Setembro/2021
Por Karine Rodrigues | Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Em um chuvoso dia de dezembro de 1949, Erving Goffman saltou de um dos barcos que fazia o trajeto entre a costa da Escócia e a ilha de Unst, no arquipélago de Shetland, nos confins do Reino Unido, com uma Leica e duas malas. Não estava interessado na grandiosidade das falésias e nem na imensa variedade de aves marinhas da região. A razão de estar ali era a comunidade de Baltasound, formada por cerca de 300 habitantes.
O que viu e registrou à época, durante o período que se prolongou até maio de 1951, originou a tese de doutorado defendida na Universidade de Chicago e baseou o primeiro e mais conhecido livro de Goffman (1922-1982): A representação do eu na vida cotidiana, na tradução para o português. A história da obra é reconstruída em artigo de Everardo Nunes, professor aposentado do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp), publicado na mais recente edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 28, n. 3, jul-set/2021), da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
O livro do canadense radicado nos Estados Unidos, que se tornaria um dos mais conhecidos sociólogos do século 20, deu muito o que falar. Em um período em que predominavam os estudos sociológicos macroestruturais, baseados nas investigações em nível mais amplo, de grupos, organizações e instituições, ele apresentou um modelo dramatúrgico ao realizar um estudo de abordagem microssociológica, na qual a sociedade é analisada no nível das interações diretas entre as pessoas, face a face.
Na obra, Goffman usa termos como palco, ator, plateia, cenário e observa que, nas interações, representamos papéis específicos para cada ocasião. “O relacionamento social comum é tratado tal como uma cena teatral, resultado da troca de ações, oposições e respostas conclusivas dramaticamente distendidas. Os textos, mesmo em mãos de atores iniciantes, podem ganhar vida porque a própria vida é uma encenação dramática”, escreve o sociólogo canadense.
“Passados mais de 60 anos do lançamento do livro, ele ainda se sustenta como uma grande obra. A dimensão que Goffman deu ao trabalho extrapola um campo específico do conhecimento. É um trabalho de originalidade ímpar, no conteúdo e na forma”, avalia Nunes, que mergulhou no Erving Goffman Archives – onde estão reunidos estudos bibliográficos, resenhas, críticas, coletâneas e entrevistas sobre o sociológico – para escrever The presentation of self in the every day life: biografia de um livro.
No texto, em que apresenta informações biográficas de Goffman e os principais desdobramentos que resultaram na produção e lançamento da obra, Nunes se apoia em uma definição do sociólogo russo radicado nos Estados Unidos Dmitri Shalin, codiretor do Erving Goffman Archives.
“A vida de Goffman é um excelente exemplo de bios-sociologicus – uma vida dedicada à ciência da sociedade, sem divisão nítida entre Goffman, o estudioso, e Goffman, o homem. Erving era um observador participante par excellence, constantemente explorando, experimentando, testando convenções sociais, traçando os limites da ordem da interação e irritando as pessoas que o rodeavam nesse processo”, diz citação de Shalin, reproduzida no artigo.
Nariz torcido para tese nada ortodoxa
No Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, Goffman encontrou inspiração em professores como Herbert Blumer (1900-1987) e W. Lloyd Warner (1898-1970), que acabou se tornando seu orientador e ficou deveras descontente com o resultado da tese Communication conduct in an island community, um calhamaço de 368 páginas que foca, em especial, nas observações feitas durante a temporada na ilha britânica. A epígrafe é de Georg Simmel (1858-1918), sociólogo alemão que lançou as bases da microssociologia.
“Considerado trabalho precursor de toda a sua obra, também foi desconcertante para seus examinadores, que esperavam um estudo comunitário tradicional”, escreve Nunes no artigo, citando um dos textos pesquisados. No lugar de estatísticas ou tipologias convencionais de estratificação, Goffman privilegiou o método qualitativo, lançando mão de instrumentos de coleta de dados com entrevistas ou observação participante. Como bem explicou o sociólogo Howard Becker em conferência realizada no Brasil, em 1990, para ele, Goffman e outros sociólogos formados na Escola de Chicago, “a unidade básica do estudo sociológico era a interação social”.
