Abril/2016
Informe Ensp*
Além de provocar inúmeros danos ambientais, a presença do garimpo na Terra Indígena Yanomami traz graves consequências à saúde daquela população. Estudo inédito conduzido pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), do Laboratório de Química da PUC e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), divulgado no final do mês de março, constatou elevado nível de mercúrio (Hg) nos povos da TI Yanomami. A contaminação chegou a afetar todos os adultos examinados em uma das regiões analisadas.
O resultado da avaliação das amostras de cabelo de 239 indígenas, de 19 aldeias, gerou o relatório Avaliação da exposição ambiental ao mercúrio proveniente de atividade garimpeira de ouro na Terra Indígena Yanomami, Roraima, Amazônia, Brasil, apresentado em primeira mão à comunidade indígena no dia 3 de março de 2016, e entregue, em seguida, ao poder público, especificamente às Presidências da Funai e do Ibama, ao coordenador da Secretaria Especial de Saúde Indígena, ao Ministério Público Federal e à relatora especial sobre Direitos Indígenas da ONU, Victoria Tauli-Corpuz, que estava em visita ao Brasil. O estudo foi realizado nas regiões de Papiú e Waikás, onde residem as etnias Yanomami e Ye’kwana, e a coleta priorizou os grupos mais vulneráveis à contaminação: crianças, mulheres em idade reprodutiva e adultos com algum histórico de contato direto com a atividade garimpeira. Também foram examinadas 35 amostras de peixes que são parte fundamental da dieta alimentar desses índios.
O garimpo ameaça a vida dos Yanomami e Ye’kwana desde a década de 1980. A invasão dos territórios por garimpeiros cresceu assustadoramente a partir de 2014. Hoje, estima-se que cinco mil garimpeiros atuam ilegalmente na Terra Indígena Yanomami, e os próprios indígenas promoveram uma série de denúncias da ocupação ilegal. Coordenador da pesquisa, Paulo Basta concedeu entrevista ao Informe Ensp e destacou, além dos principais resultados, a importância do retorno dos dados da pesquisa ao povo Yanomami detalhando a reação deles diante da informação a respeito dos elevados níveis de contaminação. “Realizamos uma pesquisa que foi motivada por demanda da própria comunidade, e nossa principal missão foi devolver resultados conclusivos a eles”, enfatizou o pesquisador. As pesquisadoras Sandra Hacon (vice-coordenadora) e Claudia Vega, da Ensp, também integraram a equipe do estudo. Confira a entrevista:
Informe Ensp: Já se sabe que as análises apontaram elevados níveis de contaminação na população daquela região, mas como os próprios indígenas receberam essa informação?
Paulo Basta: Antes da apresentação do relatório às instâncias do poder público, Marcos Wesley de Oliveira (ISA) e Claudia Maribel Vega Ruiz (Ensp) estiveram nas aldeias para apresentar os principais resultados à comunidade. Além de promovermos palestras com o propósito de divulgar os resultados e entregar laudos individuais aos participantes, preparamosbanners e materiais informativos que foram traduzidos para a língua nativa deles, Yanomami e Ye’kwana, para total compreensão dos principais achados.
A presença do garimpo na região, lamentavelmente, perpetua-se desde a década de 1980, fato que causa inúmeros transtornos à população. Os indígenas tinham conhecimento acerca do despejo de mercúrio nos rios, da poluição das águas e do ambiente, mas esse assunto era difuso, pois os indígenas não dispunham de informações concretas. Ao chegarmos com os resultados e apresentarmos os laudos individuais que demonstravam elevados níveis de contaminação, pela primeira vez, a comunidade teve evidências da contaminação e despertou para o problema.
Pode-se dizer que foi uma experiência transformadora, porque os Yanomami receberam uma prova concreta de que a contaminação não estava apenas na água e no ambiente, mas sim que havia chegado às pessoas por meio da alimentação, do consumo de peixes contaminados. Houve um movimento de conscientização, e eles mesmos se municiaram de ferramentas para reivindicar a desintrusão do garimpo. E, ainda, manifestaram a seguinte preocupação: E agora, como enfrentaremos o problema? Existe remédio para isso?
Informe Ensp: E há como enfrentar o problema da contaminação?
Paulo Basta: O mercúrio é metal pesado altamente tóxico, e seus danos costumam ser graves e permanentes: pode causar alterações diretas no sistema nervoso central, gerando problemas de ordem cognitiva e motora, perda de visão, doenças cardíacas entre outras debilidades. Nas mulheres gestantes, os danos são ainda mais graves, pois o mercúrio atinge o feto, podendo causar deformações irrecuperáveis.
