História dos hospitais de Lisboa revela evolução da medicina e da saúde pública em Portugal

Junho/2024

ENTREVISTA / ISABEL AMARAL

Por Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Isabel Amaral

Co-coordenadora do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT) e docente do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Nova FCT, Portugal, Isabel Amaral é uma das proponentes, organizadoras e autoras de artigo de um suplemento a ser publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos no segundo semestre de 2024.

Junto com Alexandra Esteves, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, e Céline Paillette, da Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, ela editará o suplemento “Doenças, hospitais e políticas de saúde pública – discutindo determinantes locais versus determinantes globais da saúde na história contemporânea”. Em termos de história comparativa, “hospital” será o ponto de partida para reflexões de pesquisadores de diferentes áreas, que abordarão momentos de estresse e crise na história contemporânea e sua influência no futuro.

Isabel Amaral é autora do artigo Hospitals and medical specialization in Lisbon: contexts, evolution, and public health challenges in contemporary history, que estará disponível na íntegra em inglês na versão online da revista na base SciELO. Para brindar nossos leitores luso-brasileiros, o Blog de HCS-Manguinhos entrevistou a especialista a respeito da sua pesquisa na nossa língua comum, o português.

Blog de HCS-Manguinhos: Como eram, originalmente, os hospitais em Portugal, a quem se destinavam, e o que mudou em dois séculos?

Isabel Amaral: Os hospitais em Portugal, à semelhança dos seus congêneres europeus, têm origens em instituições de beneficência,  destinadas a acolher pobres, órfãos, doentes, e outros grupos marginalizados. Inicialmente concebidos como locais de assistência caritativa, evoluíram para espaços de “cura”.

Dona Tuberculose. Desenho em papel a lápis de carvão, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro. Museu Bordalo Pinheiro. MRBP.DES.0870 EGEAC

Sob a administração da Irmandade das Santas Casas da Misericórdia, fundadas por D. Leonor, esposa de D. João II, no século XV, estas instituições receberam privilégios reais para gerir muitos hospitais, no país. Em Lisboa, o Hospital Real de Todos-os-Santos, praticamente destruído pelo terremoto de 1755, foi substituído, nas suas funções, pelo Real Hospital de S. José, que, desde 1851 passou a ter a sua própria administração. A partir de 1913 este hospital manteve a sua denominação laica, Hospitais Civis de Lisboa, até a comemoração do seu centenário.

Os hospitais do século XIX anunciavam uma mudança crucial da “arte de curar” assente nas respostas da ciência e da tecnologia às novas propostas etiológicas e/ou de tratamento das doenças infecciosas, que permitiram controlar as epidemias, dando assim ao Estado o privilégio de desenvolver uma política assistencial intervencionista nos séculos XIX e XX. O hospital moderno medicalizou-se. A trajetória dos hospitais de Lisboa reflete não apenas a transformação na concepção de saúde e de cuidados médicos, mas também do papel do médico como arauto do conhecimento especializado, e do papel central dos hospitais dos séculos XIX e XX, na implementação de reformas de saúde pública, em prol da salubridade na urbe.

Como o terremoto de 1755 afetou a história dos hospitais do país?

O terremoto de Lisboa de 1755 destruiu significativamente o Real Hospital de Todos os Santos, no centro da cidade, de forma a tornar inviável a sua total reconstrução. Os doentes, os médicos e alguns equipamentos recuperados deste hospital foram acolhidos em instalações reais e das ordens religiosas hospitaleiras que povoavam as suas imediações, como solução de emergência, até que uma pequena parte do antigo hospital fosse recuperada. No entanto, este espaço era manifestamente insuficiente para acolher tantos doentes. Em 1759, com a expulsão dos jesuítas do país pelo Marquês de Pombal, D. José I decidiu transformar as instalações do Colégio de Santo Antão, outrora administrado pela ordem inaciana como centro de excelência para a formação científica da elite nobre, para aí instalar o “Hospital Real de Todos os Santos”, recebendo a designação de Real Hospital de S. José, em sua honra. Este hospital herdou não só os doentes e o que restou daquele hospital renascentista, como também uma tradição médica com mais de dois séculos de existência, que foi continuada no Real Hospital de S. José. Não só porque o seu quadro clínico e cirúrgico era inicialmente o mesmo, como também porque, sendo uma escola diferenciada à época, no contexto nacional, daria origem a um centro de referência pela expertise na abordagem clínica, cirúrgica e sanitária, que foi desenvolvendo ao longo da sua história.

Quais os principais marcos da historiografia da saúde em Portugal?

O arco cronológico de referência neste artigo, que pretende enquadrar a importância da especialização médica em Portugal, utilizando a rede hospitalar da cidade de Lisboa como estudo de caso, é o que decorre entre 1800 e 1933: entre o momento em que o Real Hospital de S. José iniciou formalmente as suas funções como Hospital Central do país, e a implantação do Estado Novo, em 1933, que inaugurou um novo ciclo de políticas públicas de saúde. Destacam-se alguns marcos historiográficos a problematizar: as estratégias higienistas e de saúde pública, a evolução arquitetônica dos hospitais, a emergência de novas especialidades médicas, a profissionalização e o ensino médico, e o controle das doenças, no contexto da saúde pública.