A primeira edição do livro saiu em 1956, pela Universidade de Edimburgo (Escócia), sob a forma de brochura, com o preço estampado na capa: dez xelins – um valor que atualmente, segundo Nunes, chega a US$ 2.500 dólares. Trazia como epígrafe uma citação do filósofo, poeta e ensaísta espanhol George Santayana (1863-1952): “Máscaras são expressões capturadas e ecos admiráveis de sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e excepcionais”.
No teatro da vida, técnicas de manipulação da impressão
Para o sociólogo canadense, filho de imigrantes russos, nascido em Mannville, em Alberta, com mestrado e doutorado pela disputada Universidade de Chicago, interessava compreender as formas como se davam as interações humanas, explica Nunes. Quais regras? Que papéis cada indivíduo desempenhava? Em A representação do eu, Goffman diz que, no dia a dia, as pessoas empregam técnicas de manipulação para tentar controlar a impressão que os outros têm de si, cita diversas situações coletadas em suas observações participantes e discorre sobre rupturas, atitudes protetoras, diplomacias, cinismos.
Descreve uma das técnicas que presenciou em Shetland, onde sempre que um vizinho chegasse para tomar uma xícara de chá, “comumente esboçaria, pelo menos, um sorriso caloroso e acolhedor ao passar pela porta do chalé”. Mas quem o observasse se aproximando para o compromisso, relata Goffman, muitas vezes, o veria substituir a expressão por outra mais sociável ao chegar à casa, numa técnica da manipulação da impressão.
No processo de socialização, acrescenta, as pessoas, ou os atores, tendem a oferecer aos seus observadores uma impressão que é idealizada de várias maneiras diferentes. Para exemplificar o impulso de tentarmos parecer melhores do que somos ou mostrar ao mundo um aspecto idealizado de nós mesmos, o autor cita outra situação ocorrida na ilha. “Habitantes de Shetland disseram-me que seus avós costumavam abster-se de melhorar a aparência da casa, com medo de que os senhores da terra tomassem tais melhoramentos como sinal de que poderiam extrair deles maiores rendas”.
E quando o indivíduo sente satisfação em realizar determinadas ações que se chocam com os padrões de representação que se espera dele? O caminho era ocultá-las, observou Goffman: “Descobrimos também que donas-de-casa de classe média muitas vezes empregam, de forma secreta e disfarçada, substitutos mais baratos para o café, o sorvete e a manteiga; deste modo podem economizar dinheiro, esforço ou tempo, e ainda assim manter a impressão de que o alimento que servem é de alta qualidade. As mesmas mulheres podem deixar na mesa da sala o Saturday Evening Post, mas guardar um exemplar do True Romance (‘A arrumadeira deve ter deixado isto por aí’), oculto no quarto de dormir”.
Contribuições à sociologia da saúde
Sociólogo especializado na área da saúde, Nunes destaca que Goffman inovou nas análises realizadas em hospitais psiquiátricos, que se tornaram referência em pesquisas sobre doenças e práticas em instituições de assistência à saúde. Em Asylums: essays on the social situations of mental patients and other imates, livro lançado em português, em 1974, com o título Manicômios, prisões e conventos, cria conceitos importantes: instituição total, “local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”; e carreira de paciente, trajetória percorrida pelo paciente, que inclui aspectos íntimos e públicos.
Na obra, Goffman relata sua experiência como pesquisador visitante no laboratório de estudos do Instituto Nacional de Saúde Mental, em Maryland, onde acompanhou a rotina em enfermarias; e o trabalho de campo como observador participante no Hospital St. Elizabeth Hospital, em Washington, primeiro grande hospital psiquiátrico dos Estados Unidos.
Aos 60 anos, então professor da Universidade de Pensilvânia, o sociólogo foi surpreendido por um câncer. Em texto no Le Monde, por ocasião da morte, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) escreveu que Goffman representava uma das “formas mais originais e raras de se praticar a sociologia: aquela que consiste em olhar de perto, e longamente, a realidade social”. Para ele, o canadense “fez a sociologia descobrir o infinitamente pequeno: aquilo mesmo que os teóricos sem objetos e observadores sem conceitos não sabiam perceber e que permaneceu ignorado por ser óbvio demais”.
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz
Leia na revista HCS-Manguinhos:
The presentation of self in the every day life: biografia de um livro, artigo de Everardo Nunes (HCS-Manguinhos, v. 28, n. 3, jul-set/2021)