Explicamos que não existe um tratamento padronizado, um medicamento que retire o mercúrio do organismo. Existem algumas substâncias quelantes usadas em situações extremas, quando há contaminação aguda, com altos índices de mercúrio no organismo, indicada principalmente em contaminações decorrentes de exposição ocupacional. Ou seja, na queima do mercúrio pelos garimpeiros no momento da separação do ouro do amálgama. Não há recomendação de usar essas substâncias nas situações de contaminação crônica, detectadas em nosso estudo, uma vez que poderiam provocar efeitos adversos e ocasionar complicações. Isso foi cuidadosamente explicado à comunidade.
Nossas principais recomendações são a interrupção imediata da exposição por meio da retirada do garimpo da área e a avaliação clínico-neurológica dos indígenas que apresentaram os mais elevados níveis de contaminação por mercúrio.
Informe Ensp: Algum órgão regulador estabelece limite seguro para exposição ao Hg?
Paulo Basta: Não há limite seguro para exposição ao Hg. Por conta disso, utilizamos como parâmetros de referência o indicador da Organização Mundial de Saúde (OMS) que considera que níveis acima de 6 microgramas de mercúrio por grama de cabelo (μg.g-1 ) podem trazer sérias consequências à saúde, principalmente a grupos vulneráveis.
Informe Ensp: Quais foram os principais resultados da pesquisa?
Paulo Basta: A equipe visitou 19 aldeias na TI Yanomami, sendo 15 na região de Paapiú e quatro na região de Waikás. Essas regiões foram selecionadas por indicação da Hutukara em razão da crescente invasão de garimpeiros. Ao todo, foram avaliados 239 indígenas no período de 16/11/2014 a 03/12/2014, e, após consentimento livre e esclarecido, foram coletadas amostras de cabelo de crianças e adultos, com enfoque em menores de 5 anos e mulheres em idade reprodutiva.
Observamos diferentes níveis de exposição ao Hg na comparação entre as duas regiões. Na região do Paapiú, a mediana foi 3,2 μg.g-1, enquanto na região de Waikás, foi 5,0 μg.g-1. Foram registradas concentrações alarmantes de mercúrio na aldeia de Aracaça, na região de Waikás, situada próximo à área de garimpo, onde a mediana foi 15,5 μg.g-1, sendo 6,8 μg.g-1 nas crianças menores de 5 anos e 16,0 μg.g-1 nas mulheres em idade reprodutiva.
Entre crianças menores de 5 anos, foram registradas prevalências de mercúrio no cabelo acima de 6 μg.g-1 de 4,9%, 25,0% e 66,6%, no Paapiú, entre os ye’kuana de Waikás e entre os Yanomami de Aracaça, respectivamente.
Já entre os adultos, a prevalência de níveis de mercúrio no cabelo maiores que nosso ponto de corte foi de 9,3% no Paapiú, 31,6% entre os Ye’kuana de Waikás e chegou a 100% entre os Yanomami de Aracaça. Nessa localidade, praticamente todos os indígenas adultos avaliados apresentaram níveis elevados de mercúrio no cabelo.
Os achados mencionados demonstram que os mais altos níveis de Hg foram encontrados na aldeia de Aracaça, no Polo Base de Waikás, onde havia grande número de balsas clandestinas de garimpo por ocasião da realização do trabalho de campo. Para ilustrar a situação, num trecho de aproximadamente 15 minutos sobrevoando a região, 47 balsas foram avistadas no entorno de Aracaça, que é uma aldeia isolada do conjunto das aldeias de Waikás e de dimensões geográficas e populacionais menores.
Informe Ensp: Além da interrupção imediata da atividade do garimpo, quais outras recomendações o estudo propõe?
Paulo Basta: O Brasil é um dos países signatários da Convenção de Minamata, e seu principal objetivo é proteger a saúde humana e o meio ambiente de emissões antropogênicas e da liberação de mercúrio e seus componentes na natureza. Diante disso, nossa recomendação é que as autoridades brasileiras cumpram os compromissos internacionais assumidos, assim como a legislação ambiental nacional, e façam a retirada imediata dos invasores da Terra Indígena Yanomami pela ameaça direta à saúde da população. Além disso, o trabalho sugere ações a serem realizadas no âmbito coletivo, individual e ambiental. Em relação a esse último, é necessário estabelecer um plano de monitoramento para identificar as principais fontes de exposição e aprofundar as análises nos corpos d’água a fim de produzir um mapa de risco para orientar a população.
