Março/2025
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Ricardo Waizbort
Enquanto o vírus H5N1 infecta aves e o gado leiteiro, cientistas torcem para que não adquira a habilidade de se transmitir entre humanos, o que poderia levar a um novo desastre global. Mas nem o drama experimentado na pandemia de Covid-19 fez governos se sensibilizarem com a necessidade de compartilhar dados e tomar cuidados para evitar novas tragédias.
Os discursos científicos e sociopolíticos da controvérsia sobre a origem do vírus SARS-CoV-2, que causou a pandemia, são debatidos pelo pesquisador Ricardo Waizbort, do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde do Programa de Pós-graduação em Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no artigo From nature or from a laboratory? Science, health, and politics in the dispute over the origin of SARS-CoV-2 (“Da natureza ou de um laboratório? Ciência, saúde e política na disputa pela origem do SARS-CoV-2”, na tradução em português), a ser publicado em breve em História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Waizbort é autor de diversos artigos na revista (links no final).
No artigo a caminho, o pesquisador analisa dois livros escritos durante a pandemia de Covid 19 que discorrem – e divergem – sobre as origens do vírus que levou à morte de mais de sete milhões de pessoas no mundo de 2020 a 2022. No centro do debate estão o mercado de frutos do mar de Huanan e o Instituto de Virologia de Wuhan, na China. As discussões envolvem disseminação de zoonoses e pesquisa laboratorial de alta contenção. Ambas as obras – Viral: the search for the origins of COVID-19, de Alina Chan e Matt Ridley (ed. Fourth Estate, Glasgow, 2021), ainda sem tradução para português, e Breathless: the scientific race to defeat a deadly virus, de David Quammen (ed. Simon & Schuster, New York, 2022), traduzido no Brasil como Sem fôlego (Companhia das Letras, 2023), – enfatizam a necessidade de se identificar a origem do vírus para prevenir futuras pandemias, mas divergem em aspectos como a importância e os riscos associados à pesquisa laboratorial sobre patógenos potencialmente pandêmicos.

Capas dos livros Viral (2021) e Sem fôlego (2023), edição brasileira de Breathless (2022)
Para aliviar a nossa curiosidade, Waizbort concedeu esta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos. O pesquisador adianta, no entanto, que não há uma conclusão sobre o problema da origem do SARS-CoV-2. Tome fôlego e boa leitura.
Blog de HCS-Manguinhos: Quais os principais pontos de divergência entre as obras?
Ricardo Waizbort: Para ser direto, Viral é uma vigorosa defesa da hipótese de que o SARS COV-2 é o resultado acidental, não intencional, do vazamento de um laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan. Breathless (Sem fôlego) defende que a origem do vírus é natural, no sentido de que veio diretamente de animais selvagens ou exóticos comercializados, vivos e mortos, no Mercado de Frutos do Mar de Huanan, ou outro mercado “molhado” na mesma Wuhan, na China Central.
Viral apresenta argumentos contundentes a favor de um questionamento mais profundo sobre a pertinência e a importância de pesquisas com patógenos que podem tornar-se pandêmicos. Seus autores põem em xeque experimentos de “ganho de função” (gain of function), manipulações laboratoriais com o objetivo de maior conhecimento científico, produção de vacinas e criação de novos medicamentos.
Breathless é mais do que uma defesa da hipótese da origem natural do SARS CoV-2 em populações humanas. Ele é um amplo painel de como cientistas e instituições científicas, governamentais ou não, reagiram ante a emergência sanitária.
Como Viral, Breathless mobiliza toda uma rede eletrônica de informações, via internet. Ambos mostram como personagens nas redes sociais participam do debate sobre a origem da pandemia. Eles também concordam que descobrir a origem do SARS COV-2 é fundamental para a tentativa científica e social de evitar novas pandemias que estão no horizonte, como a da gripe aviária causada pelo vírus H5N1.
Que reflexões a pandemia e as controvérsias científicas e políticas que se intensificaram a partir dela nos trazem sobre o Antropoceno, a saúde global e as mudanças climáticas? O que a humanidade deve – ou deveria – aprender com a pandemia de Covid-19?
Considero que devemos interpretar a Covid-19 como uma manifestação dessa nova era geológica, o Antropoceno. A ação humana sobre o planeta, sobretudo a partir do que se chama na literatura de “a grande aceleração”, passa a ser considerada definitivamente como uma força capaz de mudar não só o regime de climas do Planeta, mas também estratos geológicos, além, é claro, a composição da própria atmosfera. A grande aceleração é o período do Antropoceno, a partir de 1950, em que a industrialização em massa ofertou para grandes populações humanas mais alimentos e outras commodities, elevando consideravelmente o padrão de vida de uma fração expressiva, embora minoritária, da humanidade. A produção de alimentos de origem vegetal e animal foi mecanizada e otimizada, mas continua dependente de grandes extensões de solo para que seus produtos se desenvolvam. O desmatamento que demandam traz para a proximidade de pessoas animais que abrigam vírus e outras formas de vida com potencial patogênico.
Como toda pandemia, por definição, a Covid-19 é um fenômeno de grandes populações. Há trabalhos científicos que mostram que evitar pandemias é muito mais barato do que enfrentá-las: conter radicalmente o desmatamento; limitar ao máximo a criação, o tráfego e o comércio de animais e seus produtos; investir em vigilância sanitária altamente capilarizada e digitalizada com o de desenvolvimento de bases de dados globais de genômica viral e sorologia. Medidas como essas diminuiriam em muito a probabilidade de novas pandemias, mas dependem de investimentos vultuosos e o enfrentamento direto de forças econômicas e políticas no mais das vezes retrógradas, para dizer o mínimo.
Qual o posicionamento político de agências como a CIA sobre a hipótese de uma origem laboratorial – não natural – da Covid-19?
Todos os posicionamentos a favor ou contra a origem, natural ou laboratorial, do SARS Cov-2 são reconhecidamente de “baixa confiança”. Recentemente, em 2025, a CIA se manifestou a favor da hipótese laboratorial, com o mesmo nível, alto, de incerteza. Outras agências penderam ao longo da história para um ou outro lado. A. O livro de Chan e Ridley aponta o dedo diretamente para o laboratório de virologia de Wuhan, chefiado por Zhen Shi, conhecida por seus extensos estudos com coronavírus SARS-like em experimentos de ganho de função. Nesses experimentos, os cientistas são capazes de dirigir mutações genéticas no sentido de tornar patógenos mais virulentos e/ou transmissíveis, com o objetivo de produzir medicamentos, vacinas e melhor compreensão de mecanismos pandêmicos. Trabalhos científicos recentes, que defendem um ou outro lado, reconhecem a falta de dados para uma conclusão definitiva sobre a origem do vírus em populações humanas. Em dezembro de 2024, a OMS reiterou seu apelo à China para que compartilhe mais dados – dando a ver sobretudo os protocolos de laboratórios, incluindo os do Instituto de Virologia de Wuhan – a fim de compreender as origens da COVID-19, enfatizando que essa é uma obrigação moral e científica. Porta-vozes oficiais chineses responderam que colaboram desde o início da pandemia com todos os dados disponíveis.
Qual o significado, para a luta futura contra a Covid, da decisão dos EUA, sob administração Trump, de se retirar do tratado de preparação para pandemias da gripe, que tem como objetivo incentivar os países a compartilhar dados, tecnologia e amostras durante uma pandemia de gripe?
O vírus H5N1 da gripe está constantemente nos noticiários. Virologistas, epidemiologistas, biólogos, sociólogos, historiadores, filósofos, estão muito preocupados com o ambiente que criamos para vírus, sobretudo os respiratórios, que é o caso aqui. Por enquanto o vírus infectou muitas espécies de aves e muitos de nossos animais domésticos, sobretudo o gado leiteiro. Infectou também e matou algumas poucas pessoas envolvidas com o a pecuária. Felizmente, ainda, o H5N1 não adquiriu a habilidade de se transmitir entre humanos de forma sustentada. Mas como o material genético dos vírus é uma loteria com bilhões de apostas por segundo a chance de um desastre de grande magnitude acontecer não é exatamente pequena. Retirar os EUA de tratados de preparação para pandemias significa subtrair bilhões, talvez trilhões de dólares de investimento em pesquisa e desenvolvimento de formas de combater, e quiçá evitar, tragédias sanitárias como a Covid-19. Como afirma Alex de Waal, sociólogo britânico em livro publicado em 2021, New pandemics, old politics: “O novo coronavírus não é o inimigo do capitalismo radical – os dois parasitam um ao outro em suas políticas disruptivas”.
O artigo a caminho se encerra com um subtítulo intrigante: “Sem Conclusão”. Por quê?
Em primeiro lugar, não há uma conclusão sobre o problema da origem do SARS-CoV-2. Talvez nunca haja. A recombinação do material genético entre os vírus que vivem nos mesmos morcegos pode naturalmente ter tornado extintos os SARS-CoV-2. Supostos cadernos de laboratório que poderiam ter registrado experimentos que produziram este coronavírus podem ter sido destruídos. A maioria dos cientistas capaz de avaliar as evidências está propensa a acreditar na hipótese do spillover (transbordamento) natural. Mas não há uma prova definitiva. A hipótese do vazamento não intencional do laboratório da Dra. Shi não é implausível.
“Na minha opinião, a conclusão é inadmissível”, diz o narrador inventado por Jorge Luis Borges no conto “O imortal”. Talvez seja o caso de estarmos diante de uma interrogação imortal, como uma esfinge que nos ameaça de novo e de novo se não resolvermos o impasse em que nosso padrão de vida e exploração de recursos nos coloca.
Leia artigos de Ricardo Waizbort já publicados em HCS – Manguinhos:
As funções de um cérebro darwinista: Guedes Cabral e o evolucionismo de Funções do cérebro (1876), artigo de Roberto Sobreira Pereira Filho e Ricardo Waizbort (Hist. cienc. saude-Manguinhos 20 (4) • 2013)
A dor além dos confins do homem: aproximações preliminares ao debate entre Frances Power Cobbe e os darwinistas a respeito da vivissecção na Inglaterra vitoriana (1863-1904), artigo de André Luis de Lima Carvalho e Ricardo Waizbort (Hist. cienc. saude-Manguinhos 17 (3) • 2010)
Um replicador em movimento: aproximações entre a poética narrativa de Borges e o programa de pesquisa dos memes, artigo de Ricardo Waizbort e Lucia de la Rocque (Hist. cienc. saude-Manguinhos 15 (1) • Mar 2008)
Notas para uma aproximação entre o neodarwinismo e as ciências sociais, artigo de Ricardo Waizbort (Hist. cienc. saude-Manguinhos 12 (2) • Ago 2005)
Teoria social e biologia: perspectivas e problemas da introdução do conceito de história nas ciências biológicas, artigo de Ricardo Waizbort (Dossiê Darwinismo • Hist. cienc. saude-Manguinhos 8 (3) • dez 2001)