Arlene A. B. Gazêta* | História Viva
A história da saúde pública no Brasil está intimamente relacionada ao papel social e político que a varíola desempenhou na estruturação e orientação das políticas de Estado. A importância da enfermidade e os esforços para o seu combate contribuíram para criar um grande e importante capítulo dessa trajetória. A varíola foi introduzida no Brasil pelos “descobridores” europeus. Com o processo de colonização, a doença foi se disseminando. A primeira referência foi feita por José de Anchieta, em 1561, e a primeira epidemia registrada data de 1563. A vacina chegou ao Brasil em 1804.
No período colonial, inexistiam ações de saúde pública para o combate à doença, mas, a chegada da corte ao Brasil, em 1808, propiciou importantes mudanças nas instâncias sociopolíticas, econômicas e sanitárias do país. O Rio de Janeiro, sede do Império português e principal porto do país, tornou-se centro de intervenções sanitárias. Ainda naquele ano, foi criada a primeira instância voltada para a saúde pública no Brasil, a Provedoria-Mor de Saúde, responsável pela salubridade da corte e pela fiscalização dos navios. Pela relevância que a varíola adquiria, D. João criou a Junta Vacínica da Corte, no ano de 1811, responsável pela vacinação jenneriana (base da imunização atual, desenvolvida por Edward Jenner, o “pai” da imunologia).
Após a Independência, os serviços de saúde passaram a ser da competência das câmaras municipais – atendendo à proposta de descentralização do poder – que, em conjunto com as iniciativas particulares, estimularam a criação de instituições locais para o controle da varíola.
A obrigatoriedade da vacina foi, pela primeira vez, estabelecida no município do Rio de Janeiro, em 1832, pelo Código de Posturas. A não vacinação se tornou passível de multa. Em 1846, foi criado o Instituto Vacínico do Império, órgão central que atuava nas localidades e era responsável pela vacinação na corte. Também foi estabelecida a obrigatoriedade da vacinação em crianças de até 3 meses e em grupos determinados, exigindo-se o atestado de vacinação para a admissão em algumas instituições.
Em meados do século XIX, o crescimento dos processos epidêmicos (varíola, febre amarela, tuberculose, por exemplo) levou o governo imperial a centralizar as poucas ações de saúde pública existentes no país na Junta de Higiene, criada em 1849. Inicialmente proposta para o controle da febre amarela, ela ampliou suas atividades, passando, em 1851, a denominar-se Junta Central de Higiene Pública. Porém tais medidas não mudaram o quadro da varíola no país, gerando um questionamento da eficiência da vacina. Com a criação da Inspetoria Geral de Higiene, em 1886, a vacinação antivariólica ficou sob a responsabilidade desse órgão e das inspetorias nas províncias.
Mesmo com a introdução da vacinação braço a braço, em 1804, e com o uso da vacina produzida em vitelos (pele de bezerros), desde 1887, a doença continuava a produzir epidemias no século XIX. Naquele ano, a vacina animal, mais eficiente do que a vacina jenneriana, chegou ao Brasil, e sua produção e distribuição foi iniciativa do médico Pedro Affonso Franco, que estruturou um serviço de vacinação na Santa Casa de Misericórdia.
O desenvolvimento urbano das capitais, a ocorrência de epidemias e a preocupação com a manutenção da vinda de imigrantes para a agricultura cafeeira determinaram, em 1886, a “Reforma Mármore”, que instituiu o Conselho Superior de Saúde Pública, formado pela Inspetoria Geral de Higiene e pela Inspetoria de Saúde dos Portos.
Com a República, a saúde pública seria alvo de uma reforma que daria origem à Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), criada em 1896 com o objetivo de melhorar os serviços de saúde na capital e nos portos, locais centrais para a obtenção de mão de obra e exportação de produtos agrícolas.
O combate à varíola, no final do Império, dependia da vacina jenneriana. Entretanto, no início da República, em 1892, foi criado um instituto exclusivamente voltado para a produção da vacina antivariólica, o Instituto Vacínico Municipal, que, até a década de 1920, seguiria atuando.
Ainda que o uso da vacina de forma compulsória estivesse instituído desde 1837, as leis não eram cumpridas, fosse pela inexistência de vacina suficiente para toda a população ou pela resistência ao produto. Nos primeiros anos do século XX, a ampliação da vacinação antivariólica fez parte de uma série de medidas de saúde pública no contexto de transformações do Rio de Janeiro. A remoção de cortiços, a drenagem dos mangues e a canalização dos esgotos foram algumas delas. Em março de 1903, em meio às medidas postas em marcha pelo presidente Rodrigues Alves, o médico cientista Oswaldo Cruz foi indicado para a chefia dos serviços sanitários da República. Seus principais alvos eram a febre amarela, a varíola e a peste bubônica – doenças que surgiam de forma epidêmica a cada ano, causando milhares de mortos, principalmente entre os imigrantes.
