Janeiro/2017
Luiz Antonio Teixeira *
Há exatos 80 anos, um médico idealista, imbuído da ideia de controlar o câncer no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, deu início à construção do primeiro centro especializado em tratamento de câncer no Brasil. O pequeno Centro de Cancerologia, criado pelo gaúcho Mário Kroeff, em menos de duas décadas iria se transformar no Instituto Nacional de Câncer (Inca), atualmente a maior instituição pública de referência no tratamento da doença no país e centro de desenvolvimento de programas nacionais contra o câncer. Para que isso acontecesse, seu idealizador teve que empreender uma verdadeira cruzada para mostrar à sociedade a possibilidade do controle da doença a partir de medidas de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento especializado.
Sem medir esforços para transformar seu sonho em uma instituição de verdade, Kroeff buscou auxílio nos mais diferentes setores da sociedade. A elite econômica ajudou-o a montar exposições, que eram instaladas em prédios no centro da cidade para conscientizar a população da necessidade de se prevenir contra a doença; organizações de mulheres da alta sociedade buscaram recursos para criar o asilo para os incuráveis, primeiro hospital para cuidados paliativos no país; já o governo de seu amigo Getúlio Vargas possibilitou a transformação do Centro em um hospital permanente, especializado no tratamento de cancerosos.
Trilhando caminhos inseguros, limitados pela falta de recursos, Kroeff logo percebeu que a sobrevivência da instituição dependia da possibilidade de transformá-la num órgão de excelência que, muito além da atividade assistencial, fosse capaz de pensar e formular as diretrizes para o controle do câncer no país. Para tanto, ele moveu esforços para criar, em dezembro de 1941, o Serviço Nacional de Câncer, primeiro órgão direcionado à criação e execução de ações e políticas relacionadas ao controle da doença no território nacional. Sua iniciativa possibilitou a transformação do Centro de Cancerologia em núcleo de atuação do novo Serviço Nacional. Como Instituto Nacional de Câncer ele deixava de ser um simples hospital, passando a somar às atividades de assistência aos doentes a responsabilidade pela elaboração de políticas para o controle da doença, pesquisa científica e educação em saúde.
A partir dos anos 1950, o INCA tornou-se peça chave nas ações de controle do câncer do país. Seus profissionais, então chamados ‘cancerologistas’, compartilhando uma visão ampliada do câncer, passaram a postular que a integração de pesquisa, ensino para a formação de pessoal qualificado e assistência aos doentes eram as bases para o enfrentamento da doença. Ao Estado caberia uma atuação firme nas ações de prevenção, vigilância e cuidados aos doentes. Tal visão foi central na transformação do câncer de uma doença individual em um problema de saúde pública. Num momento em que as alterações demográficas faziam com que as doenças crônico-degenerativas cada vez mais assumissem uma grande importância como objetos da saúde pública, o câncer passava a ocupar um novo lugar na agenda nacional de saúde, e o INCA era o bastião desse processo.
Trabalhando sob o paradigma da prevenção e controle do câncer, o instituto trouxe contribuições fundamentais à saúde dos brasileiros. Nos anos 1990, passadas as turbulências do período ditatorial, ele seria a base das principais ações para o controle do câncer no país. A partir de suas iniciativas, surgiu o “programa Viva Mulher”, primeira campanha nacional direcionada à prevenção do colo do útero que, apesar das dificuldades relacionadas ao tamanho e heterogeneidade do país, conseguiu ampliar em muito o uso do exame preventivo, tornando-o um exame habitual para grande parte das brasileiras.
O Instituto também liderou o processo de elaboração das campanhas para o controle do consumo do tabaco no país. Tais ações tiveram um sucesso vertiginoso, ao conseguir fazer com que o uso do cigarro baixasse de 36% para 12% da população em menos de duas décadas, poupando a vida de milhares de brasileiros e economizando uma grande quantidade de recursos, que seriam usados no tratamento de diversas doenças relacionadas ao uso do tabaco. Mais recentemente, a implantação e manutenção de um programa de transplante de medula óssea e a criação de um registro nacional de doadores; as inovações em próteses cirúrgicas na área de câncer de cabeça e de pescoço e a incorporação de tecnologias no campo do diagnóstico e do tratamento do câncer – como a utilização do PET-scan e da cirurgia robótica – mostram a vitalidade da instituição.
Entre as principais contribuições do INCA à saúde dos brasileiros está também a consolidação da política de controle do câncer e a contínua elaboração de ações de prevenção, organizadas em colaboração com diversos setores governamentais e da sociedade civil. Atuando em áreas estratégicas, como prevenção e detecção precoce, formação de profissionais especializados, desenvolvimento da pesquisa e geração de informação epidemiológica, o instituto hoje é uma peça central para a saúde pública brasileira.
Todo esse processo só foi possível à medida que a instituição conseguiu produzir uma visão sobre o câncer que tem na integração de diferentes atividades científicas, educacionais e assistenciais a chave para o seu controle. No entanto, apesar de todo esse protagonismo, o INCA tem passado por momentos difíceis. Nos últimos anos, a despeito de sua capacidade técnica, sua responsabilidade na formulação de políticas públicas para o controle do câncer foi aos poucos transferida para a Secretaria de Atenção à Saúde, do MS. Pior do que isso: em menos de um ano e meio, o instituto teve sua direção quatro vezes trocada de mãos, prática que dificulta a continuidade de diversas ações e põe em risco o planejamento de mais longo prazo.
Hoje, quando as mudanças etárias e de nossa população fazem com que doenças crônicas não transmissíveis, como o câncer, estejam no centro das preocupações do campo da saúde, pensar o INCA como um simples hospital, sem levar em conta sua história e competência técnica para transcender as ações de assistência é uma miopia que pode impedir o desenvolvimento da capacidade do país em lidar com um importante problema de saúde. A história de nossa saúde pública mostra que o sucesso da política de prevenção a doenças transmissíveis só foi possível por ter como base a ação de instituições estatais – como a Fundação Oswaldo Cruz – que conjugaram a capacidade técnica na produção de imunobiológicos à autonomia frente a ingerências políticas e a visões redutoras de suas atividades.
Aprendendo com a história, faz-se urgente pensar o Inca como um centro plural que, combinando pesquisa, formação profissional e assistência, tem a capacidade e a vocação de ser a instituição central para o controle do câncer no país. Somente lutando para a continuidade de sua ação ampla e inovadora poderemos comemorar com mais alegria e tranquilidade os 80 anos de uma instituição de inestimável valor que a cada dia torna-se mais necessária à construção do país.
* Luiz Antonio Teixeira é pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
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Site do projeto História do Câncer – atores, cenários e políticas públicas