Maio/2014
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
‘Ringue ou academia? A emergência dos estilos modernos da capoeira e seu contexto global’ é o título do artigo que Matthias Röhrig Assunção, professor de História da Universidade de Essex, no Reino Unido, assina na última edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol 21. n.1, jan-mar/2014). O blog de HCS-Manguinhos entrevistou o professor.
No artigo você explica que a capoeira, assim como as artes marciais orientais, se modernizou entre 1850 e 1950, com a adoção de sistematizações inspiradas nos esportes. Pode-se dizer que houve uma ocidentalização destas manifestações culturais? O que levou a isto em lugares tão distantes entre si?
Eu diria que houve uma modernização de todas essas artes. Mas como a modernização, nessa época, é sobretudo impulsionada pela Ocidente, significa também uma ocidentalização. Essa época, a idade de ouro do imperialismo europeu, corresponde também a inovações tecnológicas importantes nos transportes, como o navio a vapor, e nas comunicações, como o telégrafo. Eles fazem com que o mundo fique menor, e as informações circulem mais rapidamente ao redor do globo. Agora a partir de 1905, o Japão emerge como potência na Ásia, e suas artes marciais com a sua disciplina, vistas como uma das chaves para esse sucesso, também começam a se espalhar pelo mundo. Nesse sentido houve também uma “orientalização” das artes marciais na Europa e nas Américas. O que eu procuro mostrar no artigo é justamente a importância da vinda do jiu-jitsu para o Brasil para entendermos melhor a emergência da capoeira moderna. Em outras palavras, capoeira vira um “esporte nacional” por causa de um estímulo vindo de fora. É uma resposta a um processo de globalização, e que vai acabar em outro processo de globalização, dessa vez da capoeira, 50 anos depois.
A tese de doutorado de José “Tufy” Cairus para o Programa de Pós-Graduação em História da York University (Toronto), intitulada The Gracie clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: national identity, performance and culture, 1801-1993, foi importante para eu entender melhor a história do jiu-jitsu no Brasil.
No livro “Gymnástica Nacional (Capoeiragem) Methodizada e Regrada”, de 1928, Anibal Burlamaqui propõe regras para lutas de capoeira no ringue, além de recomendar uma postura “nobre e ereta”, diferente da ginga agachada dos capoeiras cariocas de então. O objetivo seria transformar a capoeiragem num “esporte de verdade”, dissociando-a da marginalidade, dos seus contextos culturais, das origens afro-brasileiras e dos aspectos ritualísticos e artísticos. Poderia explicar esse nacionalismo que renega as origens?
O nacionalismo tenta construir uma “comunidade imaginada”, o que frequentemente envolve simplificar, re-inventar ou mesmo falsificar, por exemplo, homogeneizando a diversidade que existe no território nacional, enfatizando a unidade, quase sempre privilegiando as formas culturais da capital ou da região central, em detrimento das regiões periféricas e classes subalternas. Agora a dissociação da marginalidade é comum a todos os projetos modernizadores, incluindo os de Bimba e Pastinha.
Na Bahia, mestre Bimba desenvolveu um novo estilo de capoeira – a “luta regional baiana” -, com menos pantomima e mais golpes, além de uma metodologia de ensino para dar eficiência à capoeira enquanto luta, contribuindo para o chamado “embranquecimento” da capoeira e para a sua aceitação social em classes mais altas. Em oposição a esse movimento, mestre Pastinha revitalizava a capoeira tradicional, que passou a ser denominada “Angola” e enfatizava a cultura e a tradição afro-brasileira. No entanto, Pastinha também incorporou a “esportização” da prática, criando o “Centro Esportivo de Capoeira Angola”. E Bimba, por sua vez, manteve aspectos da cultura afro-baiana como a religião, os cantos ritualísticos, os instrumentos musicais, o culto aos heróis da capoeira e a ginga. Como a intelectualidade baiana da época encarou este cenário de dualidade da capoeira que opunha a vadiação (Angola) e a luta (Regional)?
A intelectualidade baiana – no sentido tradicional – já era um grupo bem restrito na época, e os que se manifestaram publicamente a respeito da capoeira foram bem poucos. Entre eles alguns apoiaram a Angola (Jorge Amado, Edson Carneiro,) outros a Regional (os estudantes de medicina alunos de Bimba, o governador/interventor Juracy Magalhães). Agora afirmar que Bimba “embranqueceu” a capoeira não me parece uma apreciação que tome em consideração todos os aspectos de seu legado. Em primeiro lugar, ele fez uma contribuição fundamental para que a capoeira sobrevivesse enquanto arte. Em segundo lugar, o estilo que ele desenvolveu manteve, como você disse, aspectos centrais da cultura afro-baiana na capoeira. Mas a modernização requeria mudanças para que a capoeira pudesse se espalhar para outras classes sociais e regiões do Brasil e ser praticado por mulheres.
Ainda existe rivalidade entre estilos e grupos de capoeira? Como ocorre essa coexistência?
A meu ver ainda existe, e é natural, existe também nas artes marciais orientais. A rivalidade é alimentada pela competição no mercado, por questões ideológicas e conflitos pessoais. Só que a oposição não é mais entre Angola e Regional. Hoje existe uma grande diversidade de estilos dentro daquilo que é chamado de capoeira “contemporânea”. Os grandes grupos como Senzala, Cordão de Ouro, Abadá e vários outros acabaram virando uma referência importante enquanto estilo.
A partir dos anos 1980, a capoeira se estabelece no exterior. É possível avaliar qual estilo faz mais sucesso, onde e por quê?
Essa pergunta é bem difícil, porque ainda não existem estudos comparativos e aprofundados tão abrangentes. É verdade que em alguns países pode se ver a predominância de alguns grandes grupos de capoeira globalizados. Mas em muitos outros países não há uma hegemonia tão clara de um estilo específico. Os angoleiros são uma minoria em todo lugar, no exterior, no Brasil, e mesmo na Bahia. O interessante é acompanhar como emergem particularidades estilísticas na capoeira de alguns países.
Alguns capoeiristas atuais participam de competições de luta livre. Qual a relevância disso para a capoeira hoje?
Acredito que a participação de capoeiristas, ou de lutadores que também praticam capoeira, e usam alguns do seus recursos, em competições de Vale Tudo ou MMA (Mixed Martial Arts) é importante, pois continua demonstrando a grande eficiência da capoeira como técnica de luta. Cala a boca daqueles que ainda acham que a capoeira é mais uma dança inofensiva. Contribui também para dar maior visibilidade à capoeira em escala mundial. Então eu acho que é bom e relevante para a capoeira hoje.
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Ringue ou academia? A emergência dos estilos modernos da capoeira e seu contexto global – artigo de Matthias Röhrig Assunção (vol 21. n.1, jan-mar/2014).
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Jiu-jitsu no Brasil estimulou a modernização da capoeira. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 19 May 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/jiu-jitsu-no-brasil-estimulou-a-modernizacao-da-capoeira/