Epidemia de Aids no Brasil: a história chegou ao fim?

Dezembro/2023

Vivian Mannheimer | Blog de HCS-Manguinhos

Richard Parker

Ao longo de mais de 40 anos, a resposta à epidemia de Aids teve altos e baixos significativos. Na década de 1990, o Programa Nacional de Aids foi reorganizado, com diálogo e colaboração significativos com a sociedade civil, e tornou-se um modelo para outros países, especialmente no Sul global. No entanto, nos últimos cinco anos, a degradação do programa brasileiro contra a Aids foi significativa e, com o desenvolvimento de tratamentos eficazes, muitas pessoas pensam agora que a epidemia terminou.

Essas e outras questões foram abordadas nesta entrevista com Richard Parker, pesquisador e professor do Departamento de Ciências Sociomédicas da Mailman School of Public Health da Columbia University e diretor da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).

Parker vê com preocupação o futuro do combate ao HIV e à Aids, seja no Brasil ou no mundo. Segundo ele, as condições atuais do mundo não sugerem que a Aids continuará a ser uma prioridade significativa para a comunidade global ou para o governo brasileiro.

Por que é importante discutir a história da Aids hoje no Brasil?

A história da Aids no Brasil me parece especialmente importante por uma série de razões. Talvez o aspecto mais importante e intrigante seja compreender por que razão a resposta à epidemia teve altos e baixos significativos ao longo de mais de 40 anos. No início da epidemia, o Brasil, como tantos países, foi muito lento em responder à nova epidemia emergente, e quando finalmente começou a responder, em meados da década de 1980, essa resposta estava intimamente ligada à redemocratização da vida brasileira após 20 anos de ditadura militar autoritária.

Na década de 1990, à medida que o espírito democrático se consolidava, o Programa Nacional de Aids foi reorganizado e atraiu o apoio do Banco Mundial (que, por sua vez, estava interessado em aumentar seu investimento em saúde e via o Brasil como uma grande oportunidade). Uma resposta governamental renovada à epidemia, com diálogo e colaboração significativos com a sociedade civil, tomou forma no final da década de 1990, após a implementação de um programa pioneiro de acesso ao tratamento que se tornou uma espécie de modelo para outros países, especialmente no Sul global. O sucesso do programa brasileiro continuou ao longo da década de 2000, mas na década de 2010 começou a mostrar sinais de fragmentação e falta de compromisso – problemas que continuaram de diferentes maneiras ao longo dos governos Dilma, Temer e especialmente Bolsonaro.

Durante os últimos cinco anos, a desintegração e o rebaixamento do programa brasileiro de Aids foram significativos (embora agora haja esperança de que o novo governo Lula irá gradualmente inverter esta situação, pelo menos parcialmente). Assim, examinar a história da Aids no Brasil pode nos ajudar a compreender tanto as condições que ajudam a criar respostas eficazes à epidemia quanto aquelas que levam a respostas ineficazes e contraproducentes. Mostra-nos que estas condições têm a ver com política e economia e que os fatores e influências nacionais e internacionais são importantes e ajudam a determinar o curso da epidemia.

Você está escrevendo um livro sobre esse assunto?

Sim, o livro em que estou trabalhando atualmente é na verdade um reflexo da resposta global à epidemia ao longo de quase 50 anos, mas devido ao meu envolvimento de longo prazo no trabalho sobre Aids no Brasil, uso a experiência brasileira como uma espécie de estudo de caso ampliado, no sentido que o sociólogo Michael Burawoy articulou. O que acontece no Brasil em diferentes períodos me ajuda a ilustrar e compreender o que acontece internacionalmente. Em particular, estou interessado em compreender como pensamos a epidemia do HIV ao longo do tempo e como as mudanças na compreensão da mesma moldaram as nossas respostas.

As formas como identificamos os diferentes fatores da epidemia conduziram a diferentes tipos de respostas, que variam ao longo do tempo e do espaço no Norte e no Sul, estando ligados a processos políticos e econômicos extremamente importantes – questões como a mudança da forma do capitalismo global, a crescente intensidade da globalização, a mudança do ambiente político do neoliberalismo e até de formas extremamente importantes, a ascensão e, em alguns casos, a queda dos regimes democráticos e dos princípios democráticos. Também foi moldada por diferentes abordagens à saúde coletiva – pelo que chamo de “imaginários de saúde pública”.

Muitas vezes pensamos na saúde pública como se fosse um tipo de ciência que não é influenciada por valores e compreensões culturais. Ainda assim, é importante reconhecer que a saúde pública também envolve formas de compreender o mundo que refletem diferenças culturais e políticas, e que isso nem sempre é o mesmo em todos os lugares. Estas diferenças levam a diferenças importantes na forma como as sociedades respondem às emergências de saúde pública e às novas condições de saúde pública emergentes. Por exemplo, as formas como a saúde pública ou a saúde coletiva no Brasil e noutras partes da América Latina conceituaram possíveis respostas à epidemia são muito diferentes de como a saúde pública nas suas versões norte-americana e europeia respondeu ao HIV e à Aids. Uma das principais coisas que estou interessado em tentar compreender é como os imaginários alternativos de saúde pública moldaram respostas muito diferentes em diferentes partes do sistema global. Então, o livro é sobre Aids no Brasil, mas também é sobre Aids no mundo e como a resposta ao HIV no Brasil foi moldada tanto por fatores globais e tradições históricas dentro do Brasil quanto dentro do imaginário de saúde coletiva.

Como você vê o futuro do combate à doença?

Infelizmente, devo dizer que não estou especialmente otimista quanto à futura luta contra o HIV e a Aids, seja no Brasil ou no mundo. Minha preocupação é que as condições atuais no mundo não sugiram que a Aids continuará a ser uma prioridade significativa para a comunidade global ou, nesse caso, para o governo brasileiro.

