Rafael Lopes Paes | Biblioteca Virtual História da Fome, Pobreza e Saúde

Selo do Dia Mundial da Alimentação, Brasil, 1981. Fonte: Wikipedia
O Dia Mundial da Alimentação (World Food Day) foi celebrado pela primeira vez em 16 de outubro de 1981, com o tema “A Comida Vem Primeiro” (Food Comes First). A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) com o objetivo de chamar atenção para os problemas da fome e da má distribuição de alimentos em escala global (Baixe a publicação Food Comes First, FAO, 1981)
O Brasil nos anos iniciais da celebração
A data chegou em um Brasil mergulhado em uma crise econômica e em um grave quadro de secas, que já se prolongava havia anos nas regiões Norte e Nordeste. Somavam-se a isso o agravamento da desigualdade social e as limitações constitucionais, que restringiam a assistência social a dimensões específicas, sem contemplar a alimentação como um direito. É nesse cenário que o Dia Mundial da Alimentação foi celebrado em seus anos iniciais, revelando diferentes enfoques e apropriações da data por diversos atores políticos e sociais.
O Brasil no início dos anos 1980 ainda estava submetido à Constituição semi-outorgada pelo regime militar em 1967, modificada pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que não estabelecia a alimentação como direito social. É verdade que o texto constitucional já reconhecia alguns grupos vulneráveis como dignos de assistência social: previa assistência à maternidade, infância, adolescência e casos de invalidez, mas sem estruturar uma rede universal de proteção e limitando essa assistência à saúde e à previdência. A ausência de reconhecimento constitucional do direito à alimentação condicionava as respostas políticas e sociais do período.
Somente em 1988, com a Constituição Cidadã, a assistência social foi definida como direito de todos pelos artigos 203 e 204, e a alimentação somente se tornaria formalmente um direito social em 2010 pela Emenda Constitucional nº 64.
No Rio de Janeiro, discurso técnico-científico; em Pernambuco, denúncia social
Nos primeiros anos de comemoração, diferentes setores da sociedade mobilizaram a data para dar visibilidade a perspectivas distintas sobre o problema da fome.
No Rio de Janeiro, a mídia destacou um discurso técnico-científico: instituições e especialistas destacaram a importância da agroindústria, da ciência e da tecnologia como caminhos para enfrentar a insegurança alimentar. Conferências e debates ressaltaram o papel da modernização agrícola e da pesquisa científica, ao mesmo tempo em que se apontavam contradições do modelo agrícola voltado para exportação. Ações educativas, como hortas em escolas e hospitais, buscaram envolver a população em práticas de produção e consumo solidário.
Em Pernambuco, houve ênfase na denúncia social. A data tornou-se espaço de mobilizações populares conduzidas por entidades como sindicatos e as Comunidades Eclesiais de Base (CEB). O minuto de silêncio proposto nos jornais em memória das vítimas da fome expressava simbolicamente a gravidade da situação em meio à seca prolongada, ao desemprego e à desigualdade no campo. Nessas manifestações, a fome era tratada como resultado da concentração de terra e da ausência de políticas públicas efetivas.
Convergências e tensões
Apesar das diferenças regionais, havia um ponto de convergência: a fome não era vista apenas como escassez de alimentos, mas como problema de acesso, distribuição e desigualdade. Os discursos técnicos, ao apontarem falhas no modelo de produção, e as manifestações populares, ao denunciarem as injustiças sociais, expressavam uma percepção de fundo em comum de que a fome era uma questão social e política. Entre a técnica, a denúncia e a exaltação agrícola, a data expôs tanto as tensões do período quanto a ausência de um marco legal capaz de consolidar a alimentação como direito.
Saiba mais sobre discursos sobre fome e alimentação na revista HCS-Manguinhos:
Fome, um objeto da história?, resenha de Rômulo de Paula Andrade (História, Ciências, Saúde — Manguinhos, 29, n. 4, 2022) sobre o livro El hambre de los otros: ciencia y políticas alimentarias en Latinoamérica, siglos XX y XXI, de Stefan Pohl-Valero e Joel Vargas Domínguez (Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2021)
Josué de Castro e as metamorfoses da fome no Brasil (1932-1946), artigo de Adriana Salay Leme (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 28, n. 4, out/dez 2021)
Pobreza e assistência no Rio de Janeiro na Primeira República, artigo de Claudia Maria Ribeiro Viscardi (História, Ciências, Saúde — Manguinhos, v. 18, supl. 1, 2011)
Fome, eugenia e constituição do campo da do campo da nutrição em Pernambuco: uma análise de Gilberto Freyre, Josué de Castro e Nelson Chaves, artigo de Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos (História, Ciências, Saúde — Manguinhos, v. 8, n. 2, 2001)
Gênese e constituição da educação alimentar: a instauração da norma, artigo de Eronides da Silva Lima (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 5, n. 1, 1998)
Leia também no Blog de HCS-Manguinhos:
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