Historiador lança livro sobre ‘o homem dos pedalinhos’

Janeiro/2022

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Em 1950, o então proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi acusado de ter cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. O caso perdurou por mais de 15 anos e envolveu diversos organismos governamentais, organizações judaicas, parlamentares e opinião pública. Em 1965, o imigrante letão foi morto por agentes do Mossad, o serviço secreto israelense.

Durante dez anos, o historiador e jornalista carioca Bruno Leal Pastor de Carvalho dedicou-se a investigar o caso e divulgar suas descobertas, primeiro academicamente e agora em forma de livro, com linguagem mais acessível ao público em geral. Ele acaba de lançar, pela Editora FGV, O homem dos pedalinhos. Herberts Cukurs: a história de um alegado criminoso nazista no Brasil do imediato pós-guerra.

A obra de Bruno Leal baseia-se na sua tese de doutorado em História, defendida em 2015 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação da professora Monica Grin – fundadora, junto com o professor Michel Gherman, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (Niej/UFRJ). Bruno Leal foi um dos coordenadores do Niej por oito anos – até ele assumir, em 2018, o cargo de professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).

O autor também é o criador e editor-chefe do site Café História – projeto online pioneiro no Brasil de divulgação científica em história – e colaborador de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. O Blog de HCS-Manguinhos entrevistou Bruno Leal sobre seu novo livro, que conta com instigante prefácio do historiador Fabio Koifman.

Bruno Leal Pastor de Carvalho

Onde e o que você pesquisou?

Eu realizei a minha pesquisa em arquivos e bibliotecas do Brasil, do Uruguai, de Israel, dos Estados Unidos e da Inglaterra. No total, trabalhei com mais de 3 mil documentos entre dossiês policiais, fichas consulares, ofícios diplomáticos, telegramas, pareceres, atas, entrevistas, notícias, editoriais, reportagens, memorandos, processos de naturalização, moções de repúdio, cartas, fotografias, relatórios de inteligência etc.

O que descobriu de mais relevante?

Acredito que a minha descoberta mais importante tem a ver com a posição das autoridades brasileiras no caso, que é justamente o foco da pesquisa. Durante muito tempo, a narrativa construída pelas divulgações na imprensa e na cultura de massa explicaram que a entrada e a permanência de Cukurs no Brasil foram resultado de um acobertamento sistemático do governo brasileiro e da ação de redes nazistas secretas internacionais que agiam nos subterrâneos do país. O que eu verifiquei na documentação, no entanto, é algo muito diferente.

Em primeiro lugar, Cukurs não entrou no Brasil através das ratlines, como eram chamadas as rotas de escape usadas por vários criminosos nazistas depois da guerra. Cukurs entrou no Brasil legalmente, em grande medida porque atendia ao perfil pretendido pela política imigratória racista que vigorava em nosso país: ele era branco, europeu e cristão. Como a historiografia já demonstrou, esses fatores foram fundamentais para a concessão de vistos permanentes a estrangeiros.

Nossas autoridades foram negligentes no imediato pós-guerra. Houve pouca ou nenhuma escrutinização do passado dos estrangeiros que solicitavam vistos, de modo que isso beneficiou colaboracionistas como Cukurs. Mas mesmo que o governo brasileiro tivesse feito uma pesquisa mais aprofundada sobre Cukurs, dificilmente encontraria, naquele momento, acusações de crimes de guerra contra ele. Cukurs contava com documentos oficiais emitidos por autoridades francesas e não havia pedidos de prisão expedidos em seu nome. As acusações de crimes de guerra contra Cukurs começariam a ser sistematizadas somente a partir de 1947, quando ele já estava no Brasil. Antes disso, havia apenas algumas poucas e breves denúncias na imprensa estrangeira, mas que estavam distantes do olhar das autoridades brasileiras.

Em segundo lugar, a documentação mostra que a permanência de Cukurs no Brasil não teve nada a ver com a ação de redes nazistas secretas. Mas teria, então, o governo brasileiro o acobertado? Alguns funcionários do Ministério da Justiça que trabalharam no caso expressaram posições claramente antissemitas, e seus pareceres eram favoráveis tanto à naturalização de Cukurs quanto à sua permanência no Brasil. Contudo, o antissemitismo desses funcionários não foi decisivo para o desfecho do caso. Outros fatores parecem ter sido críticos para que Cukurs conseguisse permanecer no país.

