identitária. Resta também salientar que a própria comunidade de historiadores em geral, como foi enfatizado pelos coordenadores de programas de pós-graduação em História no seminário de meio termo da Capes mencionado, concebe estes periódicos de história da ciência como um legítimo saber da área de História, o que mostra o amadurecimento da história da ciência entre nós. Nos resta esperar que a Capes possa ter o mesmo entendimento.
[1] Citação do Evangelho de Mateus usada em sociologia da ciência: “Para aquele que tem, tudo lhe será dado e terá em abundância; mas para aquele que não tem, até o que tem lhe será tirado”
Saiba mais:
Carta da SBHC a Sonia Báo, diretora de avaliação da Capes
Entidade solicita que seja revista a área mãe das revistas História, Ciências, Saúde – Manguinhos e Transversal.
Leia a carta aberta dos editores de periódicos da Fiocruz e assista a entrevista com Kenneth Camargo, coordenador do Fórum dos Editores de Saúde Coletiva da Abrasco.