Abril/2019
Marina Lemle / Blog de HCS-Manguinhos
“Muito pode ser feito para tornar o sistema de saúde indígena brasileiro menos caro melhorando a gestão e a governança. Mas é preciso haver a compreensão de que o custo da saúde indígena sempre será maior do que o da população em geral, por causa da sua complexidade e a distância.” A fala é de Alex Shankland, do Institute of Development Studies, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, que participou da Conferência Internacional “Como Ciência e Tecnologia Podem Contribuir para a Redução da Pobreza e da Desigualdade”, realizada no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, de 27 a 29 de março. A conferência foi organizada pela Academia Brasileira de Ciências, que coordena o Comitê Ciência pela Erradicação da Pobreza do InterAcademy Partnership (IAP), uma rede global de academias de ciências e de medicina.
Na sua apresentação, intitulada “Equidade e universalidade em tensão: o caso da saúde indígena”, Shankland explicou que a Constituição do Brasil de 1988 garante a todos os cidadãos o direito à saúde, e também garante aos povos indígenas o direito à autodeterminação cultural. Segundo o pesquisador, o Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil, criado no mesmo ano, tornou-se um modelo global para a realização rápida e econômica da cobertura universal de saúde – resultado da inovação local em modelos de atenção primária.
Ele acrescentou que, para combater as iniquidades em saúde que afetam os povos indígenas, o Brasil criou um subsistema de saúde indígena no SUS, visando a cobertura dos seus territórios. Porém, apesar de adotar as mesmas estratégias e programas que o SUS como um todo, seu desempenho ficou para trás, o que levou a um intenso debate político, a ondas de protestos indígenas e agora a uma proposta de dividir a atenção prestada pelo subsistema entre diferentes modelos regionais, com cortes orçamentais e transferência de algumas responsabilidades para as Secretarias Municipais de Saúde.
Para Shankland, o fraco desempenho do subsistema de saúde indígena não pode ser explicado apenas por corrupção – que, segundo ele, pode existir, mas é insuficiente para explicar esse nível de fracasso.
“Realizar os direitos indígenas de saúde requer enfrentar desafios complexos que não se encaixam no modelo de implantação de pacotes padrão. Os territórios indígenas são muitas vezes remotos, sua epidemiologia e suas sociedades são pouco compreendidas e suas relações políticas com as sociedades majoritárias são marcadas por desigualdades de poder e, muitas vezes, por conflitos”, afirmou.
Segundo Shankland, essa complexidade significa que os custos per capita sempre serão mais altos do que na prestação de serviços aos pobres urbanos. “Acredito ser possível atingir os mesmos ou melhores resultados com menos dinheiro, mas ainda iria custar mais do que prover programas ou pacotes padronizados como os para a população em geral. Mas estes programas não estão mais atendendo a população em geral, com o aumento da complexidade e a mudança social rápida. Então o que todos precisamos aprender é como fazer a saúde ser mais adaptável, mais preparada a lidar com a complexidade, mais responsiva e local”, disse o pesquisador, em entrevista após a mesa que participou.
Ele acrescentou que onde o sistema “branco” de saúde não está presente, o que acontece em muitos lugares na maior parte do tempo, os indígenas têm seus próprios recursos, mas estão vulneráveis a vários problemas de saúde e determinantes sociais que a medicina indígena não está equipada para lidar. “Há uma necessidade tanto de recursos biomédicos quanto de preservação da enorme riqueza do conhecimento médico indígena”, afirmou.
De acordo com Shankland, o princípio de se trabalhar com a cultura está na política brasileira de saúde indígena e não é algo novo. “É algo que todos sabem que deve ser feito, e só depende de as pessoas terem os incentivos certos e treinamento adequado, e serem respeitadas e entendidas como cidadãos conhecedores, com seus próprios entendimentos sobre saúde, que são válidos e são recursos para eles e para nós”, enfatizou.
O pesquisador enumerou motivos que reforçam a importância dos povos indígenas e seus territórios para o alcance, até 2030, de diversos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 21 das Nações Unidas: territórios de comunidades indígenas e tradicionais também protegem as reservas de biodiversidade mais importantes do mundo (ODS 15) e fontes de água doce (ODS 6); assegurar que os indígenas mantenham acesso e controle sobre esses territórios e sejam capazes de levar uma vida saudável dentro deles é um requisito fundamental para a redução da desigualdade (ODS 10).
