Junho/2013
Com a palavra… ANGÉLICA MÜLLER
Autora da tese A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à cena pública (1969-1979), que lhe conferiu os títulos de doutora em História pela Universidade de Paris 1/ Panthéon Sorbonne e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, Angélica Müller não concorda que o movimento estudantil tenha “acordado”, como tem se ouvido. Para ela, houve uma continuidade de ações de resistência por parte do movimento desde 1968, entre refluxos e momentos com mais manifestações.
Nesta entrevista ao blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Angélica, que é professora do Mestrado de História da Universo e pesquisadora-associada do Centre d’Histoire Sociale du XXème Siècle – Paris 1, mostra-se otimista de que o processo leve ao fortalecimento da democracia e a cidadania. “Espero que a ida à ‘praça pública’ leve esta multidão a constatar que não se trata de pautas individuais e sim de construir uma pauta coletiva”, diz.
Tendo pesquisado o movimento estudantil para o seu doutorado, percebe algo de diferente nos protestos que ora se espalham pelo país em relação às manifestações anteriores?
É difícil comparar tempos históricos distintos, mas acabamos por identificar semelhanças e rupturas entre eventos. O primeiro ponto que acho que merece destaque e que vimos muito as pessoas falarem é que finalmente o movimento estudantil acordou. Alguns falavam que a juventude não se revoltava como agora desde o Fora Collor, em 1992, ou mesmo desde 1968. Particularmente eu sou contrária a este tipo de pensamento. Aliás, disto se trata a tese que defendi, sobre outro contexto. Nela defendo que houve uma continuidade de ações de resistência (com autocríticas e rupturas de pautas e pensamentos) por parte do movimento estudantil no imediato pós 1968 (incluindo aí todos os anos considerados de “chumbo”) que acabaram por permitir que o movimento estudantil fosse o primeiro ator político a sair às ruas em 1977 lutando pelas liberdades democráticas.
É claro que, como ao longo de toda a história, nós temos momentos de refluxos e momentos mais candentes em termos de manifestações políticas. Desde a década de 1950, os estudantes lutam pela redução do preço das passagens. Basta lembrarmos de um episódio que ficou conhecido como a greve dos bondes, em 1956, em que os estudantes, principalmente os secundaristas, realizaram no Rio de Janeiro, então sede da República, uma série de manifestações pela redução do preço dos bondes. Nos anos 1990, essas manifestações aconteceram em séries por várias partes do país; vale lembrar especialmente uma grande mobilização na Bahia em 2003.
Depois de um grande evento como o Fora Collor, houve um refluxo natural, mas não a completa inércia do movimento, que continuou pautando greves nas universidades federais como em 1997, os protestos contra o Provão no governo do FHC e as manifestações já pelo Passe Livre em 2007, para citar alguns exemplos.
Este Movimento pelo Passe Livre não aflorou agora. Aliás, como citei, esta é uma bandeira bem antiga do movimento estudantil. O que mudou agora foi a maneira como estas manifestações passaram a acontecer. Se pensarmos no Fora Collor, ou no movimento das Diretas Já, ou até mesmo nos acontecimentos de 1968, nestas, encontraremos uma liderança, que coordenava e dava o tom das manifestações, ligada a partidos políticos e, majoritariamente, quando se tratava de estudantes, à UNE e as entidades do movimento estudantil. O que vemos hoje, principalmente na cidade de São Paulo, é um movimento ligado a uma ideologia de esquerda, certamente, mas que não é sobreposta pelas lideranças partidárias nem as clássicas organizações do movimento estudantil.
Outra questão é, sem dúvida, o uso das redes sociais.
É possível dimensionar a importância deste momento/movimento para a história do Brasil? O que deve mudar daqui para frente?
