Abril/2014
Nota do Blog: No dia 4 de abril, o Ipea publicou uma errata da pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”, na qual reconhece a troca de dados de duas perguntas. O percentual de entrevistados que responderam que concordam com a afirmação de que “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” é de 26%, e não 65%, como informado inicialmente. A reportagem abaixo foi feita antes da errata, a partir dos números divulgados pelo instituto em 27 de março. Mesmo assim, os comentários das entrevistadas continuam relevantes.
Marina Lemle
A redação de História, Ciências, Saúde – Manguinhos ficou perplexa com os resultados da pesquisa do Ipea que revelou que 527 mil mulheres, adolescentes e crianças são estupradas por ano país e que 65% dos entrevistados entendem que as mulheres que mostram o corpo “merecem ser atacadas”. (Veja errata acima)
Para discutir o tema, convidamos as professoras da Universidade Federal de Santa Catarina Cristina Scheibe Wolff, do Laboratório de Estudos de Gênero e História, do Departamento de História, e Débora de Carvalho Figueiredo, doutora em Lingüística Aplicada com atuação na área de análise crítica do discurso.
Para Cristina Wolff, a concepção de que a roupa ou os gestos da mulher, ou mesmo o fato de ela andar pela rua, seriam responsáveis por “provocar” o estupro, é completamente equivocada. A professora considera a pesquisa do Ipea extremamente importante para que o governo, as universidades e as ONGs possam pensar novas estratégias e focos para as ações de prevenção e de atenção às pessoas violentadas – que são muitas e muito jovens.
“A pesquisa do Ipea dá visibilidade à realidade da violência sexual contra mulheres, adolescentes e crianças, que sempre foi ocultada ou silenciada em nossa sociedade”, afirma. Segundo Cristina, não há como saber se esta violência aumentou recentemente, mas nas pesquisas da história das mulheres, especialmente usando fontes judiciais, é possível ver que este tipo de crime acontecia frequentemente.
“Muitas vezes – ou até na maioria das vezes – a violência sexual tem como agressores pessoas da família, como pais, padrastos, tios, ‘amigos’ da família, empregados ou patrões e seus filhos, no caso de empregadas domésticas. Além disso, muitas vezes as vítimas são pessoas com deficiência física ou problemas mentais, como mostrou o belo estudo de Eva Gavron sobre Florianópolis nos anos 1964-1985”, diz.
Para Cristina, que foi coordenadora editorial da Revista Estudos Feministas, deve haver investimento na formação de professoras e professores, na mídia e na cultura, “já que a violência sexual é mais uma face das crenças machistas que pensam o corpo das mulheres e das crianças como ‘propriedade’ dos homens.”
“É o mesmo tipo de crença que leva a outras formas de violência, doméstica ou não, especialmente aquela violência psicológica que todas as mulheres vivem nas cantadas, nas piadas, nas ‘encoxadas’ em trens e ônibus, no salário menor para as mesmas funções, em tantas situações do cotidiano. Esta situação de violência e de desigualdade não é confortável para ninguém, nem para homens, nem, muito e menos, para as mulheres.”
Judiciário culpabiliza a vítima
Para a professora Débora Figueiredo, que também é advogada, a sociedade ainda é extremamente patriarcal, e esse modo de organização social se expressa no grau de liberdade e autonomia que homens e mulheres dispõem sobre como usar seus corpos e sua sexualidade.
“Essa lógica heteronormativa e sexista atribui aos homens uma sexualidade livre e quase ‘incontrolável’, enquanto as mulheres, construídas como sexualmente passivas, porém permanentemente tentadoras, devem se compor, em sua apresentação física e comportamento, de tal forma que não atraiam e nem provoquem a lascívia masculina. Desse prisma quase perverso, mulheres que não se comportam ‘adequadamente’ e se expõem demais merecem receber um ‘corretivo’ masculino, o estupro, por exemplo.”
Segundo Débora, que estuda questões de gênero, poder e identidade nos discursos profissionais, midiático e jurídico, essa rede de mitos patriarcais circula em vários discursos públicos, como o do judiciário, que também apresenta um alto nível de tolerância aos perpetradores de violência de gênero.
“Uma das noções mais prejudiciais ainda vigentes nos julgamentos e decisões judiciais é a de que o estupro é geralmente motivado pelas necessidades sexuais do agressor, muitas vezes somadas à precipitação – leia-se ‘provocação’ – da vítima. Essa forma de representação da violência de gênero frequentemente envolve a culpabilizaçao da vítima como ‘sedutora’, ‘imprudente’, ‘promíscua’ etc e pode gerar sentenças mais curtas ou a redução de sentenças para os agressores”, afirma Débora, autora do artigo Discurso, gênero e violência: uma análise de representações públicas do crime de estupro (no prelo).
Nada Leila Diniz
Para a antropóloga Mirian Goldenberg, o comportamento submisso das mulheres as torna cúmplices da violência que sofrem. “Não somos nada Leila Diniz. Quem dera se fôssemos”, disse ao site de O Globo na sexta-feira, 28 de março, quando a pesquisa foi divulgada. A seu ver, o problema não é o que a mulher veste, mas o fato de ser mulher. Mirian acredita que quanto mais mulheres fizerem suas revoluções, públicas ou privadas, mais mulheres serão livres: “Quanto mais mulheres não admitirem que um homem – ou outra mulher – controle sua sexualidade ou sua roupa, mais exemplos de libertação teremos.”
Jornalista protesta nas redes sociais
Inconformada com os dados da pesquisa, a jornalista Nana Queiroz lançou nas redes sociais o protesto virtual “Não mereço ser estuprada”, convocando mulheres a publicarem fotos como a dela, feita pelo marido, que apoia a campanha. Ameaçada de estupro através de comentários, a jornalista recebeu a solidariedade da presidente Dilma Rousseff.
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Edição “Gênero e Ciências” (v.15, supl.0, 2008)
E no blog de HCS-Manguinhos:
Ivana Stolze Lima critica pesquisa do Ipea sobre tolerância à violência contra mulher
Para historiadora, falta senso crítico em relação a pesquisas de opinião em geral.
A representação da mulher em revistas do início do século XX
Dissertação de mestrado de Priscila Cupello no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) debate a imagem da mulher.
Futuro das Moças: para instrução e deleite do “bello sexo”
Artigo de Elizabeth Sousa Abrantes publicado na Brasiliana USP
Saiba mais sobre a pesquisa do Ipea:
Errata do Ipea da pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”
Crianças e adolescentes são 70% das vítimas de estupro
Nota Técnica apresentada no Ipea analisou dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde
Sexo sem nexo
Coluna de Helena Celestino no Globo (2 de abril de 2014)
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Especialistas em gênero criticam crenças machistas evidenciadas por pesquisa do Ipea. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 1 April 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/especialistas-em-genero-criticam-crencas-machistas-evidenciadas-por-pesquisa-do-ipea/