Vozes Desiguais – Brasil e Moçambique
No Brasil, o Institute of Development Studies tem trabalhado na melhoria do acesso dos povos indígenas aos serviços de saúde há mais de uma década, colaborando com agências governamentais, instituições de pesquisa, movimentos de povos indígenas, grupos da sociedade civil e profissionais de linha de frente, e, mais recentemente (2016-2018), através do projeto Vozes Desiguais / Unequal Voices, financiado pelo Economic and Social Research Council (ERSC) e o Departament for International Development (DFID) do Reino Unido.
O projeto Vozes Desiguais tem esse nome porque os dois países estudados – Brasil e Moçambique – têm a mesma língua – português – mas são muito diferentes. A pesquisa é realizada pelo IDS em parceria com a ONG moçambicana N’weti, a instituição de pesquisa moçambicana Kula Estudos e Pesquisas, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento–Cebrap e a ONG brasileira Associação Saúde Sem Limites–SSL. Os pesquisadores investigam as relações entre a trajetória das desigualdades em saúde sob diferentes condições políticas e institucionais. Para tanto, buscam identificar – tanto em centros urbanos quanto em áreas rurais no Brasil e em Moçambique – as dinâmicas eleitorais, de gestão pública e de participação social que têm contribuído para a redução das desigualdades em saúde.
“Moçambique é bem mais pobre que o Brasil, mas o que os pesquisadores perceberam é que podem aprender muito entre si sobre como melhorar o alinhamento entre sistemas de gestão e a participação popular no sistema de saúde e as políticas em torno da alocação e gestão de recursos. Mas sobretudo na gestão da saúde pública é preciso locar a tomada de decisões no mesmo nível da participação dos cidadãos e um certo nível de mobilização social para garantir que os recursos sejam bem usados e as prioridades atingidas”, disse.
Shankland conta que, na cidade de São Paulo, onde estudaram com o Cebrap as dinâmicas de redução das desigualdades em saúde, observou-se uma correlação forte entre competição política, com diferentes partidos querendo mostrar aos pobres que eram capazes de prover as suas necessidades em saúde para obter votos, com os arranjos na terceirização de organizações sociais e a forma como reorganizaram municipalidades para ter participação social em diferentes níveis. “Quando os dois sistemas de accountability trabalham juntos, com sinergia, há muito bons resultados e se consegue reduzir inequidades”, afirmou.
Já em Moçambique, onde as decisões são feitas em Washington, por agências internacionais de apoio financeiro, e não pelo governo ou a população local, costuma haver erros de prioridade na provisão de serviços de saúde, explicou o pesquisador. “É chave a questão sobre em que nível são tomadas as decisões e quem está envolvido nas tomadas de decisão para trazer os sistemas de saúde para mais perto das pessoas e para resolver as suas prioridades em saúde”, ressaltou.
Além de buscar gerar avanços conceituais e metodológicos, o projeto também investe em conexões e espaços de colaboração entre grupos que estudam, formulam e implementam políticas públicas de saúde no Brasil e na África meridional, promovendo interações constantes entre especialistas e gestores públicos. Os primeiros resultados do estudo do projeto Vozes Desiguais sobre o subsistema de saúde indígena foram apresentados por Shankland e por Luciana Benevides, da SSL, numa sessão organizada pelo GT Saúde Indígena, coordenada por Ana Lúcia Pontes da ENSP, no Congresso Abrascão de 2018.
Como citar este post:
Direitos indígenas de saúde: desafios complexos. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado e acessado em 19 de abril de 2019. Disponível em www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/direitos-indigenas-de-saude-desafios-complexos/
Leia em HCS-Manguinhos:
Aspectos socioculturais de vacinação em área indígena, artigo de Luiza Garnelo (vol.18, n.1, mar. 2011)
Do suplemento sobre a Amazônia (v.14, supl.0, dez. 2007), destacamos:
- O povo das águas pretas: o caboclo amazônico do rio Negro, artigo de Fernando Sergio Dumas dos Santos
- Cosmologia, ambiente e saúde: mitos e ritos alimentares Baniwa, artigo de Luiza Garnelo (versão também em inglês)
- Bahsariwii: a Casa de Danças, artigo de Gabriel Gentil
- Marcus Barros fala sobre meio ambiente e doenças tropicais na Amazônia, artigo de Stella Oswaldo Cruz Penido
- Koame wemakaa pandza kome watapetaaka kaawa (Baniwa, uma história de plantas e curas): caminhos para um roteiro, artigo de Stella Oswaldo Cruz Penido
- As plantas que curam e as ‘qualidades do ser’: sobre ontologia e alteridade ameríndia, artigo de Marco Antonio Gonçalves
- O mundo e o conhecimento sustentável indígena, artigo de André Fernando