Novembro/2015
Blog de HCS-Manguinhos
Maior tragédia ambiental da história do Brasil de acordo com a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco, em Mariana (MG), em 5 de novembro, traz danos visíveis e imprevisíveis às populações, à fauna e à flora dos mais de 600 quilômetros que o Rio Doce percorre até chegar ao mar, assim como à vida marinha, agora também brutalmente atingida. Para refletir sobre o que este desastre representa para a história ambiental do Brasil, o Blog de HCS-Manguinhos convidou Jó Klanovicz, professor de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, no Paraná.
Para Klanovicz, é preciso pensar os desastres ambientais numa dupla dimensão que aproxima elementos naturais e sociais. “No caso de Mariana, o desastre está intimamente ligado a interesses e a escolhas políticas, tecnológicas e sociais feitas no passado, que se repetem em quase todo o território brasileiro, na sua busca pela modernização e pelo progresso econômico ou industrial a qualquer custo”, afirma.
O desastre ambiental de Mariana é o pior que o Brasil já teve? Podem ser traçados paralelos com episódios anteriores?
Certamente ele é o maior se levarmos em conta o rastro de intoxicação das águas do rio Doce, que já se estende por 600 km, e que em duas semanas passou de ser um incidente entre aspas circunscrito a um distrito do interior de Minas e agora alcança o litoral do Espírito Santo. Ele é o maior em consequências para a flora e fauna fluviais do rio Doce, um rio que desempenhou papel preponderante no desenvolvimento da economia brasileira ao longo de todo o século XX. Ele tem consequências profundas para a economia, para a política, para as populações ribeirinhas, para pescadores, industriais e agricultores que dependem das águas do rio. Mas em número de vítimas humanas contabilizadas ainda não supera as enchentes de 1983 em Santa Catarina, que deixaram quase 200 mil desabrigados e 50 mortos ou os deslizamentos de Ilhota no mesmo estado, em 2008, com mais de 100 mortos, os deslizamentos do Rio de Janeiro em 2011 ou ainda as enchentes do Rio em 1967, com estimativa de mais de 1700 mortos.
A diferença fundamental é que estamos agora tratando de um desastre profundamente diferente em sua gênese, ligado à tecnologia, ao represamento de rejeito de mineração, que é a terceira maior atividade industrial brasileira, mas especialmente vinculado às escolhas que foram feitas no passado em termos tecnológicos, econômicos, políticos e sociais no que tange à industrialização. Na era da grande aceleração – esse período inaugurado nos anos 1950 e que alterou radicalmente as relações entre humanos e o mundo natural – empresas como a Samarco estabeleceram-se fortemente na exploração de ferro em um Brasil ávido por se desenvolver do ponto de vista econômico e técnico, independentemente da política.
Mineração de ferro, como qualquer outra atividade moderna de mineração, representa uma tecnologia de força bruta, ou seja, aquela que radicalmente busca controlar o mundo natural para extrair dali não apenas recursos, mas um todo ordenado, administrado, racionalizado, e, por assim dizer, industrializado. Paul Josephson nos lembra que a tecnologia de força bruta está diretamente ligada à política de força bruta, aquela que direciona intensamente a atenção e a pressão em torno do crescimento econômico, do controle de pessoas e da natureza. Nesse sentido, o desastre de Mariana certamente é o maior e ainda de consequências visíveis, porém imprevisíveis.
Como a história ambiental pensa desastres como este?
O ponto de partida fundamental é pensar os desastres numa dupla dimensão que aproxima elementos naturais e sociais. Contrariamente à crença de que há desastres ‘naturais’, uma história ambiental preocupada com desastres leva em conta que sempre estamos falando de uma socionatureza que nos permite pensar, por conseguinte, em desastres socioambientais.
No caso de Mariana, o desastre está intimamente ligado a interesses e a escolhas políticas, tecnológicas e sociais feitas no passado, que se repetem em quase todo o território brasileiro, na sua busca pela modernização e pelo progresso econômico ou industrial a qualquer custo. Isso constituiu um cenário social peculiar de vulnerabilidade a desastres socioambientais.