Neste período houve uma crescente preocupação com a saúde pública e com a higiene urbana, refletida nas políticas adotadas pelos hospitais. As estratégias higienistas influenciaram não apenas a organização dos espaços hospitalares, mas também as práticas médicas e o controlo dos doentes e das suas patologias. Merecem particular destaque os hospitais para alienados, para crianças, para tratamento de doenças venéreas ou infecciosas, que se especializaram e individualizaram como tal.

A adaptação dos espaços hospitalares assume destaque na historiografia da saúde em Portugal. A transformação dos hospitais, desde as antigas construções conventuais até a criação de novos hospitais modelados nos padrões europeus da época, reflete as agendas monárquica e republicana dos séculos XIX e XX. São disso exemplo o hospital D. Estefânia e o Hospital do Rego (Hospital Curry Cabral).
 
Hospital de S. José (sala de pequena cirurgia). Fotografia de Marçal Mendes Silva, 1906. Coleção Manuel Mendes Silva

Hospital de S. José (sala de pequena cirurgia). Fotografia de Marçal Mendes Silva, 1906. Coleção Manuel Mendes Silva

É durante este período que se estabelecem as bases para o surgimento de novas áreas de conhecimento médico, fundamentadas na investigação experimental e clínica. A tradição das escolas europeias de investigação científica do século XIX influenciou a formação de médicos e a consolidação de uma abordagem científica crucial à modernização da medicina portuguesa.

Os hospitais desempenharam um papel crucial na profissionalização da medicina em Portugal, ancorada na formação médica. A criação de instituições de ensino médico, como a Real Escola de Cirurgia (no Real Hospital de S. José)  e a Faculdade de Medicina de Lisboa (no Hospital Escolar de Santa Marta), contribuíram para a formação de profissionais de saúde e para a consolidação das diferentes áreas de especialização.

A distribuição dos vários espaços hospitalares na cidade de Lisboa e a forma como se foram organizando estabelecem um padrão sanitário, assente nos ideais da ciência pasteuriana. A métrica do progresso nacional consubstanciou-se na reorganização do espaço urbano, onde cada hospital se assumiu como regulador sanitário e social.

Com base neste olhar historiográfico é possível compreender não apenas a história dos hospitais em Portugal, mas também a evolução da medicina e da saúde pública no país, bem como do valor da saúde no todo social.

A sua pesquisa estuda a relação entre a especialização médica e o avanço da medicina e da saúde pública em Portugal. O que descobriu?

A especialização médica desempenhou um papel fundamental na modernização da medicina e das políticas governamentais de saúde, a partir de 1880, em Portugal, por várias razões. Ela surgiu como resposta à especialização científica e técnica na qual o laboratório ocupava um lugar de destaque. Foi no seio dos hospitais que nomes como os de Xavier Bichat, Phillipe Pinel, René Laennec, Claude Bernard e Louis Pasteur foram sendo acolhidos no exercício da medicina, nos hospitais públicos em Portugal. Desde o laboratório de análises clínicas no Hospital de S. José, à abordagem ao cancro realizada no Hospital de Santa Marta, muitos outros espaços hospitalares foram sendo considerados para valorizar a relação entre a teoria e a praxis na abordagem ao doente.

A medicina de laboratório introduziu novos métodos de diagnóstico e tratamento baseados em evidências científicas. Para os médicos, a ciência e tecnologia passariam a ser consideradas ferramentas indispensáveis na descoberta da etiologia e consequente tratamento das doenças, tendo conduzido à erradicação de algumas delas: a difteria, a raiva, a tuberculose e a sífilis. A introdução da estatística na prática médica permitiu estabelecer relações entre dados clínicos e patológicos, levando a uma compreensão mais profunda das doenças e de suas causas, sendo particularmente valorizada no âmbito da psiquiatria, em Portugal, nas primeiras décadas do século XX.

A especialização médica também contribuiu para a profissionalização da prática médica ao estabelecer padrões mais exigentes de formação e competência dos seus praticantes. Aumentou a confiança do público e a reputação da profissão médica. A população olhava para o hospital já não como um albergue destinado a acolher e tratar pobres e indigentes, mas como um centro de referência diferenciado para o cuidado da sua saúde, que cada vez mais exigia expertise (científica, tecnológica e médica), apenas existente nos hospitais públicos.

Além disso, a especialização médica influenciou as políticas governamentais de saúde conduzindo à criação de regulamentações e padrões mais rigorosos para a prática médica e dando cumprimento às regulamentações internacionais, nomeadamente no quadro das conferências sanitárias e da Sociedade das Nações.

