Hormônio animal era usado para ‘cura gay’

Outubro/2025

Karine Rodrigues | Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Eletroterapia, 120 injeções de hormônios produzidos por testículos de animais, ginástica respiratória, massagens vibratórias na área da tireoide e leituras de romances de paixões heterossexuais. Eis algumas práticas da terapia aplicada durante quatro meses pelo médico gaúcho Hernani de Irajá (1897-1969) em um paciente homossexual, nas primeiras décadas do século 20. A “doença”, no caso, consistiria em um único “sintoma”: sentir atração por pessoas do mesmo sexo.  

Naquele período, caracterizado pelo surgimento de discussões sobre o comportamento sexual em publicações brasileiras, Irajá atraía a atenção da comunidade médica e científica por seus conhecimentos como sexólogo. Remédios produzidos a partir de secreções de glândulas de animais não humanos eram então amplamente usados no Brasil para resolver as “sexopatias masculinas”, mostra artigo publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos. A análise busca contribuir com os estudos contemporâneos sobre a história da “cura gay” e sua íntima conexão com a eugenia.  

Rodrigo Ramos Lima

Rodrigo Ramos Lima

De autoria do historiador Rodrigo Ramos Lima, doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e atualmente pesquisador em estágio pós-doutoral na Faculdade de Medicina – Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), a análise relata como a endocrinologia se destacou como via para converter “pederastas passivos” em heterossexuais. No caso, a especialidade médica se apoiava na terapêutica intitulada opoterapia ou organoterapia, que recomendava tratamento endocrinológico para quem se relacionava com pessoas do mesmo sexo.  

A prática ganhou adesão em meio ao declínio populacional decorrente da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pela gripe espanhola (1918). Na busca por reverter a queda na curva demográfica, o olhar se voltava especialmente para a importância da masculinidade. “A preocupação com a ‘homossexualidade’ masculina possuía forte sentido eugênico, pois ambicionava promover a virilidade nos homens com a finalidade de que se casassem com mulheres e auxiliassem na reprodução biológica da espécie”, escreve o historiador, destacando que, nesse cenário, os hormônios sexuais passaram a ser vistos como estimuladores da energia física, psíquica e sexual” e sua produção assumiu “proporções industriais”. 

De criminosos a doentes: as representações dos homossexuais 

No estudo, Lima analisa a obra Homossexualismo e endocrinologia, de 1938, e examina as representações do corpo masculino e a promoção da cultura da virilidade disseminadas nas propagandas de extratos glandulares nas décadas de 1930 e 1940 no Brasil. Escrita pelo médico legista Leonídio Ribeiro (1893-1976), a publicação defendia a homossexualidade não mais como crime, mas como doença, e recomendava a opoterapia como tratamento de conversão de “pederastas passivos”.  

Proeminente no cenário médico científico brasileiro, por ter sido o primeiro médico à frente do Instituto de Identificação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, Ribeiro criou nas dependências da instituição, em 1932, um ano após assumir o cargo de diretor, o Laboratório de Antropologia Criminal. Durante a sua gestão, foram detidos 195 homossexuais, classificados como “pederastas passivos”. Eles passaram por “análise biotipológica e diagnóstico de distúrbios hormonais”, e suas imagens foram publicadas na obra Homossexualismo e endocrinologia. 

“Ao longo dos anos, Ribeiro divulgara em revistas de direito e medicina, bem como em conferências em sociedades médicas, conclusões dos seus estudos biotipológicos com os pederastas e isso lhe rendeu – e à sua equipe de pesquisadores – o Prêmio Lombroso [criado em homenagem ao médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), conhecido por seus estudos sobre antropologia criminal, que defendia a ideia de que a criminalidade teria causas biológicas], concedido pela Academia Real de Medicina Italiana”, escreve Lima, em dissertação defendida no PPGHCS. No estudo, o historiador mostra que Ribeiro recomendava enxertos de glândulas e transplantes de testículos para tratar homossexuais.  

