Dezembro/2014
Rodrigo Elias | Revista de História
Canudos é a nossa guerra-síntese. Uma comunidade pobre lutando contra os poderes locais e as condições difíceis do sertão baiano, liderada por um religioso carismático, é massacrada pelas forças do governo após o engajamento quase unânime das elites políticas, das populações urbanas e da imprensa.
Jornais de todo o país, aliados de interesses políticos e econômicos agrupados com o recente surgimento da República, começaram a divulgar os “perigos” da existência de uma aglomeração de despossuídos que desenvolviam atividades de subsistência e se recusavam a reconhecer a autoridade do novo regime – inclusive se negando a pagar impostos para um governo no qual definitivamente não confiavam. Para a “opinião pública” nacional, urbana, branca e instruída, tratava-se de um bando de miseráveis e fanáticos, mestiços, negros e índios que não se enquadravam na ordem civilizada que se espalhava a partir do sudeste desenvolvido. Canudos devia ser destruído.
E assim foi feito, como demonstra o dossiê preparado pelo pesquisador Marcello Scarrone. Os habitantes do arraial, inicialmente preocupados em sobreviver e rezar, resistiram, atraíram adeptos de outras áreas do nordeste, organizaram grupos que caçavam soldados da ordem como costumavam caçar animais em tempos de fome aguda e impuseram derrotas vergonhosas às forças oficiais. Mas, ao fim, caíram: foram massacrados sem piedade, com tiros de canhão, incêndio generalizado e degola indiscriminada de prisioneiros dominados. Euclides da Cunha, que nunca foi um homem suave, deu o tom do evento: Canudos foi um crime. Este crime, podemos acrescentar hoje, foi construído paulatinamente nas páginas de uma imprensa associada aos interesses dominantes em uma sociedade profundamente desigual. Sabemos que a História não se repete, mas às vezes temos a sensação de que seus capítulos mais sombrios custam a terminar.
Fonte: Revista de História
Leia em HCSM:
O número especial de História, Ciências, Saúde Manguinhos traz a seus leitores a maioria dos trabalhos apresentados no seminário Canudos 100 anos e ainda os ensaios de Cícero Almeida e Berthold Zilly, elaborados para a seção Imagens, ambos concernentes ao trabalho de Flavio de Barros, o fotógrafo que integrou a última expedição militar a Canudos. Uma ausência marcante no seminário, a de Walnice Nogueira Galvão, é agora reparada com a publicação do depoimento que nos concedeu. Para ilustrar esta edição reproduzimos algumas das xilogravuras de Joel Borges.
Os artigos contemplam as relações entre história e ficção; o papel decisivo que a obra de Euclides da Cunha teve na conformação de uma imagem de Brasil; o modo como se deu a sua consagração; os vários significados atribuídos à palavra sertão e as interpretações de que foi objeto no pensamento social brasileiro; e ainda o efeito de contraste que se obtém confrontando os sertanejos de Canudos com os conflitos subseqüentes do Brasil rural e com os novos personagens que hoje gravitam em torno da cultura country. Em seu conjunto, estes trabalhos focalizam as tensões constitutivas do processo de modernização da sociedade brasileira. Reafirmam a contemporaneidade e abrangência nacional da tragédia protagonizada no sertão da Bahia em fins do século passado, instigando os leitores a lembrar Canudos para melhor pensar o Brasil.
SUMÁRIO
Carta do editor
Análise
A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões
Berthold Zilly
texto em português
Entre Clio e Calíope: a construção da narrativa histórica em Os sertões
Luiz Fernando Valente
texto em português
A ontologia discursiva de Os sertões
Leopoldo M. Bernucci
texto em português
Os sertões: atualidade e arcaísmo na representação cultural de um conflito brasileiro
Paulo Venancio Filho
texto em portuiguês
O livro que abalou o Brasil: a consagração de Os sertões na virada do século
Regina Abreu
texto em português
Geologia e metáforas geológicas em Os sertões
José Carlos Barreto de Santana
texto em português
Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha
Roberto Ventura
texto em português
Iluminista e romântico: o tempo passado em Os Sertões de Euclides da Cunha
Glaucia Villas Bôas
texto em português
Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil
Nísia Trindade Lima
texto em português
A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro
Lúcia Lippi Oliveira
texto em português
Logo ali, no final da avenida: Os sertões redefinidos pelo movimento sanitarista da Primeira República
Gilberto Hochman
texto em português
A obra de Euclides da Cunha e os debates sobre mestiçagem no Brasil no início do século XX: Os sertões e a medicina-antropologia do Museu Nacional
Ricardo Ventura Santos
texto em português
Luta pela terra e identidades sociais
Mario Grynszpan
texto em português
O country no Brasil contemporâneo
Silvana G. de Paula
texto em português
Depoimento
Fato e ficção na obra de Euclides da Cunha
Walnice Nogueira Galvão entrevistada por Nísia Trindade Lima e Simone P. Kropf
texto em português
Imagens
O álbum fotográfico de Flávio de Barros: memória e representação da guerra de Canudos
Cícero Antônio F. de Almeira
texto em português
Flávio de Barros, o ilustre cronista anônimo da guerra de Canudos: as fotografias que Euclides da Cunha gostaria de ter tirado
Berthold Zilly
texto em português