Sob o ponto de vista coletivo, é necessário promover um diagnóstico situacional sobre as condições gerais de saúde da população que vive nas áreas de abrangência dos garimpos, incluindo análise do perfil alimentar e nutricional e avaliação da carga de outras morbidades. Sabemos que os indígenas vivem em condições precárias, com altos índices de mortalidade infantil, desnutrição, malária, tuberculose, parasitoses intestinais, entre outros agravos. Essas doenças que comprometem o sistema imunológico potencializam a absorção do mercúrio no organismo humano e, consequentemente, ampliam seu potencial de toxicidade.
Na perspectiva individual, é necessário realizar avaliação clínico-neurológica para os indígenas que apresentaram os mais altos níveis de contaminação por mercúrio, priorizando as crianças. Somente dessa maneira poderemos avaliar a extensão dos potencias danos e sua gravidade à saúde individual e coletiva aos indígenas investigados e vislumbrar-se-á um cenário mais realista da contaminação por mercúrio na Terra Yanomami.
Informe Ensp: A equipe de pesquisa teve o cuidado de devolver as amostras de cabelo não processadas no laboratório para a comunidade. O que motivou essa ação? Qual balanço é possível fazer da pesquisa?
Paulo Basta: As coletas feitas entre novembro e dezembro de 2014 foram precedidas de consultas aos indígenas, que autorizaram a retirada de amostras de seus cabelos com a condição de devolvê-las após a análise. É importante frisar que, nessa pesquisa, utilizamos termos de consentimento traduzidos para a língua nativa, fato que possibilitou a participação ativa dos indígenas e a manifestação do desejo de receberam as amostras biológicas de volta. Esse pedido se deve à obrigação de que, para os Yanomami, todos os pertences e partes corporais dos indivíduos devem ser cremados com eles após a morte. Foi também uma precaução adotada depois que os Yanomami tiveram conhecimento do caso de roubo de seu sangue por pesquisadores norte-americanos na década de 1970. Esse caso ganhou repercussão internacional e deu protagonismo ao debate sobre a ética em pesquisa com populações indígenas.
Achamos relevante marcar a forma de condução de nossa pesquisa. Diferente de grande parte dos estudos desenvolvidos na Fundação, não abordamos um tema inédito, não desenvolvemos novos testes de diagnóstico, tampouco testamos novos medicamentos, não propusemos inovações tecnológicas, nem visamos á publicação de nossas achados em revistas indexadas com alto fator de impacto, mas trabalhamos em estreita parceria com a comunidade. Realizamos uma pesquisa que surgiu por demanda da própria comunidade e devolvemos a eles resultados conclusivos que podem ser utilizados como ferramenta para cobrar providências das autoridades.
Trata-se de uma pesquisa a favor da comunidade, de cunho eminentemente social e ambiental, originada a partir de uma carta assinada por Davi Kopenawa, na qual esse líder dos povos da floresta nos solicitou auxílio para verificar se os Yanomami estavam contaminados pelo mercúrio utilizado pelos garimpeiros que invadem sua terra. Vale lembrar que a pesquisa foi executada sem qualquer tipo de financiamento ou apoio de agências de fomento.
* Informe Ensp com informações do Instituto Socioambiental (ISA).
Leia em HCS-Manguinhos:
“O Sesp nunca trabalhou com índios”: a (in)visibilidade dos indígenas na atuação da Fundação Serviços de Saúde Pública no estado do Amazonas, artigo de Amandia Braga Lima Sousa e Júlio César Schweickardt (vol.20, no.4, dez 2013)
A emergência da medicina tradicional indígena no campo das políticas públicas, artigo de Luciane Ouriques Ferreira (vol.20, no.1, jan./mar. 2013)
Ñande Ru Marangatu: a judicialização da luta pela terra indígena e o papel do cientista, artigo de Thiago Leandro Vieira Cavalcante (vol.17, no.2, Jun 2010)
O mundo e o conhecimento sustentável indígena, artigo de André Fernando, (vol.14, supl.0, dez 2007)
Globalização e ambientalismo: etnicidades polifônicas na Amazônia, artigo de Luiza Garnelo e Sully Sampaio (vol.12, n.3, 2005)
Leia no blog de HCS-Manguinhos:
Antropóloga defende diálogo para articular medicinas indígenas e sistema de saúde – Entrevista com Luciane Ouriques Ferreira
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