Perguntado se, além de recomendar, Ribeiro chegou a usar a opoterapia no Laboratório de Antropologia Criminal, Lima diz que há muita controvérsia a respeito da questão, uma vez que o médico não diz categoricamente no livro Homossexualismo e endocrinologia ter realizado aplicações nos 195 detidos. No entanto, diante do histórico do médico, o historiador frisa que há que se considerar essa possibilidade ao analisar a referida fonte.  

“Campanha de ‘cura gay’ muito bem orquestrada” 

Anúncio de Pérolas Titus (Integralismo, 19 set. 1933)

Anúncio de Pérolas Titus (Integralismo, 19/9/1933)

“Estou do lado daqueles que não têm receio de acreditar que o Leonídio [Ribeiro] tinha todo o aparato para usar muitos destes homens como cobaias de seus experimentos. A polícia e o Estado Varguista estavam a pleno vapor com a ditadura do Estado Novo, implementada em 1937”, diz Lima, referindo-se ao período que durou até 1945, quando o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) instaurou um governo marcado pela centralização do poder no Executivo e pela restrição de liberdades civis. 

Lima, que soube da prisão dos “pederastas passivos” ao ler o livro Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan, destaca que, no Laboratório de Antropologia Criminal, além de os corpos dos homossexuais terem sido mensurados, outras pesquisas racialistas foram levadas a cabo no local: 

“Leonidio [Ribeiro] sabia dos impactos dessas cirurgias no plano das liberdades individuais constitucionais, bem como já havia sido questionado publicamente entre seus pares se aquelas prisões não eram uma violência de Estado. Seja como for, hoje, o mais importante é reconhecermos o alcance pedagógico daquelas prisões, pois ele realizava a recomendação constantemente, como uma espécie de campanha de ‘cura gay’ muito bem orquestrada. Ele queria parceiros para replicar estas experiências biomédicas violentas e mui provavelmente — graças a estudos recentes que identificaram estas aplicações — conquistou adesão aos seus métodos em consultórios médicos espalhados pela capital do país e em outros Estados”. 

Nos anúncios e nas farmácias, promessas de recuperação da virilidade 

Ao analisar o mercado farmacêutico brasileiro durante as décadas de 1930 e 1940, Lima constatou vários opoterápicos em circulação. Nas peças publicitárias, observou que “os papéis sociais esperados para os homens foram representados com riqueza de detalhes nas propagandas dos produtos indicados para tratar impotência, neurastenia e falta de virilidade”. Extrato glandular elaborado pelo sexólogo alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935) e pelo andrologista Bernhard Schapiro (1888-1966), o Pérola Titus foi anunciado de forma expressiva em vários periódicos da imprensa na capital federal e em diversos estados do país, ao longo dos anos 1930. O preparado sugeria restaurar as funções glandulares masculinas e restabelecer ‘suas possibilidades normais de perpetuador da espécie’ “, escreve Lima, acrescentando: 

“A propaganda invocava ainda o sentimento político local e global do período, expresso pelo crescimento dos movimentos integralistas, partidos de extrema direita e intensa valorização do militarismo. (…) Na campanha Integralismo e ditadura sexual, a propaganda servia como uma espécie de convocação ao alistamento hormonal”, diz sobre a peça, que ressaltava que “só é forte, é corajoso, é homem, em toda a extensão da palavra, o indivíduo que tem normais as funções do seu sexo”. 

Outro composto, vendido em farmácias, era o Glantona. Tratava-se de um extrato glandular constituído por testículos de touro, indicado para perturbações sexuais como impotência, neurastenia sexual, senilidade precoce, debilidades físicas e mental, além de combater o esgotamento e o envelhecimento prematuro, segundo o anúncio.  