No âmbito das políticas higienistas foi também materializado o conceito de especialização nos hospitais, não apenas em estratégias economicistas, mas também em opções de adaptação arquitetônica dos espaços conventuais (Hospital de S. Lázaro, Hospital de Rilhafoles, Hospital do Desterro, Hospital Rainha D. Amélia/Hospital de Arroios, Hospital de Santa Marta e Hospital dos Capuchos) ou na criação de novos hospitais modelados nos modelos europeus da arquitetura hospitalar moderna dos séculos XIX e XX (Hospital D. Estefânia e Hospital do Rego/Hospital Curry Cabral).

Hospital D. Estefânia (Enfermaria de Santa Anna), Photografia Vasques, 1907. Coleção João Clode

Poderia comentar o estudo de caso de Lisboa tratado no seu artigo em História, Ciências, Saúde – Manguinhos? Que novas pesquisas poderão derivar deste estudo?

O estudo de caso aqui apresentado, que versa sobre os hospitais públicos de Lisboa dos séculos XIX e XX, reveste-se da maior importância para a historiografia da medicina em Portugal na história contemporânea. Utiliza a historiografia dos hospitais do país para contextualizar o lugar de Lisboa, como capital do império e da nação, conferindo-lhe uma posição diferenciada na abordagem às doenças e, ao mesmo tempo, para discutir de que forma o primado da expertise ancorou na especialização científica do século XIX, que perpassou a medicina e lhe conferiu uma posição hegemônica face aos restantes domínios científicos, mobilizando os interesses do Estado. Este estudo de caso faz uso da especialização como fio condutor de uma reflexão sobre a história da medicina e da profissão médica, a história dos hospitais, a história da administração dos hospitais portugueses (para os quais o caso de Lisboa é exceção), a história da arquitetura hospitalar e a história urbana. É um novo olhar sobre a história dos hospitais de Lisboa que dialoga com a historiografia dos hospitais em Portugal e, ao mesmo tempo, suscita um conjunto de interrogações que poderão ser motivadoras para estudos posteriores, não só para compreender melhor a dicotomia entre teoria e praxis da medicina portuguesa, mas também para contextualizar esta narrativa em outras dimensões da historiografia da medicina neste período histórico.

Escola Médica de Lisboa. Folheto do XV Congresso Internacional de Medicina realizado em Lisboa em 1906. Coleção João Clode

Este estudo pode também constituir um ponto de partida para uma reflexão historiográfica mais abrangente sobre temas já analisados em vários números da revista História, Ciências, Saúde- Manguinhos, nomeadamente os que se debruçam sobre o papel da intervenção das instituições da Santa Casa da Misericórdia ou das Instituições de Beneficência Pública. Estudos deste âmbito permitiriam utilizar a história comparativa no mesmo arco histórico, não apenas sobre instituições de vocação ou cariz hospitalar no Brasil ou nos Palop, com as lentes dos estudos coloniais e decoloniais, mas também com outros países europeus, para estabelecer narrativas mais abrangentes que permitissem valorizar a história institucional do âmbito dos estudos de Ciência, Tecnologia e Medicina (HCTM), em contextos internacionais, transnacionais e globais.

Quem poderá se interessar especialmente pelo artigo?

Creio que este estudo tem o potencial de atrair uma audiência diversificada interessada no tema, oferecendo novas perspectivas de investigação que podem ser exploradas sob diferentes prismas. É particularmente relevante destacar a importância de uma análise abrangente das fontes em língua portuguesa para enriquecer as narrativas históricas globais. Valorizar as fontes de arquivo escritas em português e utilizá-las como base para reflexões mais amplas no contexto global é essencial. Identificar, analisar, corrigir e preservar essas fontes é crucial para restaurar a precisão histórica, o que exige um esforço coletivo e contínuo. Em resumo, este estudo não se encerra em si mesmo, é mais uma contribuição para o estudo da especialização médica nos séculos XIX e XX, utilizando os hospitais públicos da cidade de Lisboa, como estudo de caso, e a especialização, como objeto de estudo. Espero que a partir dele se possam abrir novas vias de investigação.

Leia (em breve) na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Hospitals and medical specialization in Lisbon: contexts, evolution, and public health challenges in contemporary history, artigo de Isabel Amaral (v. 31, supl. 1, 2024)

Como citar:

História dos hospitais de Lisboa revela evolução da medicina e da saúde pública em Portugal, entrevista com Isabel Amaral, por Marina Lemle, Blog de HCS-Manguinhos, publicada em 12 de junho de 2024. Acessível em https://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/hospitais-de-lisboa-revelam-evolucao-da-medicina-e-da-saude-publica-em-portugal/

Leia mais no Blog de HCS-Manguinhos:

A Covid-19 em Portugal: quo vadis?

“O novo coronavírus atravessou fronteiras e transformou a humanidade num quadro dantesco, como aquele que se apresenta hoje pelo mundo, e que em Portugal atingiu neste momento o ponto mais crítico”, afirma Isabel Amaral, coordenadora do Programa Doutoral em História, Filosofia e Patrimônio da Ciência e da Tecnologia, Nova/FCT, em Portugal.

Lançado catálogo da exposição ‘Pelos labirintos da história da medicina portuguesa nos séculos XIX e XX’

Exposição foi coordenada pela professora Isabel Amaral (Nova/FCT / Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia/CIUHCT)