No plano interno, por exemplo, embora a então recém-fundada Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro tivesse sido muito organizada e competente – ela formou comissões, elaborou dossiês, mobilizou políticos, imprensa e esteve em permanente contato com organizações internacionais – ela acabou sendo surpreendida, em certa altura do caso, com um problema de formalidade jurídica das peças acusatórias contra Cukurs. A acusação baseava-se nos depoimentos de cinco judeus que sobreviveram ao Holocausto na Letônia. Eles apontavam Cukurs como o principal responsável por assassinatos em massa, maus tratos, desapropriação e destruição de propriedades judaicas. Eram acusações muito graves e muito sérias. Os membros da Federação jamais duvidaram desses depoimentos – e nem tinham razão para fazê-lo. Mas a natureza informal desses documentos, bem como a natureza extraoficial da organização que se encarregou deles no pós-guerra, acabou por comprometer, ainda que parcialmente, o esforço da Federação em suas ações contra Cukurs.

No plano externo, um aspecto que contribuiu muito para que Cukurs jamais fosse expulso do país foi a inoperância de determinados governos estrangeiros. O caso mais importante envolve o governo britânico. Nos anos 1950, a embaixada brasileira em Londres contatou o Foreign Office a fim de checar as acusações contra Cukurs e a situação da organização que tomou os depoimentos contra ele. Mas houve grande má-vontade da diplomacia britânica. O Foreign Office deu informações equivocadas e contraditórias; deixou de responder mensagens, aplicando ao Brasil uma técnica que eles chamavam de “wait and see”, uma espécie de “chá de cadeira” para forçar o esquecimento ou a desistência dos pedidos de informações que lhes foram encaminhados. Isso fez com que o governo brasileiro, por exemplo, suspeitasse de má fé das acusações contra Cukurs.

O comportamento dos britânicos tinha muito a ver com a lógica da Guerra Fria. O Foreign Office não tinha mais tanto interesse em esclarecer questões referentes ao nazismo, que àquela altura era visto já como um “problema do passado”, devendo seus diplomatas, agora, concentrarem suas forças no combate ao comunismo. Além disso, os pedidos da embaixada brasileira demandavam que os britânicos consultassem as autoridades da Alemanha Ocidental, algo que eles queriam evitar de qualquer forma, pois havia o entendimento de que esse tipo de consulta sobre o passado nazista poderia criar constrangimentos e indisposições com os recém-aliados.

Essa situação com os britânicos poderia ter feito com que o governo brasileiro arquivasse definitivamente o caso e concedesse a naturalização tão sonhada por Cukurs. Mas não foi o que aconteceu. O governo brasileiro nunca expulsou Cukurs, mas também não lhe concedeu a naturalização, o que o deixou vulnerável à extradição. Contudo, nenhum país nunca a solicitou ao Brasil. Se isso tivesse acontecido, talvez o desfecho de Cukurs tivesse sido outro, bem diferente.

Que adaptações foram feitas para o livro?

Eu acrescentei algumas informações novas, que obtive depois de defender a tese, alterei o título de alguns capítulos, fiz uma nova seleção de imagens e mudei a redação em vários aspectos, de forma que o trabalho pudesse ser lido por pessoas sem formação acadêmica em História. Isso vai ao encontro do meu trabalho na área de divulgação científica. Eu queria um livro que pudesse se conectar com as pessoas através de uma história marcante. Acho que consegui fazer isso, e sem abdicar das problematizações historiográficas que são tão importantes para nós historiadores.

O que falta saber sobre essa história, e onde se poderia buscar respostas?

Há muitas coisas que não sabemos e que talvez nunca saibamos – a história é assim mesmo, repleta de lacunas. Eu gostaria de saber, por exemplo, se o Brasil foi a única opção para Cukurs ou se foi um destino dentre vários outros possíveis quando ele deixou a Europa. Outra lacuna diz respeito à extensão de seu envolvimento na estrutura que levou ao genocídio dos judeus da Letônia. Cukurs colaborou com a ocupação nazista e sobreviventes judeus do Holocausto na Letônia afirmam que ele participou diretamente de diversas ações de genocídio. Mas a historiografia letã ainda tem dificuldades para determinar com mais precisão o lugar que Cukurs ocupou na Letônia sob dominação nazista, ao menos até onde eu tenho acompanhado – a barreira da língua é relevante aqui. Então, há muitas perguntas a serem respondidas, como: quais foram todas as ações em que esteve envolvido? Qual foi o seu grau de autoridade? Qual foi a sua relação com os oficiais alemães? Como ele era letão, e não alemão, podemos pensar que havia um limite para as suas ações e que sua autoridade deveria ser limitada – o que não o inocenta das acusações. Na Letônia, nos últimos anos, o passado de Cukurs tem provocado grandes debates públicos, evocando, não raro, uma questão profundamente nacionalista. Há alguns anos, li que movimentos de extrema-direita no país tentavam reabilitar a sua imagem. Tudo isso ainda precisa ser devidamente investigado pelos historiadores – sobretudo, os da Letônia. Mas o meu trabalho foca na vida dele no Brasil, na posição do governo brasileiro diante do caso, nos anos 1950 e 1960.