É possível afirmar a importância destes eventos para história do país. Entretanto, ainda não é possível mensurá-los, até porque estão em curso e apresentando mudanças consideráveis, como vimos na manifestação de quinta-feira, 20 de junho. Se a manifestação da segunda-feira, 17, cuja pauta do Movimento Passe Livre serviu de interlocução com os governos redundando na baixa dos 20 centavos das passagens de ônibus em vários lugares do país, o que vimos no dia 20, pelo menos aqui na cidade do Rio de Janeiro, foi uma pulverização maior (que já estava acontecendo) das reivindicações mas, principalmente, a inserção de grupos organizados com bombas para acabar não só com a participação dos movimentos sociais e partidos que empunhavam suas bandeiras, como também para esvaziar a própria manifestação.
As principais palavras de ordem vindas dos movimentos sociais eram concentradas na “unidade de lutas”, enquanto boa parte da multidão gritava: “sem partidos”, “Cabral ditador”, “não à violência” e “Rede Globo apoiou a ditadura”. A maneira, a velocidade e a multiplicidade destes movimentos requer um grande esforço analítico não somente pela novidade desta linguagem mas principalmente pela sua significação. Por um lado, o esforço da academia nesta compreensão. Por outro lado, principalmente, dos partidos políticos e movimentos sociais que devem aprender a lidar com esta linguagem. Na conjuntura posta, ninguém está apostando numa saída, muito menos prevendo o que deve mudar. Sinceramente, acho difícil prever o que vai acontecer.
Vimos a grande mídia mudar de posição em questão de dias. Por que isso?
Parece-me que também já vimos acontecer isso em outros momentos. O esforço para não cobrir as manifestações das Diretas Já por parte da Rede Globo já foi até caso de estudos e retratação da própria, anos mais tarde. O episódio do Fora Collor inicialmente teve o mesmo tipo de percepção: que eram vândalos a invadir as ruas. E depois se configurou na grande cobertura das passeatas. O mesmo aconteceu agora. Os manifestantes do Passe Livre já estão há algum tempo nas ruas e as manifestações organizadas, que já vinham num crescente, eram apresentadas como “arruaças de vândalos”, de “manifestantes que não valem 20 centavos”, como disse Jabor. Depois de quinta-feira passada, quando a violência da polícia entrou forte mudando a dimensão do movimento, atingindo jornalistas e levando a questão para fora do país, ocorre uma mudança na postura da mídia, que está apostando (não somente para “vender mais editoriais”) no canal da violência com o objetivo não somente de desqualificar o movimento mas também o próprio governo.
Você acredita que o povo brasileiro esteja despertando para a cidadania? O que espera dos protestos?
Não partilho da ideia do “gigante despertando” como já falei. Mas creio que momentos como esse são ricos para um país que carece da formação de uma cultura política, como o Brasil. Os jovens hoje têm uma oportunidade muito maior, que a internet permitiu, de se informar, de saber das notícias do mundo todo em tempo real. E mais, de partilhar suas impressões em rede. Não sou uma estudiosa destas questões, mas me parece que este foi o momento escolhido também para externar, agora em “praça pública”, o que se vivia/discutia em redes. Quando cheguei na concentração da manifestação no IFCS/UFRJ, vieram me oferecer para portar um cartaz, ou ainda, escrevê-lo com uma frase que “me representava”. Ora, para mim essa é a maneira de externar a individualidade em detrimento do coletivo. É dizer esta é a “minha pauta”. Espero que a ida à “praça pública” leve esta multidão a constatar que não se trata de pautas individuais e sim de construir uma pauta coletiva. É nesse processo que acredito que ocorra o aprofundamento da democracia e da cidadania.
É possível relacionar os protestos no Brasil com as manifestações que estão ocorrendo na Europa e em outros lugares do mundo?
Acredito que mais em termos de dinâmica, pois os contextos são bem diferentes. A mobilização feita pelas redes sociais é ponto que une todos esses movimentos e isso ainda é uma novidade para os pesquisadores. Talvez um link que pudesse ser estabelecido entre nosso movimento e o que está ocorrendo paralelamente na Turquia fosse a questão dos cidadãos e sua relação com as cidades (a questão da urbanização, mobilidade, modos de viver, ecologia), sempre guardando as devidas proporções. O que difere crucialmente nosso “quente outono” brasileiro da primavera árabe é que nós vivemos numa democracia, por mais incompleta e incipiente que esta ainda seja.
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