Greg Bankoff lembra que a maneira como esses sistemas sociais são estruturados deixou pessoas mais expostas que outras a desastres. Nesse sentido, a história ambiental interessada em desastres deve apreciar os modos pelos quais as populações tornam-se vulneráveis a eles e aos seus ambientes, uma relação causal que pode ser melhor entendida em termos de vulnerabilidade.
Desastres então tem duas dimensões. A natural é mais difícil de ser captada, porque pode variar desde anos até milênios e de uma geração para a outra as vezes é difícil construir memórias perenes de fenômenos climáticos ou até mesmo uma memória termométrica da sociedade. A dimensão social é mais amplamente perceptível. Cultura, política e economia mudam sensivelmente ao longo de apenas uma geração, e a questão em relação aos desastres é saber em que medida essas alterações tornam algumas populações mais vulneráveis que outras e o que elas podem fazer para evitar serem atingidas. Nesse sentido, a história ambiental busca analisar pessoas que no passado estavam situadas em lugares mais perigosos do que outros como o resultado de uma configuração particular de fatores políticos, sociais, econômicos, ideológicos e ambientais. Ver isso na história requer um olhar atento para algumas coisas, tais como a quantidade e a distribuição da população num dado território, o nível de tecnologia intervindo no ambiente em um dado local e em dado regime econômico e de exploração e obtenção de recursos. Eles são históricos justamente porque tanto as forças naturais como as sociais mudam no tempo.
Mas agora há alguns elementos que tem afetado a vulnerabilidade social global, e entre eles podemos salientar a importância da urbanização tanto de pequenas como de grandes cidades em decorrência da modernização econômica, que leva pessoas para mais perto das indústrias, mais perto das cidades ou de locais de produção, ou o contrário, acabam por constituir redutos populacionais em locais mais baratos ou vulneráveis para que essas pessoas tenham condições de viver. A urbanização não significa que um desastre atingirá uma maior ou cada vez maior quantidade de pessoas ou que a cidade poderá prover maior proteção a ele; ela repercutirá na maior quantidade de pessoas afetadas sem conhecer a razão do problema.
É possível dimensionar e descrever os impactos às populações afetadas?
A cada dia que passa depois do rompimento das barragens, tem sido relativamente fácil acompanhar a evolução do problema, mensurar o alastramento territorial da lama tóxica, sua penetração no rio Doce, o dilema das populações rurais e urbanas que dependem do rio, a agonia da fauna e da flora regional e a chegada da lama no mar, a 600km de distância do ponto inicial. Os impactos são visíveis em termos sociais, econômicos, culturais, políticos e ambientais. Do ponto de vista social, abre-se precedente para discutir a distribuição desigual do desastre em meio à população atingida. Se, por um lado, é visível o impacto do ponto de vista social – uma vila destruída criando verdadeiros refugiados ambientais – e econômico – para pescadores, ribeirinhos, comerciantes, agricultores e indústria de todos os portes, do ponto de vista cultural estamos falando da perda de relações de intimidade com o rio Doce. Do ponto de vista político e do ponto de vista ambiental, o evento tem sido um verdadeiro laboratório para a história, na medida em que frente à calamidade que se instalou, convive-se com discursos ambíguos, silêncios de diversos setores e lutas pela palavra autorizada e sobre a interpretação do desastre. Um representante da Defesa Civil declarou na imprensa que é para a população acreditar nos boletins oficiais e em nenhum outro informe para que não haja confusões sobre o desastre.
Como historiador, acredito que a única maneira de descrevermos adequadamente o impacto para as populações afetadas envolverá um trabalho de médio e longo prazos para constituir ou dar vazão às múltiplas narrativas que o evento despertou, desde aquelas ligadas às práticas cotidianas das populações atingidas dos 600km, passando por suas representações do rio Doce, suas expressões simbólicas a respeito do evento, suas visões sobre a relação entre humanos e mundo natural, entre economia mineradora e natureza e suas visões sobre o papel e a responsabilidade do estado e das empresas acerca do evento.