Quando a Aids surgiu pela primeira vez, na década de 1980, o mundo estava nos últimos anos da Guerra Fria e, após o seu fim, passou por um período de inovação e reequipamento significativos, utilizando os recursos que anteriormente tinham sido consumidos pela guerra, para tentar responder às questões de desenvolvimento global. Isso ajudou a tornar o HIV e a Aids uma verdadeira prioridade a nível mundial, e emergiu no final da década de 1990 como talvez o maior problema de desenvolvimento no mundo.

A intensificação da resposta global à Aids na década de 2000 foi o resultado dessa priorização, mas no final da década de 2000 começamos a ver outras questões emergindo como preocupações maiores. Por exemplo, após a crise financeira global de 2007 a 2009, e que se estendeu até à próxima década, vimos que o compromisso de continuar a luta contra o HIV e a Aids começou a desmoronar-se.

Sou especialmente crítico em relação à forma como surgiu uma narrativa do “fim da Aids”, de uma forma que na verdade encobriu o fim da expansão e uma redução na prioridade que as sociedades deram à resposta à epidemia. A maioria das pessoas já percebeu que a Aids não está prestes a acabar e que a luta para controlar a epidemia necessitará de compromissos significativos a longo prazo porque será um avanço lento, mas outras prioridades já surgiram, em parte devido à Covid-19, mas também em parte devido a outros acontecimentos importantes, como a guerra na Ucrânia.

Na verdade, o clima antidemocrático que atualmente parece expandir-se em todo o mundo e a crescente militarização, em alguns aspectos, assemelha-se a um regresso ao tipo da era da Guerra Fria, embora com novas circunstâncias e particularidades, pelo menos em relação a quando a epidemia surgiu pela primeira vez e foi muito difícil conseguir que as sociedades se organizassem para se mobilizarem para responder a ela.

Mas receio que nas atuais condições, com a ruptura das democracias liberais, o regresso a uma espécie de corrida aos armamentos entre grupos de países opostos e a falta de compromisso com questões como a justiça sanitária como uma prioridade real, signifique que será muito difícil reconstruir uma resposta eficaz à Aids, seja globalmente ou especificamente no Brasil. Ficaria muito feliz se se provasse que estou errado, mas estes são os tipos de questões que me preocupam quanto ao futuro da resposta à epidemia.

Hoje, como já existem tratamentos muito eficazes para a Aids, sendo possível “conviver com o vírus”, muita gente pensa que a epidemia acabou. É possível dizer que a epidemia chegou ao fim? E se não, quão perto estamos disso?

Aprecio esta pergunta sobre o fim da Aids porque me dá a oportunidade de ser um pouco mais específico sobre qual é a minha preocupação. Penso que é importante ter o que poderíamos chamar de “objetivos aspiracionais” em qualquer área de trabalho e, certamente, em relação à saúde coletiva e à saúde global.

Por essa razão, era importante, por exemplo, que a Organização Mundial da Saúde criasse o objetivo de “Saúde para todos no ano 2000” como um objetivo ambicioso que o sistema internacional deveria tentar alcançar – embora eu pense que a maioria as pessoas compreenderam, já em 1978, na conferência de Alma Ata, que era pouco provável que a “saúde para todos” fosse alcançada na data sugerida. Neste sentido, reconheço a importância de tentar estabelecer objetivos ambiciosos em relação a uma crise de saúde como HIV/Aids, e objetivos como o fim ou a cura da Aids são extremamente importantes.

Lembro-me do pequeno artigo que Herbert de Souza publicou no Jornal do Brasil no início dos anos 1990 chamado ‘A Cura da Aids’, no qual ele imaginava acordar um dia como uma pessoa vivendo com HIV para ouvir o anúncio que a cura da Aids havia sido descoberta, e como o mundo dele mudaria, como o nosso mundo mudaria, por causa dessa cura. Ele enfatizou a importância de continuar acreditando na possibilidade de cura porque isso nos ajuda a seguir em frente, lutar e viver diante de circunstâncias muitas vezes muito difíceis.

Mas uma meta aspiracional é diferente de uma promessa falsa. Neste mundo de slogans publicitários, num mundo de mensagens simplistas no Twitter, lamento dizer que penso que o fim da Aids foi tratado como uma promessa (e falsa!). Na verdade, tínhamos até uma data exata, 2030 , quando os objetivos de desenvolvimento sustentável terminassem. Foi-nos prometido que a Aids também acabaria, o que, claro, não vai acontecer. Portanto, o que me oponho não é o objetivo aspiracional; o que me oponho é que uma meta aspiracional seja tratada como um slogan publicitário.

Estou convencido de que, se algum dia quisermos reviver o tipo de abordagem à epidemia da Aids que tem alguma hipótese de realmente levar ao seu fim, precisamos começar a repensar a forma como abordamos a epidemia e regressar a uma priorização de direitos humanos e justiça social – questões que aparentemente foram esquecidas – em oposição a falsas promessas sobre soluções biomédicas. Acabar com a Aids exigirá mudanças sociais significativas, exigirá abordar a violência estrutural e as desigualdades sociais, que têm sido os verdadeiros impulsionadores da epidemia, e enfrentar as falsas promessas sobre o fim da Aids, como as soluções biomédicas produzidas pela indústria farmacêutica, que produzem grandes lucros para ela. Estes são os tipos de questões nas quais penso que precisamos de nos concentrar e tentar comprometer-nos se quisermos tornar realidade um progresso na reconstrução de uma resposta eficaz ao HIV e à Aids, seja no Brasil ou no mundo.

Leia a entrevista na versão original, em inglês

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