Recomendava-se ainda o Pansexol, fórmula criada pelo psiquiatra Antônio Austregésilo (1876-1960), com base em extratos de testículos de touro. O composto foi recomendado pelo médico gaúcho Hernani de Irajá para tratar distrofia testicular manifesta, em associação com uma terapia na qual ele empregava “os sucos de testículos, a diatermia peniana e testicular com eletrodos especiais, raios infravermelhos e ultravioletas, termoterapia e o método de ventosas sexuais”. No livro Tratamento dos males sexuais, de 1937, ele chamava atenção para a necessidade de uma “observação criteriosa dos corpos infantis”, “desde os três ou quaro anos”, em razão da ocorrência de “inversões constitucionais sem transformação dos caracteres sexuais primários ou secundários”. 

Terapias seguem ativas, estimuladas pelo fundamentalismo religioso 

Embora a homossexualidade tenha sido removida dos sistemas de classificação de doenças e transtornos mentais (DSM-III-R, em 1987, e CID-10, em 1992), as terapias de conversão seguem ativas. Segundo a The Lancet Psychiatry, em editorial publicado em abril de 2022, tratamentos para mudar a orientação sexual ou identidade e expressão de gênero foram relatados em cerca de 60 países em todas as regiões do mundo. Pesquisas apontam que pessoas LGBTQIA+ que foram submetidas a práticas de conversão relacionadas à orientação sexual e à identidade de gênero têm mais chances de enfrentar problemas de saúde mental. As práticas incluem “terapias de conversação, orações e rituais religiosos (por exemplo, exorcismo), privação física, terapia de aversão, como indução de náusea, terapia eletroconvulsiva e medicação”. 

Ainda segundo o mesmo estudo, apenas cinco países têm uma proibição completa em relação a terapias de conversão, e 13 têm proibições parciais. A prática, segundo o estudo, “está intrinsecamente ligada à homofobia e à transfobia persistentes — a criminalização permanece em 71 países” e a “oposição frequentemente se baseia em ideias religiosas de uma ordem natural ou de um plano divino”.   

No Brasil, esses tratamentos são proibidos pelo Conselho Federal de Psicologia, mas não desapareceram. Em entrevista concedida no início do ano passado, à Agência Pública, Wendy Via, cofundadora do projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo (GPAHE, no inglês), líder de um relatório sobre o tema, declarou que o fundamentalismo religioso é o principal fomentador dos grupos e organizações que promovem as chamadas “terapias” de conversão sexual no Brasil. O estudo aponta que esses atores “se articulam em uma grande rede que distribui seus conteúdos na internet, quase sem interferência das plataformas”. Ela observa que, ao longo da pesquisa, notou uma falta significativa de recursos voltados para apoiar quem procurava ajuda.  

Envolvido com o tema desde o mestrado, Lima avalia que os estudos que realizou sobre o assunto podem contribuir para o campo da História das Ciências e da Saúde porque “identifica relatos clínicos que falam sobre os diversos procedimentos biomédicos acionados de forma controversa e criminosa ante as tentativas de cura dos corpos dissidentes sexuais da heteronormatividade no decorrer do século 20”. Além disso, a agenda de pesquisa que desenvolveu até aqui, diz ele, chama atenção para a relevância das parcerias com pesquisadores de fora do Brasil que se interessam pelo Sul Global, pois “essas histórias possuem a capacidade de demonstrar as adaptações e tenebrosas inovações locais de metodologias importadas do norte global”. 

Sobre a atualidade das terapias de conversão, Lima chama atenção para a associação com as práticas eugênicas e a importância de uma reação. “A eugenia não morreu. Ela continua viva em diversos dispositivos biomédicos, estereótipos sociais e apartheids culturais no mundo contemporâneo. Temos casos recentes de membros pertencentes a religiões neopentecostais que passaram por tentativas de ‘cura gay’ e sucumbiram aos piores caminhos possíveis resultantes desses procedimentos criminosos. Nós temos que fazer a nossa parte. Denunciar insistentemente essas ações, que se constituem como crimes contra as cláusulas pétreas constitucionais de garantia da dignidade da vida, das liberdades individuais e do Estado democrático de direito”. 

Leia na revista HCS-Manguinhos:

A proposta de cura da homossexualidade e a circulação de terapias hormonais masculinas no Brasil, 1938-1949, artigo de Rodrigo Ramos Lima (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 32, 2025)