Em que medida a tragédia traz à tona o contexto atual da questão ambiental e das políticas públicas para o setor? Quais os papéis do estado, das empresas privadas e da sociedade frente à exposição de populações a tais riscos e consequências?
Dar vazão às múltiplas narrativas sobre o desastre, acredito, pode também ser uma excelente oportunidade para problematizar a relação entre estado e empresas em meio à realidade de uma radical política de modernização baseada na tecnologia de força bruta que não teve alterações significativas desde os anos 1950 no país. Não podemos fazer vista grossa com relação ao sucesso de inúmeras políticas públicas que encararam a agenda ambiental com seriedade e conseguiram importantes resultados no país, especialmente no que se refere ao desmatamento e ao gigante discursivo que é a Amazônia. Contudo, na relação entre humanos e mundo natural em locais de intensa busca pela modernização, acredito que grande parte da política acabou deixando em segundo plano a dimensão dos riscos que projetos de obtenção de recursos naturais de grande porte poderiam oferecer tanto aos humanos como ao próprio mundo natural. Nesse sentido, o papel do estado imiscuiu-se em meio à voracidade tecnológica e financeira das empresas privadas, voluntária e involuntariamente sustentadas em diversos momentos pela própria população e pelo estado sob a égide do discurso de desenvolvimento e progresso.
É importante frisar que o poder público tem acompanhado de perto a questão, com intervenção relevante do Ministério Público Federal e das justiças estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo que começam a trabalhar juntas no caso. Também é importante considerar a organização civil que começa a construir manifestações fortes e públicas exigindo a apuração e a responsabilização dos envolvidos no desastre.
O problema fundamental que se coloca é como aprender a partir desse desastre. Enquanto não passarmos a considerar que as relações entre humanos e mundo natural devem estar obrigatoriamente ocupando nossas mentes para o futuro, e que elas são constituídas historicamente, e que não podem ser encaradas apenas do ponto de vista técnico ou jurídico ou empresarial, continuaremos construindo interpretações parciais e meramente amparadas na perspectiva do “acidente” ou do “incidente” como aconteceu em Mariana. A política precisa se ecologizar enquanto que a sociedade também necessita abrir os olhos para a natureza dotada de condições de igual consideração na esfera pública.
Leia em HCS-Manguinhos:
KLANOVICZ, Jó. Toxicidade e produção de maçãs no sul do Brasil. Mar 2010, vol.17, no.1
DRUMMOND, José Augusto. Investimentos privados, impactos ambientais e qualidade de vida num empreendimento mineral amazônico: o caso da mina de manganês de Serra do Navio (Amapá). 2000, vol.6
MAIA, Andréa Casa Nova. Outro inferno de Dante numa mina de ouro na época de Vargas: Nova Lima, Minas Gerais. 2014, vol.21, n.4
ALVES, Débora Bendocchi. Ernst Hasenclever em Gongo-Soco: exploração inglesa nas minas de ouro em Minas Gerais no século XIX. v. 21, n. 1, Mar. 2014
FISCHER, Georg. Minério de ferro, geologia econômica e redes de expertsentre Wisconsin e Minas Gerais, 1881-1914. 2014, vol.21, n.1
VARELA, Alex Gonçalves. Um manuscrito inédito do naturalista Manuel Ferreira da Câmara: “nota sobre a extração das minas do Principado da Transilvânia” (1796). 2010, vol.17, n.1
SILVA, Clarete Paranhos da and LOPES, Maria Margaret. O ouro sob as Luzes: a ‘arte’ de minerar no discurso do naturalista João da Silva Feijó (1760-1824). 2004, vol.11, n.3
SILVA, Clarete Paranhos da. Êh minas… Êh Minas… As atividades geocientíficas no Brasil colonial: um estudo da obra mineralógica de José Vieira Couto (transição dos séculos XVIII para o XIX). 1998, vol.5, n.1