Por que o uso do termo “alegado” no subtítulo?

Primeiro eu preciso chamar a atenção, novamente, para o fato de que minha pesquisa foi focada em investigar como o caso Cukurs se desenvolveu no Brasil. Eu acho legítimo que muitas pessoas tenham plena convicção das acusações que foram imputadas ao Cukurs. Mas, no caso de uma pesquisa historiográfica, existe um limite para aquilo que estou autorizado a dizer. Os limites de um trabalho de historiografia são diferentes daqueles que regem outros espaços de fala. Portanto, o termo “alegado” aponta o limite da minha pesquisa. Cukurs não foi levado à julgamento; logo, não foi legalmente condenado como criminoso de guerra. Para identificá-lo formalmente como criminoso de guerra nazista, além dos depoimentos dos sobreviventes que localizei, eu precisaria também cruzar esta acusação com dados de documentos que estão, provavelmente, em arquivos da Letônia e da Alemanha. É desta forma que escrevemos a história: a partir do cruzamento e da interrelação de diferentes documentos. A questão é que não domino essas duas línguas e desconheço a localização exata de tais documentos. A vasta documentação que encontrei me permitiu me aprofundar no meu foco principal, que é o posicionamento do Estado brasileiro, e me restringir ao debate a que me propus. Mas espero que meu trabalho seja somente um dos passos que a História vai dar no sentido de preencher as lacunas desse caso.

Preciso, ainda, destacar que o meu trabalho não é, por causa disso, de forma alguma, uma defesa da inocência de Cukurs e muito menos uma desqualificação das acusações contra ele, que são, a propósito, reproduzidas e contextualizadas historicamente no livro. Acredito também que meu trabalho possa ajudar a mobilizar organizações, grupos ou instituições com mais acessos e recursos para trazer à luz novos documentos que possam contribuir para ampliarmos a produção historiográfica sobre o caso.

Você foi coordenador de um grupo de estudos judaicos. Que grupo é esse e que temas aborda?

Eu fui um dos coordenadores do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (Niej) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) por oito anos. Deixei a sua coordenação quando vim para a Universidade de Brasília (UnB), em 2018. O Niej foi fundado em 2009 pela professora Monica Grin, da UFRJ, e pelo professor Michel Gherman, também da UFRJ. Ele é composto por alunos de pós-graduação e graduação que se interessam por temas judaicos, que vão desde o Holocausto e a literatura israelense até antissemitismo, sionismo e religião. O Niej publica uma revista acadêmica e promove seminários, congressos, oficinas e disciplinas para os estudantes. O núcleo também faz acordos de cooperação com diversas universidades estrangeiras, principalmente de Israel e dos Estados Unidos. O Niej é um dos mais importantes centros de estudos judaicos da América Latina e continuo vinculado ao núcleo como professor associado.

A quem o livro pode interessar e a quem você o recomenda especialmente?

Embora tenha originado da minha tese de doutorado, o livro foi escrito de modo a permitir uma leitura fluida e acessível a qualquer leitor. Recomendo-o às pessoas que, assim como eu, sempre toparam, vez ou outra, com histórias de nazistas e criminosos nazistas no Brasil. Mas é claro que ele vai atrair, particularmente, as pessoas que se interessam pela história da Segunda Guerra Mundial e pela história do Brasil republicano. Eu não acho que o Caso Cukurs possa ser tomado como chave de entendimento para outros casos do gênero no Brasil, pois cada caso deve ser entendido em sua particularidade, mas acho que ele nos ajuda a problematizar e a relativizar as narrativas explicativas tão difundidas no senso comum. Acredito que esse seja, aliás, um dos propósitos dos trabalhos historiográficos: não só ampliar nosso conhecimento sobre o passado, como também levantar novas formas de pensá-lo.

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Como citar este post:

Historiador lança livro sobre ‘o homem dos pedalinhos’. Entrevista com Bruno Leal, por Marina Lemle. Blog de HCS-Manguinhos, publicado em 12 de janeiro de 2022. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/historiador-lanca-livro-sobre-o-homem-dos-pedalinhos/