Depois de ter posto em prática medidas inovadoras contra a febre amarela, Oswaldo Cruz se voltou para a varíola, propondo a reafirmação da obrigatoriedade da vacina. Naquele momento, a questão era controversa, pois não existia consenso médico sobre a eficácia do método. Ademais, o projeto foi duramente criticado pelos afiliados ao “Apostolado Positivista”, que discordavam do caráter coercitivo da proposta, apontado como cerceamento do direito individual. Em virtude da grita geral, a obrigatoriedade foi suprimida da redação final do projeto. No ano seguinte, o surgimento de novos surtos fez com que uma nova proposta, visando à obrigatoriedade da vacinação e revacinação, fosse aprovada. Na regulamentação, foram prescritas multas aos rebeldes e a exigência do atestado de vacinação para matrículas nas escolas, empregos públicos, casamentos, viagens e outras situações. Em novembro de 1904, o regulamento se tornou público, causando uma intensa agitação que tomou as ruas do centro do Rio, incentivada pelo Centro das Classes Operárias, pelo Apostolado Positivista e pela Liga Contra a Vacinação Obrigatória.
Misto de rebelião popular com tentativa de golpe, o movimento reuniu monarquistas, líderes operários e oficiais do exército. Em 10 de novembro, começaram as agitações. Rapidamente, as manifestações nas praças do centro se transformaram em brigas com a polícia e em quebra-quebras. Um grupo de revoltosos entrincheirou-se no bairro da Saúde. Em 15 de novembro, uma revolta planejada por oficiais do exército agravou o caos em que já se encontrava a cidade. O confronto foi tão forte que o governo se viu impedido de retornar à questão da vacina obrigatória. A revolta deixou um saldo de muitos mortos e feridos, e centenas de revoltosos foram enviados para o Acre. A resistência à vacina propiciou o surgimento de novas epidemias nos anos posteriores.
Na segunda metade da década de 1910, os problemas deixados pela Primeira Guerra Mundial e pelo efeito devastador da pandemia da gripe espanhola, de 1918, colaboraram para que a saúde pública passasse a ocupar lugar de destaque nos debates. Esse período foi marcado por um pensamento nacionalista que passou a ver o abandono e as precárias condições de saúde das regiões interioranas como principais causas dos problemas da nação. Iniciada como uma campanha contra as verminoses e a malária, a luta pelo saneamento rural acabou por legar ao país a criação do primeiro órgão centralizado e permanente de saúde, o Departamento Nacional de Saúde (DNSP), criado em 1919.
O seu primeiro diretor foi o médico, cientista e diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Chagas. No campo do combate às grandes epidemias, o órgão passou a se responsabilizar pela produção de soros, vacinas e outros medicamentos. Nesse momento, a principal medida, além da obrigatoriedade da vacinação, foi a transferência da produção da vacina no Rio de Janeiro, do Instituto Vacínico, para o Instituto Oswaldo Cruz.
A década de 1920 marca um forte decréscimo na incidência de novos casos, com diminuição da gravidade e da capacidade de transmissão. A maior aceitação da vacinação e a consequente diminuição dos casos levaram o Estado brasileiro a conferir valor limitado à doença, que deveria ser combatida pela ação rotineira da vacinação.
O final da década de 1920 foi um período de profundas mudanças no cenário nacional, culminando, em 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência. Nos anos seguintes, a saúde se transformou, passando a englobar interesses de diversos grupos, se aproximando da proteção social de forma que marca o setor no país até hoje. Nesse período, foi canalizado um projeto de construção nacional voltado para a valorização do trabalho e do operariado urbano e, no âmbito geral, para a integração nacional. Ainda em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp), que se dividia em dois setores: o Departamento Nacional de Educação e o Departamento Nacional de Saúde.
* Arlene A.B. Gazêta é doutora em História das ciências e da saúde pela Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz
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Fonte: História Viva
Leia em HCSM:
– ‘Alastrim, varíola é?’, artigo de Luiz Antonio Teixeira. v.7, n.1, 2000.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000200003&lng=pt&nrm=iso
– Vacina antivariólica: visões da Academia de Medicina no Brasil Imperial, artigo de Tania Maria Fernandes. v.11 (suplemento 1), 2004.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702004000400008&lng=pt&nrm=iso
– A epidemia de varíola e o medo da vacina em Goiás, artigo de Eliézer Cardoso de Oliveira. v.20, n.3, 2003.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702013000300939&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt