Junho/2021
O termo “contracultura” surgiu na década de 1960 para designar um conjunto de movimentos juvenis de contestação à cultura dominante. Nos EUA, os hippies propunham novos estilos de vida e de luta política, com passeatas e eventos regados a prazer, rock e psicoativos. No Brasil, Raul Seixas fazia história, assim como o jornal O Pasquim e intelectuais como Luiz Carlos Maciel e Roberto Freire.
No artigo Da contracultura à somaterapia: a criação e o desenvolvimento inicial de uma terapia anarquista, publicado na revista HCS-Manguinhos (v. 28, n. 1, jan-mar 2021), Giovan Sehn Ferraz, técnico em assuntos educacionais do Instituto Federal de Santa Catarina, discute a relação de Roberto Freire com a contracultura em sua trajetória pessoal, de militante da Ação Popular no início dos anos 1960 a anarquista e crítico dos próprios movimentos de esquerda nos anos seguintes, e no contexto do desenvolvimento da somaterapia – técnica terapêutica idealizada por ele nas décadas de 1970 e 1980, a partir de seu contato com o grupo teatral Living Theater, dos EUA, cujas técnicas se embasavam em teorias do psicanalista Wilhelm Reich.
Também chamada de “soma”, a técnica foi desenvolvida junto aos teatrólogos Myriam Muniz e Sylvio Zilber e ao professor de arquitetura da USP Flávio Império no Centro de Estudos Macunaíma, em São Paulo, a partir de experiências para o desbloqueio da criatividade de atores.
“A somaterapia, segundo Freire e seus seguidores, busca, por meio de dinâmicas corporais, jogos teatrais e capoeira de angola, libertar o indivíduo da neurose e da couraça muscular causada pela sociedade repressora”, explica Ferraz. De acordo com o pesquisador, a compreensão não dualista dos conceitos de corpo e mente, a valorização da sexualidade e a nova concepção de anarquismo se relacionam diretamente com temas da contracultura, tais como hedonismo, monismo, pensamento mítico, revolução sexual, crítica anarquista às instituições e a formas tradicionais de luta política.
“A crítica que se fazia era à própria forma do pensar”, escreve Ferraz. Segundo ele, buscava-se mais do que uma revolução política, mas uma revolução cultural, o que levou à proliferação de práticas alternativas de cura e manifestações críticas à ciência, inclusive no campo intelectual.
Roberto Freire publicou mais de trinta livros, incluindo Cleo e Daniel, nos anos 1970, que vendeu mais de 200 mil exemplares em bancas de revista, e Sem tesão não há solução, de 1987, que teve mais de vinte edições e vendeu cerca de cem mil exemplares – número considerado alto para um autor brasileiro daquele período. Seu nome e o de sua técnica circulavam frequentemente na mídia.
Na análise do processo de criação da somaterapia, o pesquisador verificou uma espécie de “mito de criação”: uma narrativa-padrão que se repetia tanto nos textos de Freire quanto nos de somaterapeutas e simpatizantes, buscando “apresentar a técnica de forma lógica, racional, ordenada e coerente, apontando causas e intenções”. Ao cruzar essas narrativas com outras fontes, entretanto, Ferraz percebeu “incongruências que atestam o caráter complexo desse processo e apontam, ao mesmo tempo, para o esforço memorialista, consciente ou não, dos autores”.
Leia em HCS-Manguinhos:
Da contracultura à somaterapia: a criação e o desenvolvimento inicial de uma terapia anarquista, artigo de Giovan Sehn Ferraz (HCS-Manguinhos v. 28, n. 1, jan-mar 2021)
Leia também:
Somaterapia e contracultura: criação e desenvolvimento de uma técnica terapêutica no Brasil dos anos 1970, dissertação de mestrado de Giovan Sehn Ferraz apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria em 2018, sob orientação de Beatriz Teixeira Weber