Experimentos científicos com crianças: uma das histórias da educação no Brasil

Maio/2022

Maria Lacerda de Moura em foto de Gioconda Rizzo

Mais conhecida como liderança feminista e anarquista – uma das primeiras no Brasil -, a professora Maria Lacerda de Moura também se dedicou, no início do século XX, aos estudos sobre psicologia experimental e os diferentes testes de inteligência, sobretudo os de origem francesa e italiana.

Professora em Barbacena, Minas Gerais, ela apresentou ao governo daquele estado uma proposta de projeto de pesquisa que previa a realização de experiências em crianças de diferentes escolas da cidade.

No artigo Um projeto para estudar cientificamente a criança: Maria Lacerda de Moura e sua contribuição para a educação em Minas Gerais, 1908-1921 (HCS-Manguinhos, v. 29, n. 1, jan-mar 2022), Paula Cristina David Guimarães, da Universidade Federal de São João del-Rei, MG, analisa o requerimento enviado pela professora à Secretaria do Interior de Minas Gerais solicitando autorização para realizar experiências de psicologia experimental aplicadas à pedagogia com alunos das escolas locais, e também os seis pareceres gerados pela Secretaria em resposta ao pedido.

Na sua tese de doutorado, defendida na UFMG, Paula Guimarães identifica esta como sendo a primeira proposta de experimentação científica em crianças de escolas de Minas Gerais no início do século XX. Segundo a autora, o ineditismo de algumas fontes possibilitou a abertura de novas perspectivas para o entendimento da ciência experimental aplicada à educação da infância em Minas Gerais em um período em que se desconhecem notícias sobre a realização de tais experimentos no estado.

“Com a descoberta do requerimento tem-se a possibilidade de compreender as questões da psicologia aplicada à educação dez anos antes da chegada da psicóloga russa Helena Antipoff, considerada a precursora dos estudos da psicologia experimental em crianças, percebendo em que medida educadores e políticos mineiros pensavam a condição da educação aliada à ciência para a formação da infância”, afirma.

Paula Guimarães também verificou a resistência do governo ao projeto e observou diferentes relações de poder no contexto da inserção da psicologia experimental na educação. Ela conta que, depois de quase um ano e meio de tramitação dentro da Secretaria do Interior de Minas Gerais e de passar por diferentes pareceres, o requerimento de Maria Lacerda foi autorizado, com restrições, pelo secretário do Interior, Afonso Penna Junior, em 1920. Contudo, ela não chegou a realizar o seu projeto, já que pouco depois se mudou para o estado de São Paulo, deixando a carreira docente e passando a se dedicar aos movimentos feministas e anarquistas.

Alguns estudos apontam que Maria Lacerda deixou de lecionar em escolas oficiais por acreditar que tais instituições eram autoritárias e perpetuavam tradições e preconceitos contra os quais lutava. A autora do artigo sugere, entretanto, que tal afastamento pode ter acontecido, também, pela falta de retorno com relação à sua proposta de trabalho, sinalizada em um livro que publicou anos depois, já em São Paulo. Em Lições de pedagogia, de 1925, ela menciona que isso lhe teria gerado um grande descrédito em relação à instituição.

“Se Maria Lacerda de Moura tem um lugar de reconhecimento como liderança feminista e anarquista, este artigo busca lançar luzes sobre a sua atuação como educadora, sobretudo, na proposição de um projeto de estudo científico sobre a infância. Por se tratar de uma mulher multifacetada e com uma significativa produção, é certo que muito ainda pode ser conhecido sobre essa figura fundamental para pensarmos o lugar da mulher educadora na sociedade ao longo do século XX”, afirma Paula Guimarães.

Leia na revista HCS-Manguinhos:

Um projeto para estudar cientificamente a criança: Maria Lacerda de Moura e sua contribuição para a educação em Minas Gerais, 1908-1921, artigo de Paula Cristina David Guimarães (HCS-Manguinhos, v. 29, n. 1, jan-mar 2022)

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