Agosto/2013
Vilma Homero Eles são filhos de pedreiros, domésticas, motoristas, mas também de enfermeiros, professores e até policiais. A maioria interrompeu os estudos antes de concluir o ensino fundamental. São pobres, mas muitos vêm de famílias estáveis, com ambos os pais, ou um padrasto. Alguns já tiveram, ou têm, trabalhos formais, como cobradores de van, garçons, empregados de supermercado. Mas, em algum momento da adolescência, eles optaram pelo tráfico de drogas. Mais do que objeto do trabalho do sociólogo Diogo Lyra, são esses jovens – protagonistas do livro A República dos Meninos – que contam sua própria história, explicando em linguagem muito própria, como vivem a partir da escolha que fizeram. “Procurei compreender o tema não pelo recorte da violência, mas pelo da juventude. Uma juventude tão singular quanto banal. Creio que essa é uma das diferenças em relação a outros trabalhos, porque parti das interpretações dos próprios jovens sobre suas vidas”, explica Lyra sobre seu livro, publicado com apoio do programa de Auxílio à Editoração (APQ 3), da FAPERJ. Para isso, ele saiu em pesquisa de campo, entrevistando os 30 internos do Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (Criam) de Nova Iguaçu. O Criam de Nova Iguaçu também não foi escolhido por acaso. Segundo o pesquisador, instalado num dos municípios mais pobres e violentos do estado, à época da pesquisa, ele se diferenciava de outras unidades por aplicar minimamente as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ali, por exemplo, se permitia que os garotos circulassem juntos, sem ser separados pelas facções criminosas a que pertenciam. “E o que era ainda mais importante, ao contrário do que acontece na grande maioria das instituições – em especial as de regime fechado que seguem o modelo das penitenciárias e a pedagogia da violência –, eles eram ouvidos, tratados como garotos, não como criminosos. Só isso já fazia com que as coisas ali funcionassem melhor, como num pacto de respeito mútuo e de não agressão.” Para se ter uma ideia, Lyra conta que, incomodado com a comida que à noite era servida fria, um dos meninos dizia que ia pular o muro, não para fugir, mas para ir até o fórum e reclamar junto ao juiz, que no caso, era um profissional firme mas justo; alguém que sabia ouvir. Mas nos primeiros contatos com os meninos do Criam fizeram o pesquisador repensar sua estratégia. “Já de início esbarramos nas diferenças de linguagem e vi que precisava mudar minha abordagem. Tive que abandonar o roteiro inicial de perguntas prontas que levara”, conta. Foi assim que Lyra passou um mês no Criam, comendo da mesma comida, participando das mesmas atividades e passando a entender a linguagem dos garotos – que agora constitui um glossário no final do livro. “A linguagem se tornou um dos meus principais focos de pesquisa, o que me levava, a todo o momento, a inquirir os jovens sobre o significado dessa ou daquela expressão. Com isso, acabei despertando nos garotos o interesse pelo meu interesse neles”, explica. O sociólogo conversou com a direção, com funcionários, pais e, principalmente, com os próprios garotos. “Substituí as formulações abstratas pelos temas que eram mais relevantes para eles.” No lugar da linguagem da sociologia, entrou a gíria das favelas, para tratar, em linguagem nativa, de temas como a comunidade, as instituições, o trabalho e os dilemas ético-morais que remetiam aos fatos cotidianos de suas vidas. Uma das primeiras coisas que Lyra deixa bem claro é que entre os jovens de comunidade, a adesão ao tráfico é mínima. “Apenas uma pequena parcela daquela juventude se junta ao tráfico.” Pelo que conversou com os jovens, não existe uma causa específica para a adesão, mas um conjunto de fatores que remetem diretamente a um processo de busca por autonomia. “O que pude observar é que essa inserção é vista como um processo de independência, como a busca por um caminho autônomo, e parte do desejo de se tornar homem, um ingresso simbólico à vida adulta”, afirma Lyra. Mais do que simplesmente um “adulto”, trata-se aqui de tornar-se “sujeito-homem”, com todas as implicações de independência, respeitabilidade e responsabilidade pelas decisões tomadas que, nesse vocabulário, a expressão carrega. Para esses meninos, cujas idades variavam de oito a 18 anos, a comunidade onde nasceram e moram é visto como um lugar de pertencimento, de laços afetivos, embora a estrutura seja precária, faltem postos de saúde, escolas, serviços públicos e lazer. É também um lugar a ser defendido das forças externas, sejam elas traficantes rivais, a polícia ou a milícia. “Essa é também uma justificativa moral para o papel que exercem no tráfico, de defesa daquele território contra forças invasoras. Embora possa parecer absurdo para alguém de fora, é uma perspectiva quase unânime entre os garotos”, afirma o pesquisador. A questão do trabalho também funciona com uma lógica toda própria. Apesar da consciência que todos eles têm dos malefícios que o tráfico traz para a comunidade, boa parte desses jovens compreende sua atividade nos moldes do trabalho formal. Alguns deles exercem sua atividade de maneira paralela às formas tradicionais de inserção social, como o trabalho formal e o estudo. “Tem garoto que estuda de manhã, trabalha à tarde e assalta ou trafica à noite. Lembro que perguntei a um deles a diferença entre essas atividades e tive como resposta a afirmação de que a única diferença é que, no trabalho formal, o dinheiro demora mais pra chegar.” Uma das coisas mais impactantes que Lyra percebeu foi ao perguntar sobre o que esses jovens pensam sobre o futuro. “A palavra ‘futuro’ lhes parece totalmente estranha. Só conseguem imaginar o futuro a partir de um apelo ao passado, isto é, à sua modificação. Era muito comum ouvir frases como ‘eu queria que meu passado fosse apagado’. Entre os seus desejos para o futuro, a maioria citava a vontade de ter uma casa, família, trabalho”, diz. Tudo isso levou Lyra a concluir que pequenas atitudes podem trazer grandes mudanças. Em outras palavras, que um tratamento sem ser apenas calcado na hierarquia, em que haja um tratamento digno, de respeito, tem ótimos resultados. “Basta conseguir olhar para esses garotos como garotos. Durante minha estada no Criam, pude perceber que os meninos reconhecem os profissionais que os ouvem, que os tratam com firmeza e disciplina, mas com respeito.” O Criam de Nova Iguaçu, no entanto, era exceção. “A nossa realidade parece ter se tornado irracional, de pura insensibilidade. Conversando, por exemplo, com um rapaz que está perto de ser liberado da instituição, o que se percebe é que seus desejos de mudança esbarram na falta de projetos governamentais. Ouvir de um jovem que sua única aspiração é conseguir trabalho numa van com alguém que conhece é também constatar que não há políticas públicas que os apoiem.” Para Lyra, o projeto terá continuidade. Ele já está planejando a próxima etapa e um retorno ao Criam de Nova Iguaçu. “Sei que a direção da unidade não é mais a mesma e que o juiz da vara de infância e juventude de Nova Iguaçu estava para se aposentar. Será uma ótima oportunidade de comparação com a experiência anterior e de aprofundar a pesquisa sobre esse grupo”, finaliza. Fonte: Boletim da Faperj Leia mais: Virtudes, armas e meninos – Resenha de João Trajano Sento-Sé publicada na Ciência Hoje Online.
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